Militar russo diante da Usina Nuclear de Chernobyl, na Ucrânia, já tomada pelas tropas invasoras - Foto: EyePress via AFP
Pelo que lutam os ucranianos
Por democracia, sim, mas também pelo direito de inventar seu próprio futuro
Tradução de Rogerio Galindo
A invasão brutal da Ucrânia pela Rússia provocou uma crise de refugiados numa escala que não era vista na Europa desde a Segunda Guerra Mundial. O número de mortes de civis continua aumentando, incluindo as mortes decorrentes de um ataque a uma maternidade em Mariupol, onde as autoridades registraram 2,5 mil vítimas depois que o Exército russo arrasou a cidade. À medida que a guerra se intensifica, o Exército ucraniano e cidadãos comuns pegam em armas para defender seu país contra uma gigantesca força militar russa. Num catálogo crescente de histórias de resistência, civis ucranianos tentam bloquear veículos militares com seus próprios corpos. Investidas contra pontos essenciais de infraestruturas, como as usinas nucleares, encontram barricadas. Uma mulher confronta um soldado russo pesadamente armado, oferecendo a ele sementes de girassol enquanto grita que “pelo menos os girassóis irão crescer” onde o invasor irá morrer. E, num ato que se tornou um grito de guerra nacional, treze guardas da fronteira ucraniana na Ilha da Cobra perto da Crimeia se recusam a capitular diante de um barco de guerra inimigo e gritam aos russos – “fodam-se!” – antes de serem bombardeados.
O que torna a resistência deles tão firme e sua coragem tão audaciosa?
Uma parte da resposta está num passado no qual os ucranianos repetidamente assinaram a própria sentença de morte. A outra está em um futuro no qual eles se recusam a fazer isso novamente.
Antes de declarar sua independência, em 1991, a Ucrânia era parte da União Soviética. Ao enfrentar forças armadas descomunais com força e criatividade surpreendentes, os ucranianos aparentemente esqueceram o sentimento do medo. Combatentes voluntários são louvados por bloquear colunas blindadas “com suas próprias mãos”. Numa entrevista à imprensa, o presidente Volodymyr Zelensky, hoje um símbolo global da luta da Ucrânia pela sobrevivência, foi indagado sobre o que lhe dá coragem para ir em frente. Ele respondeu: “Precisam de mim.” Esses sentimentos soam tão verdadeiros hoje quanto nas décadas que precederam este momento. Apenas cinco anos antes de declarar a independência, a Ucrânia enfrentou outra luta por sua vida.
Em 26 de abril de 1986, a usina nuclear de Chernobil, que fica em território ucraniano, explodiu – e o grande incêndio que se seguiu teve consequências na Bielorrússia, na própria Ucrânia, na Rússia e na Europa. Chernobil é considerado o pior desastre nuclear de todos os tempos. O que saiu mais caro para a Ucrânia foi o processo de contenção radiológica. O esforço durou mais de trinta anos, até que fosse concluída, em 2019, a estrutura projetada para manter com segurança os vestígios altamente radioativos do reator número 4 durante um século. E o trabalho de contenção foi cruelmente braçal. Houve quem removesse pedaços fumegantes do núcleo radioativo perto da unidade do reator em ruínas sem a ajuda de equipamentos, usando apenas pás e baldes.
Na luta necessária contra a radiação, os ucranianos tiveram que superar o sentimento do medo. Mas como sobreviveram as pessoas que ficaram com a tarefa de limpar Chernobil? Essa pergunta – que os profissionais de saúde cuidando dos trabalhadores da limpeza se fizeram o tempo todo – é o equivalente nuclear a pessoas pararem tanques “com as próprias mãos” hoje.
No início, robôs foram usados para remover destroços radioativos do telhado do reator número 3, que ficava ao lado do reator destruído. Mas os níveis de radiação eram tão altos que os componentes eletrônicos dos robôs falharam. Um mês depois, jovens foram recrutados para concluir o trabalho. Com seus corpos cobertos por primitivos trajes de chumbo, luvas de borracha e finas máscaras de pano, eles jogaram destroços altamente radioativos na boca do reator destruído em períodos de um minuto – tempo suficiente para absorverem uma vida inteira de exposição à radiação. Eles se autodenominavam “biorrobôs”, mas a regra de um minuto não era aplicada de maneira uniforme. Na verdade, a vida deles era descartável. Como disse um membro de uma das equipes, eram recursos biológicos para “serem usados e jogados fora”.
Mais de 600 mil soldados, bombeiros e outros trabalhadores de toda a União Soviética foram enviados ao local do desastre para limpar ou conter a radiação. Durante uma entrevista que fiz, um homem, que gozava duas semanas de folga do trabalho no local, levantou a barra da calça e me mostrou um pedaço de pele que se enrugara, acima de seu tornozelo, formando um estranho anel. “Isso é da radiação”, ele me disse. Esse trabalhador se incluía entre os “mortos-vivos”: “Nossa memória se foi. Você esquece tudo, somos como cadáveres ambulantes.” A Zona de Exclusão de Chernobil, onde as pessoas não podem viver e os cientistas podem ficar apenas por curto período, se estende por 2,6 mil km2 ao redor do reator.
Durante os anos 1990, para preparar meu livro Life Exposed: Biological Citizens After Chernobyl (A vida exposta: cidadãos biológicos depois de Chernobil)[1], entrevistei dezenas de doentes, entre trabalhadores da limpeza e reassentados. Entendi que a memória da explosão e do perigoso trabalho de limpeza que se seguiu está gravada de modo profundo na Ucrânia. Entendi também como isso pode inspirar a luta pelo país hoje. A tragédia de Chernobil é parte de uma sucessão de choques históricos que formam a identidade nacional ucraniana. O período de 1932 e 1933, conhecido como Holodomor – ou Fome-Terror –, resultante de uma política soviética de fome deliberada promovida por Joseph Stálin, matou quase 4 milhões de ucranianos. Embora a história oficial soviética e a própria imprensa estrangeira tenham encoberto a existência dessa catástrofe, sua memória nunca se perdeu para os ucranianos. Faz parte de um passado assustador. Nas palavras de um sobrevivente de Chernobil: “Sou um reassentado de Chernobil, minha avó morreu lutando na Segunda Guerra Mundial, a irmã mais nova dela foi canibalizada na fome de 1932.”
Esse passado fala sobre catástrofes humanas – acidente nuclear, guerra, fome – e sobre como elas motivam uma futura luta por uma Ucrânia soberana. Também reflete a insuficiência da linguagem para dar conta de sua brutalidade extrema.
Sou filha de refugiados que eram crianças quando fugiram da Ucrânia com seus pais, durante a Segunda Guerra Mundial. O historiador Timothy Snyder chama a região de onde saíram de “terras de sangue”. O escritor Lev Golinkin, que se mudou para os Estados Unidos como uma criança refugiada da antiga União Soviética, recentemente escreveu: “Cresci numa terra de mentiras e ossadas, com os mortos sendo apagados ou subordinados pelo Kremlin, que se recusava a ver a Ucrânia como uma nação, impondo a identidade soviética sobre todos nós.” Ele fala sobre cicatrizes escondidas e histórias que foram repetidamente apagadas. Nessas terras de sangue, há incontáveis histórias de pessoas fazendo o exercício mental de aprender como escapar levando apenas seus pertences mais importantes. Lembro como minha avó costumava dormir perto de uma mala cuidadosamente arrumada, com toalhas que ela bordara meticulosamente em dourado, laranja e vermelho. A mala continha o que havia de mais valioso para ela; num aperto, ela estava pronta para partir com os símbolos de sua identidade.
No início de minha pesquisa sobre o pós-Chernobil, lembro de um encontro em 1992 com um homem numa pequena cidade do sudoeste da Ucrânia, onde as vítimas do regime stalinista foram massacrados no fim dos anos 1930. Ele descreveu como, no fim dos anos 1980, os estudantes de história aprenderam a esquecer: eles receberam ordens para jogar os ossos na cripta de uma igreja dominicana em estilo barroco (que havia sido transformada num armazém para suprimentos agrícolas). Usar as próprias mãos para perturbar os restos mortais e apagar a história: essa era a lição de história.
A realidade da guerra da Rússia na Ucrânia está sendo igualmente apagada. Hoje, o Kremlin proíbe os russos até de usar a palavra “guerra”. Só permite que se fale em “ação militar especial”. O jornalista russo vencedor do Prêmio Nobel da Paz, Dmitry Muratov, decidiu suspender o noticiário sobre a guerra em seu jornal independente, Novaya Gazeta, em decorrência da censura e da ameaça de processo criminal. Ao falar da campanha de desinformação doméstica de Putin em tempo de guerra, ele disse ao inglês The Observer: “A propaganda é como radiação… E ela já atingiu muitas pessoas aqui.” Em 20 de dezembro, dois meses antes da invasão da Ucrânia, um órgão federal russo deu ordens “para acelerar os enterros em massa daqueles mortos durante conflitos militares”. O número de mortes russas será escondido do público russo, de cujo apoio Putin depende, com os corpos dos soldados russos mortos sendo jogados em covas coletivas.
A história de como o apagamento histórico se transforma num ato de agressão em si mesmo não para por aí. No primeiro dia do ataque militar russo à Ucrânia, a Rússia optou pela rota da usina de Chernobil, hoje desativada, e da Zona de Exclusão. Sim, o caminho para que os russos invadam Kiev, a capital da Ucrânia, passa pela Zona de Exclusão de Chernobil. Situada na fronteira com a Bielorrússia, aliada dos russos, essa é uma terra devastada: pontilhada por locais de resíduos nucleares, que os responsáveis pelo programa nuclear da Ucrânia chamam eufemisticamente de “pequenos cemitérios”. Milhares de trabalhadores que transportaram materiais radioativos abandonaram seus veículos nesses locais, que agora servem como memoriais tóxicos de seus esforços heróicos.
Por que o Exército de Putin marcharia pela Zona de Exclusão e tomaria a usina nuclear desativada, espalhando confusão e radionuclídeos? Qualquer que seja a razão, a implicação para os ucranianos era clara: lembrá-los do potencial de uma repetição do desastre, cuja prevenção lhes custou três décadas e recursos significativos. O ministro da Energia da Ucrânia chamou o ataque de “uma das mais terríveis ameaças à Europa hoje”. Significava que “qualquer provocação da parte dos invasores de Chernobil… poderia se tornar outra catástrofe ambiental mundial”.
Por mais de três semanas os “invasores de Chernobil” mantiveram refém a equipe altamente especializada da usina. Eles trabalharam sob a mira de armas, tentando manter o funcionamento de equipamentos sensíveis e garantir que os níveis de radiação ficassem sob controle. Recentemente, a usina de Chernobil ficou sem eletricidade por causa de uma linha de energia danificada. Há 20 mil células de combustível altamente radioativo armazenadas e mantidas refrigeradas em uma instalação de resíduos nucleares nas proximidades. Qualquer interrupção no fornecimento de energia pode causar superaquecimento dessas células, potencialmente liberando radiação na atmosfera.
A invasão russa ameaça reabrir o legado tóxico de Chernobil[2]. Imagens alarmantes vêm aparecendo no noticiário, dessa vez de uma gravação feita por drone que mostra cidadãos ucranianos bloqueando tropas russas que tentam entrar em outra usina nuclear no Sul do país. Civis ucranianos bloquearam a principal estrada para as instalações com caminhões, carros, pneus e sacos de areia.
Diante disso, não consigo deixar de perguntar a mim mesma: “Isso está realmente acontecendo?” Sim, esses cidadãos estão lutando para evitar outra Chernobil. A usina nuclear de Zaporizhzhia é a maior da Ucrânia e da Europa. Qualquer desastre lá poderia fazer a explosão de Chernobil parecer algo pequeno. Nos primeiros dias de março, torci que, contrariando todas as probabilidades, eles pudessem parar os invasores de Chernobil. Mas não. Naquela noite, membros do Exército russo bombardearam a usina nuclear. Sim, eles bombardearam a usina, incendiando um dos seis reatores das instalações (depois o fogo foi extinto), enquanto tomavam controle da enorme usina. E, como em Chernobil, estão mantendo a equipe exausta e apavorada sob a mira de armas.
As quinze usinas nucleares ativas da Ucrânia não foram construídas para suportar uma invasão militar total. Algumas podem sobreviver a quedas de aeronaves, mas provavelmente não a ataques de mísseis ou artilharia. Nem podem repelir um ciberataque desestabilizador ou proteger seus funcionários essenciais. Um exército invasor, no controle desses reatores, pode aumentar a ameaça de terror nuclear como parte de uma chantagem mais ampla. O controle das usinas poderia ser, nas palavras de um analista militar norte-americano, como ter “guerra nuclear sem bombas”, caso alguém interfira nessas usinas. Isso também poderia criar zonas inabitáveis em toda a Ucrânia e forçar a população do país a voltar a fazer um trabalho de descontaminação extremamente nocivo.
Se Chernobil se tornou um ponto de virada para a independência ucraniana no fim dos anos 1980 e início dos 1990, o processamento de seus efeitos no povo e no meio ambiente continuou a ter papel vital na formação da identidade nacional. Contudo, esta frase é simples demais para o que estou descrevendo: trata-se de um país que se recusa coletivamente a assinar sua própria sentença de morte mais uma vez.
Nos anos 1990, a infraestrutura industrial soviética vinha desmoronando. A economia das famílias estava sendo consumida pela hiperinflação. Enquanto isso, uma crise de saúde se agudizava. Os hospitais viviam abarrotados de pessoas lidando com cânceres, problemas de coração e doenças autoimunes, em muitos casos atribuídos a Chernobil. O impacto do acidente sobre a gente simples – das viúvas dos biorrobôs àqueles que continuavam trabalhando na Zona de Exclusão – sobrecarregava o precário sistema de saúde, no qual eu estava fazendo minha pesquisa de campo. Depois de dizer a um homem que não poderia ajudá-lo, um médico se voltou para mim e disse: “Ele está à beira da morte. Temos muitos assim.” As pessoas estavam em busca de alívio para doenças que alegavam ser relacionadas ao acidente nuclear. Mas, como não dispunham de provas documentais de que haviam sido expostas à radiação, elas eram descartadas por especialistas internacionais e seus parceiros soviéticos. As vítimas enfrentavam um ônus de prova impossível, num momento em que as consequências devastadoras do desastre para a saúde pública eram minimizadas.
Durante aquelas décadas, o Ocidente manteve firmemente sua convicção de que havia “vencido” a Guerra Fria. A Ucrânia chegou a ser sede do terceiro maior arsenal nuclear do mundo, em razão do legado soviético. Mas, em 1994, a Ucrânia abriu mão desse arsenal, composto por cerca de 1,9 mil ogivas nucleares estratégicas, em troca do reconhecimento diplomático, do apoio econômico e de garantias de segurança dos Estados Unidos, Grã-Bretanha e Rússia. Como parte do acordo de desnuclearização, o Exército ucraniano explodiu seus silos de mísseis balísticos intercontinentais, espalhados pelo país. Especialistas ucranianos desmontaram bombas nucleares e soldados destruíram mísseis de cruzeiro com serras circulares. E, por fim, transferiram os materiais nucleares destruídos para a Rússia, um país que prometeu “respeitar a independência e soberania e as fronteiras existentes da Ucrânia”. Naquela era do celebrado desarmamento nuclear, pelo qual os Estados Unidos levaram todo o crédito, a Rússia também prometeu “se abster de fazer ameaças ou uso da força” contra a Ucrânia.
Pode-se debater se os ucranianos assinaram a própria sentença de morte ao abrir mão de suas bombas nucleares. Na verdade, eles já tinham problemas suficientes tentando lidar com o legado de Chernobil. Como parte do aprofundamento da redução do arsenal nuclear da Ucrânia, o então secretário de Estado norte-americano, Warren Christopher, visitou um hospital infantil em Kiev. Profissionais de saúde ucranianos estavam desesperados para conseguir equipamentos médicos e suprimentos farmacêuticos. Antes da visita de Christopher, o diretor do hospital montou uma “exposição” de bebês afetados por Chernobil. Minhas anotações das conversas com a equipe sobre esses bebês são as seguintes: “Um nascido prematuro, outro sobreviveu à morte de seu gêmeo; outro nasceu com um esôfago disfuncional; outro com sinais de asfixia pré-natal. Um nasceu de uma mãe que foi evacuada da zona de Chernobil aos 9 anos; o filho dela tem metade de um pulmão. Outro nasceu de um trabalhador de Chernobil: sua mão esquerda tem seis dedos. Ele não tem a traqueia. Seu intestino está do lado de fora do corpo. O ouvido esquerdo é retorcido e deformado.”
Estes eram os filhos dos biorrobôs, como um médico me explicou.
Apesar dos devastores efeitos ambientais, médicos e sociais de Chernobil e da agenda de desnuclearização, as usinas nucleares ucranianas não foram desmobilizadas. Com a ajuda da Europa, onde o movimento antinuclear levou algumas nações a abandonar esse tipo de energia, a Ucrânia continuou a atualizar os reatores e estender suas licenças de operação. Em 2020, dos 15 reatores, 12 chegaram ao fim de sua vida útil projetada de trinta anos. E, durante as últimas décadas, a Europa se tornou mais dependente do petróleo russo. Isso significa, nas palavras de um editorial do jornal The New York Times, que a Europa “está enfrentando a triste realidade de que sua dependência do petróleo russo está patrocinando a guerra de Putin”. Países como Itália e Alemanha acabaram com suas usinas nucleares. Hoje, ambos recebem quase metade de seu suprimento de petróleo da Rússia.
A Ucrânia é agora a terra de sangue do petro-Estado de Putin, um autocrata que se convenceu que o povo ucraniano não existe como nação. Em meio ao bombardeio de alvos civis, incluindo padarias, fábricas de sapatos, maternidades, um memorial do Holocausto, prédios residenciais e instalações de energia nuclear, a guerra desse petro-Estado na Ucrânia está revelando novas formas de “weaponização”. Vemos aqui não apenas as armas convencionais de guerra, como artilharia de foguetes e munições de fragmentação, mas também a dependência de combustível fóssil, que está sendo usada como arma, junto com a ameaça de escalada nuclear. Estas duas formas de ‘weaponização’ ultrapassam as fronteiras da Ucrânia e mobilizam a dependência energética da Europa. Sem acabar com sua dependência da Rússia – país que, nas palavras do economista Jason Furman, da Universidade Harvard, se transformou num dos maiores postos de gasolina do mundo –, a Europa está alimentando uma guerra que ameaça sua própria segurança. Sem nos afastarmos da dependência de combustíveis fósseis e desenvolvermos fontes de energia renovável, um mundo sem recifes de coral, sem o gelo do Ártico e sem a Floresta Amazônica não será mais hipotético[3].
Os filhos e netos dos biorrobôs na Ucrânia sabem exatamente como foi difícil a contenção nuclear de Chernobil e o quanto o resultado é incerto. A estabilidade nuclear, assim como a democracia, é um equilíbrio delicado. Ao pegar em armas por todo o país, os ucranianos estão lutando para defender os dois. Outros acontecimentos decisivos, incluindo os protestos massivos de 2004 para derrubar um presidente pró-Rússia corrupto e a Revolução da Dignidade de 2013-14, ajudaram a consolidar ainda mais a luta dos ucranianos por sua terra, sua soberania e seu simples direito de existir.
Essas lutas são globais. Em 2016, protestos liderados por povos indígenas em Standing Rock, na Dakota do Norte, interromperam parte da construção do oleoduto Dakota Access. Alguns manifestantes se amarraram a equipamentos de construção pesados; os protetores da água, ou defensores dos sistemas hídricos circundantes que a tubulação ameaçava, tornaram-se símbolos de resiliência e resistência. Eles seguravam escudos com espelhos, nas palavras da artista indígena Cannupa Hanska Luger, que os concebeu, “para forçar o opressor a ver a si mesmo e o mal que está causando”. Luger disse que se inspirou nas imagens que viu de mulheres ucranianas segurando espelhos do tamanho do torso para policiais armados durante a Revolução da Dignidade. Milhares de manifestantes vindos de todas as regiões do país ocuparam a Praça da República de Kiev. Eles formaram uma barricada de 800 metros ao redor da praça para defender a democracia e as instituições cívicas. Segurando seus escudos espelhados diante dos legados soviéticos de corrupção, prisões falsas e repressão violenta, as mulheres, junto com esses manifestantes, derrubaram o presidente pró-Rússia, um fantoche autocrático, que encontrou refúgio na ditatura militar de Putin.
Hoje, os ucranianos confrontam vigorosamente as forças de Putin que tentam cercar a capital. Os defensores da cidade protegem seu território e impedem o avanço russo. A jornalista Nataliya Gumenyuk explica pelo que os ucranianos estão lutando: “Se a democracia da Ucrânia sobreviver, esmagará os argumentos dos tiranos que descrevem as democracias como fracas, incapazes, caóticas. A pergunta que todos estamos fazendo é: quantos ucranianos terão que morrer no processo?”
Em seu escudo espelhado, a guerra é o caos. Mas é também onde os seres humanos vivem agora: na linha de frente, onde defendem o direito inalienável de criarem o próprio futuro.
[1] No original em inglês, o livro pode ser encontrado em https://press.princeton.edu/books/paperback/9780691151663/life-exposed
[2] A autora publicou um artigo sobre o assunto na revista The Atlantic, cujo original em inglês pode ser encontrado em https://www.theatlantic.com/science/archive/2022/03/ukraine-russia-chernobyl-warning/623878/
[3] A autora trata do assunto em seu novo livro, Horizon Work: At the Edges of Knowledge in an Age of Runaway Climate Change, cujo original em inglês pode ser encontrado em https://press.princeton.edu/books/hardcover/9780691211664/horizon-work
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