Ilustração de Carvall
Pistolas por correspondência
Como traficantes de armas abasteciam criminosos de facções rivais, além de policiais e milicianos
A cinco dias do Natal de 2017, um funcionário do setor de triagem dos Correios em Curitiba notou, no visor do aparelho de raio-x, que uma encomenda contendo um singelo presente natalino – uma panela de arroz elétrica – trazia, dentro do recipiente, dois revólveres fabricados na Argentina e dez munições. O Sedex fora postado em Foz do Iguaçu, na fronteira com o Paraguai, e teria como destino Belo Horizonte.
Naquele mesmo dia, os Correios encaminharam a encomenda para a Superintendência da Polícia Federal na capital paranaense. Aquela era uma determinação recente do delegado Rodrigo Martins Morais da Silva – até então, as armas encontradas pelos Correios dentro de encomendas eram enviadas ao Exército, que as destruía sem investigar quem estava por trás daquelas remessas.
Um pouco antes, em 24 de novembro, o setor de raio-x dos Correios havia encontrado, dentro de um aparelho de som, duas pistolas, uma delas com numeração raspada, fabricadas no Brasil e nos Estados Unidos, além de dez munições, tudo proveniente do Paraguai. O remetente, mais uma vez, era de Foz do Iguaçu, enquanto o destinatário era de Cariacica, no Espírito Santo.
As mercadorias não paravam de chegar à Superintendência da PF, vinda dos Correios: no dia 26 de fevereiro do ano seguinte, foram dois kits Roni, fabricados nos Estados Unidos, utilizados para a prática de airsoft (com armas que disparam pequenas bolas de tinta), mas que também servem para transformar pistolas de verdade em submetralhadoras – o que, segundo o delegado Silva, da PF, transforma o acessório em produto de uso restrito. Novamente a encomenda saíra de Foz com destino a Belo Horizonte. Destinatário e remetente eram nomes falsos, mas aqui os traficantes de armas cometeram um deslize: a postagem fora paga na capital mineira por uma jovem cujo irmão é João Victor de Paula Castro, condenado por tráfico de drogas e na época com mandado de prisão em aberto por furto em Minas Gerais. Ao analisar imagens da agência dos Correios em Foz onde o aparelho de som com as armas foi postado, os agentes da PF constataram que era Castro quem vinha postando as encomendas com armas que ele comprava no Paraguai. Começava aí a investigação de um grande esquema de tráfico de armas e munições no Brasil, que abastecia desde assaltantes de banco ligados ao PCC (Primeiro Comando da Capital) no Paraná a narcotraficantes do CV (Comando Vermelho) no Rio, passando por um policial militar do Ceará e um miliciano do Rio.
As armas e munições eram adquiridas em lojas de Ciudad del Este, Paraguai, principalmente a Arsenal, dos irmãos libaneses Marwan, Jihad e Jomaa Chain Baalbaki. O trio, suspeito de manter ligações com o grupo terrorista Hezbollah, foi preso em 2007 por coordenar um esquema de envio de cocaína para a Europa e o Líbano por meio de “mulas” no aeroporto de Guarulhos, São Paulo. As armas eram levadas ilegalmente para Foz em pequenos barcos que cruzavam o Rio Paraguai. Da cidade paranaense, seguiam para todo o Brasil em automóveis – cada viagem levava de vinte a trinta armas, entre fuzis e pistolas – ou via Correios, ocultos em panelas, climatizadores de ar ou aparelhos de som.
Foz do Iguaçu era a base de atuação de três dos principais alvos da PF: além de João Victor de Paula Castro, Eder Arnold dos Santos e Paulo José Vasconcelos. Santos costumava transportar as armas escondidas no tanque de gasolina dos carros, como revela um dos seus acólitos em conversa com a mulher, interceptada pela Polícia Federal:
– Foi tudo mocado [escondido], foi tudo dentro do tanque de gasolina as pistola, não tem como os ‘homi’, a polícia, achar, nem a pau, só se for caguetagem mesmo.
Um dos subordinados de Santos negociou, em junho de 2018, a venda de armamento para o miliciano Wanderson da Silva Tavares, um dos mentores do assassinato, em Niterói, no Rio de Janeiro, da juíza Patrícia Acioli, em 2011. Mesmo preso, Tavares negociava remessas de armas pelo correio para seus comparsas em Acari, Zona Norte do Rio. As encomendas, pistolas e fuzis, eram recebidas por laranjas dele. Até granada Tavares negociou com o grupo de Santos, mostra uma conversa interceptada na investigação da Gun Express: “Mano, tô aguardando sair [da cadeia], aí eu meto a cara, vc vai ver e tudo, mano. Me diz, pra vim granada também, qual valor e modelo?”, pergunta por mensagem de Whatsapp.
Santos também vendia armas para traficantes de drogas da Bahia e do Rio Grande do Norte. Um “mula” que transportasse as armas em veículos de Foz do Iguaçu para a região Nordeste ganhava de 15 mil a 20 mil reais mensais. Entre os principais compradores estava o paranaense Adriano Leve Sachinski, que, mesmo preso por tráfico de drogas em Salvador, comprava e vendia armas com um aparelho celular dentro da cela.
Em nota, a Secretaria de Administração Penitenciária da Bahia informou que, tão logo soube pela PF do uso de celular por Sachinski, transferiu o detento para um presídio com “estrutura de segurança mais apropriada para custodiar presos de alta periculosidade” na capital do estado. Também disse que faz regularmente revistas nas celas para evitar o uso de telefones, mas que, “mesmo com todas as medidas preventivas de segurança adotadas, devido à proximidade das unidades prisionais com comunidades circunvizinhas, arremessos externos lançam objetos ilícitos para dentro delas”.
Os policiais federais chegaram até Paulo José Vasconcelos, de Guaratuba, ao receberem dos Correios, em 18 de abril de 2018, um kit Roni dentro da embalagem original – Vasconcelos havia postado a encomenda, com destino a Porto Alegre, em seu próprio nome. Ao quebrar, com autorização judicial, o sigilo bancário dele e da mulher, a Polícia Federal descobriu que, em 31 meses, o casal movimentou em suas contas 2,2 milhões de reais.
– Pra um cara só, eu vendi dezessete [kits Roni], […] pra você ter uma ideia, o cara comprou pra revender – diz Vasconcelos.
– Rapaz, se você me fizer um preço bom eu posso até intermediar esse negócio, pra ver se ganha eu e ganha você, pra comprar pra revender – responde um advogado de Aracaju.
Vasconcelos levava armas de carro da fronteira com o Paraguai até o litoral paranaense, onde ele morava, em viagens sempre com muito armamento, conforme conversa dele com o pai, em outubro de 2018:
– Não teve barreira na estrada? – pergunta o pai.
– Pai, barreira, não, mas que eu vim cagado de lá aqui, eu vim. […] Agora que eu vou ganhar dinheiro.
Em outubro de 2018, Vasconcelos vendeu um kit Roni para um cabo da Polícia Militar do Ceará. De acordo com investigação da PF, esse policial, por sua vez, revendia ilegalmente armas e munições para outros PMs cearenses – entre seus clientes estavam dez praças e dois tenentes:
– Adiante, comando, qual é o bizu? – disse o cabo para um tenente da PF cearense.
– Eu queria umas balas de 9 milímetros, você não tem aí pra me vender?
O cabo preferia tratar das vendas por aplicativo de mensagens:
– Chefe, eu tenho, mas fala comigo no WhatsApp, eu tô de serviço agora.
A PF encaminhou as informações para a Corregedoria da Polícia Militar do Ceará. Procurada pela piauí, a corporação informou que aguarda a conclusão das investigações da Polícia Federal.
Durante as interceptações dos telefones de João Victor de Paula Castro, a PF chegaria a um dos seus fornecedores, dono de uma loja de armas airsoft (que disparam bolinhas de plástico) em Várzea Paulista, vizinha a Jundiaí, interior paulista.
– Daqui a uns dez dias, mais ou menos, tá chegando uns vinte kit Roni aqui na loja. […] Fica tranquilo que a gente vai trabalhar com você certinho, pra não ter nenhuma falha, beleza? – diz o fornecedor para Castro, em janeiro de 2019.
– Se você não deixar faltar kit Roni, não vai faltar dinheiro nunca! – responde Castro.
O fornecedor também tinha clientes entre membros do CV no Rio:
– Eu já te mandei vídeo dos clientes meus do Comando Vermelho? – pergunta para um interlocutor. – Os caras não pedem nota fiscal, então, graças a Deus – completou.
João Victor Castro foi preso no interior de Santa Catarina, em fevereiro de 2019, por conta do mandado de prisão em aberto por furto. Já Paulo José Vasconcelos foi detido em flagrante no interior do Paraná três meses antes, transportando quinze kits Roni. Todos foram alvos das operações Gun Express e Mercado das Armas, deflagradas, respectivamente, em março e julho deste ano. Na Gun Express, dezenove pessoas, incluindo Eder Arnold dos Santos e Adriano Sachinski, foram denunciadas pelo Ministério Público por tráfico internacional de armas, associação para o tráfico de armas e formação de quadrilha – a ação penal ainda não foi julgada. Na Mercado das Armas, onde houve apenas mandados de busca e apreensão, a Polícia Federal indiciou Castro (tráfico internacional de armas, formação de quadrilha e falsidade ideológica) e Vasconcelos (tráfico internacional de armas e lavagem de dinheiro). O inquérito será enviado ao Ministério Público Federal, a quem caberá decidir se denuncia ou não os envolvidos à Justiça.
Em nota, os Correios informaram que trabalham em parceria com os órgãos de segurança pública para prevenir o envio de materiais ilícitos pelo serviço postal. “Quando algum objeto com conteúdo proibido ou ilícito é detectado no fluxo postal, em verificações não invasivas, os Correios acionam os órgãos competentes.”
As defesas de Sachinski e Santos não quiseram se manifestar – o advogado do primeiro, Antônio Celso Galdino Fraga, disse ser prematura qualquer consideração sobre o caso, enquanto a Defensoria Pública da União, que defende Santos, informou que só irá se pronunciar nos autos. As defesas de Castro e de Vasconcelos não foram localizadas. O espaço está aberto para manifestações dos advogados.
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