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    Hitler e Leni Riefenstahl: “Nunca conheci alguém com tanto poder de persuasão, capaz de influenciar outras mentes de forma tão eficaz. Isso era motivo para evitar esse homem, apesar do fascínio que ele exercia sobre mim.” Foto: Library of Congress/Corbis/VCG via Getty Images

questões cinematográficas

Peneira do tempo

A sobrevida de Leni Riefenstahl

Eduardo Escorel | 09 out 2024_10h51
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“Eu fui capturada, como por uma força magnética”, diz Leni Riefenstahl (1902-2003), referindo-se a Adolf Hitler em uma de suas várias entrevistas incluídas em Riefenstahl: Cinema e Poder (2024). Cito essa declaração após ter assistido ao documentário de Andres Veiel há uma semana, em uma sala lotada, no segundo dia do 26º Festival do Rio. Ao final da sessão, aplausos discretos, logo interrompidos, pareceram ambíguos – seriam dirigidos ao filme ou aos elogios a Riefenstahl feitos na cena final em voz off por Albert Speer (1905-1981), arquiteto-chefe do regime nazista, condenado em Nuremberg a vinte anos de prisão?

Em agosto deste ano, Riefenstahl: Cinema e Poder estreou no 81º Festival de Veneza, o mesmo evento no qual O Triunfo da Vontade, de Riefenstahl, recebeu o prêmio de Melhor Documentário Estrangeiro, em 1935, e Olympia, filme seguinte da diretora, ganhou, em 1938, a Copa Mussolini, principal prêmio na época.

Viver 101 anos teve um aspecto dramático para Riefenstahl – ela acabou aparentando ter sobrevivido além do seu próprio tempo. Inocentada no final de 1948 da suspeita de ter sido afiliada ao Partido Nazista, no ano seguinte foi classificada como “simpatizante” e perdeu o direito de se eleger para cargo público. “Na Alemanha do pós-guerra, na luta para aceitar os atos bárbaros cometidos em nome do país, as pessoas se sentiram compelidas a atribuir a outras, não a si mesmas, a responsabilidade pelo que ocorreu. ‘Devíamos ter sabido o que estava acontecendo’, poderiam dizer, ‘mas e a Leni Riefenstahl? Ela era amiga de Hitler – deveria saber mais do que nós. Ela é mais culpada do que nós.’ Essa foi uma atitude compreensível que desafiou todas as decisões legais”, escreveu Audrey Salkeld em A Portrait of Leni Riefenstahl, publicado em 1996 (sem edição no Brasil).

A foto de arquivo mostra Leni Riefenstahl em momento de descontração com Adolf Hitler (Imagem: Reprodução)

 

A partir da segunda metade da década de 1940, Riefenstahl dedicou parte considerável de seu tempo à tentativa de passar a limpo o que viveu entre o início da década de 1930 e o fim da Segunda Guerra Mundial – período de ascensão e queda do Terceiro Reich. Em 1987 publicou em alemão sua autobiografia, Memoiren (Memórias), editada, em 1992, na Grã-Bretanha com o título The Sieve of Time (A Peneira do Tempo) e no ano seguinte nos Estados Unidos, em edição de 669 páginas, com o título Leni Riefenstahl: A Memoir (Leni Riefenstahl: Memórias). A epígrafe do livro (também sem edição no Brasil), de Albert Einstein, é eloquente: “Tantas coisas foram escritas sobre mim, tamanha quantidade de mentiras e invenções insolentes que eu teria morrido há muito tempo se tivesse prestado qualquer atenção. É preciso nos consolarmos com o fato de o tempo ter uma peneira, através da qual a maioria das trivialidades corre para o mar do esquecimento.”

Ao contrário do que Einstein sugere, no entanto, Riefenstahl se manteve alerta ao que era dito a seu respeito e tratou de propagar sua própria versão dos fatos, tanto em sua autobiografia quanto no filme Leni Riefenstahl, a deusa imperfeita (1993), de Ray Müller, e em inúmeras entrevistas concedidas à televisão, trechos das quais foram incluídos em Riefenstahl: Cinema e Poder.

Sobre seu encontro com Hitler, no final de 1932, Riefenstahl admite nas memórias: “Nunca conheci alguém com tanto poder de persuasão, capaz de influenciar outras mentes de forma tão eficaz. Isso era motivo para evitar esse homem, apesar do fascínio que ele exercia sobre mim.” Ela se enfurece, porém, quando seus entrevistadores tentam abordar os crimes de guerra cometidos pelos nazistas – Riefenstahl interrompe gravações e, ao menos uma vez, se retira do set. Não eram “trivialidades”, muito menos corriam “para o esquecimento”, conforme previsto na epígrafe de Einstein, da qual ela se apropriou de modo indevido.

Quanto aos campos de concentração, por mais inverossímil que pareça, Salkeld escreveu, com base nas memórias de Riefenstahl:

Assim como muitos alemães, ela tinha tomado conhecimento de sua existência sem avaliar plenamente a infâmia que representavam, aceitando-os de alguma forma como centros de internamento de indigentes e, mais tarde, de presos políticos e traidores. Os judeus, haviam-lhe contado – e ela parece nunca ter questionado seriamente o fato –, estavam igualmente sendo reunidos e detidos por representarem uma ameaça à segurança em tempo de guerra. Agora, [quando detida pelo Exército americano após o fim da guerra], pela primeira vez ela viu as impressionantes fotografias de Buchenwald e de outros campos libertados, e foi forçada a confrontar os horríveis emaranhados de corpos e os sobreviventes esqueléticos, só olhos, mais parecidos com fantasmas do que homens e mulheres com suas expressões insondáveis…

‘Então, agora você acredita nisso?’, inquiriu o oficial interrogador, mas era demais para ser absorvido [por Riefenstahl] assim.

‘É tão… tão incompreensível’, foi tudo o que ela conseguiu gaguejar em resposta, profundamente abalada.'”

Leni entre Goebbels e Hitler (Foto: Albert Harlingue/Roger Viollet/Getty Images)

 

“Toda vez que apareço na tevê”, lamenta Riefenstahl para Speer, em uma das cenas do filme, “eles afirmam que compartilho a culpa [por] todas as atrocidades, os campos de concentração.”

“De certa forma, Leni Riefenstahl manteve o mundo esperando por suas memórias tempo demais”, escreveu Salkeld. “Afastando de sua mente qualquer consideração sobre fatos ou boatos desconfortáveis, ela demonstra facilidade para evitar perguntas embaraçosas em entrevistas, na suposição aparentemente ingênua de que o que você não encara vai sumir. Uma vez que a rota de fuga que se apresenta pode diferir ao passar de uma entrevista para outra, isso levou ao longo dos anos a evasivas conflitantes e a algumas elipses notáveis ​​em suas memórias. É inevitável, no entanto, que ao percorrer o mesmo terreno repetidas vezes, de um interrogatório para o seguinte, algo ensaiado entre em cena e a espontaneidade seja perdida.”

No fecho do seu retrato de Riefenstahl, Salkeld lembra o que Ray Müller disse à diretora alemã em Leni Riefenstahl, a deusa imperfeita: “O mundo ainda estava esperando que ela pedisse desculpas. Leni Riefenstahl encolheu os ombros. ‘Me desculpar não é suficiente’, suspirou, ‘mas não posso me despedaçar ou me destruir. É tão terrível. De qualquer forma, sofri por mais de meio século e isso nunca terminará até que eu morra. É um fardo tão incrível que pedir desculpas é inadequado. Exprime muito pouco.’”

O Festival do Rio segue até 13 de outubro. Riefenstahl: Cinema e Poder será exibido nesta quarta-feira, 9 de outubro, pela terceira vez, às 15h45 no Estação NET Gávea 3.

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