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    Folha de S.Paulo

questões cinematográficas

Perdas – Drummond, Vargas & etc.

No fim de semana passado, referências colhidas ao acaso, na leitura dos jornais e de um livro, relembraram funções que o cinema deixou de ter e de cumprir, além de revelarem um fato cujo reiterado simbolismo dá o que pensar.

Em entrevista inédita publicada pela Folha de S. Paulo, Carlos Drummond de Andrade fala de um tempo em que o cinema era uma janela aberta para o mundo. No primeiro volume da recém-publicada biografia de Getúlio Vargas, Lira Neto cita a exibição de uma reportagem de cuja existência não se tinha notícia. E a Revista do Globo de domingo revela, por sua vez, que havia uma produtora de cinema no edifício Colombo, soterrado pelo desmoronamento ocorrido em janeiro, no centro do Rio.

| 12 jul 2012_14h04
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No fim de semana passado, referências colhidas ao acaso, na leitura dos jornais e de um livro, relembraram funções que o cinema deixou de ter e de cumprir, além de revelarem um fato cujo reiterado simbolismo dá o que pensar.

Em entrevista inédita publicada pela , Carlos Drummond de Andrade fala de um tempo em que o cinema era uma janela aberta para o mundo. No primeiro volume da recém-publicada biografia de Getúlio Vargas, Lira Neto cita a exibição de uma reportagem de cuja existência não se tinha notícia. E a Revista do Globo de domingo revela, por sua vez, que havia uma produtora de cinema no edifício Colombo, soterrado pelo desmoronamento ocorrido em janeiro, no centro do Rio.

Por não ter cinema na infância, Drummond ficou espantado quando deixou Itabira e foi, já “rapazola”, para Belo Horizonte. “Nós conhecíamos pouco da vida e conjecturávamos muito”, declarou o poeta. Sem cinema, “não havia a menor informação sobre o corpo feminino”.

Na primeira década do século passado, no interior de Minas Gerais, o cinema chegava “precariamente, com sessões no domingo à noite, quando não chovia, quando as estradas não estavam encharcadas e o burrinho, levando a mala do correio, levava também os discos, as latas de filmes”.

Em Belo Horizonte, diz Drummond, “a gente se espantava diante da perna, já não direi da coxa, que essa não se via de maneira nenhuma. A palavra coxa eu a considerava altamente erótica”.

Drummond já se familiarizara com “os recursos da civilização” – além do cinema, o bonde, “onde as mulheres para subir, tinham de, contra a vontade, mostrar um pouco da perna, aquilo era uma delícia, pelo menos para pessoas do interior” – quando Getúlio Vargas tomou posse como presidente do Rio Grande do Sul, em janeiro de 1928. Aclamado pela multidão, segundo escreve Lira Neto, baseado no relato de dois jornais da época, “os aplausos e os gritos de saudação cresciam ante a aproximação do automóvel no qual Getúlio, mais sorridente do que nunca, acenava da janela, sentado no banco de trás. Chuvas de papel picado e pétalas de rosas caíam sobre o cortejo, do andar superior dos sobrados. Os guardas da Brigada Militar, com uma gentileza fora do habitual, procuravam conferir alguma ordem ao trajeto, mas eles próprios também eram tragados pela incontrolável correnteza humana”.

Para acomodar os oitocentos convidados, a primeira etapa da cerimônia foi transferida para a sede da Faculdade de Medicina, onde Getúlio, usando leve paletó de verão, assinou o compromisso de posse com uma caneta forjada em ouro maciço, cravejada de brilhantes. Lira Neto comenta que, apesar do luxuoso carro usado na ocasião e da caneta, por estar vestido de maneira informal, “Getúlio parecia querer transmitir a impressão de que a simplicidade e a leveza seriam as marcas de sua gestão”.

Essa descrição resumida do grande dia é suficiente para justificar o interesse que teriam as imagens filmadas da posse de Getúlio como presidente do Estado. Tudo indica, porém, que foram perdidas para sempre. A não ser que algum colecionador anônimo as mantenha em segredo, é provável que tenham sido destruídas junto com a maior parte do que foi filmado no Brasil até a década de 1950.

Dificilmente, teremos algum dia a possibilidade de ver “o filme com as cenas da posse de Getúlio – ‘em três partes longas e nítidas’, como diziam os anúncios nos jornais”, que exibido, na época, nos principais cinemas de Porto Alegre foi “um recorde instantâneo de bilheteria”.

Filmadas talvez por Ítalo Mageroni – Leopoldis, como era conhecido – “infelizmente”, escreveu Paulo Emílio, em 1956, “só uma parte ínfima de sua obra antiga foi preservada”.

Nesse, e em milhares de outros casos, a história sequer teve a possibilidade de transformar o documento filmado em monumento, impedindo a tentativa de revelar algo além da mera aparência das imagens.

Nos posts Desabamento e batuque e Passagem por Tiradentes, publicados em janeiro e fevereiro, fiz referência ao testemunho de Jean Claude Bernardet em que ele diz sentir a morte de Gustavo Dahl “como se desabasse o telhado de casa já antiga que ainda consegue se manter de pé, mas cada vez menos”. E comentei a coincidência de ter acontecido naqueles dias o desabamento de três prédios, no centro do Rio. Na semana seguinte, mencionei nova sincronicidade, ou coincidência – a exibição, na Mostra de Cinema de Tiradentes, do documentário HU, dirigido por Pedro Urano e Joana Traub Cseko, no qual vemos a implosão parcial do elefante branco projetado para ser o hospital universitário da UFRJ.

O que só soube agora, através da matéria da Revista do Globo de domingo é que o escritório de uma produtora de cinema veio abaixo naqueles dias, soterrado pelo desmoranemento de um edifício chamado Liberdade.

O cinema deixou de ser janela privilegiada para conhecer a vida e, uma vez perdida a maior parte do acervo filmado, tornou-se apoio frágil para formar a memória.

Abalados, os alicerces do cinema estão sendo reconstruídos. Sem nostalgia. 

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