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    Ilustração: Carvall

anais da disparidade

Plano do governo Bolsonaro para os próximos 36 anos não tem combate à fome, à pobreza ou à corrupção

Planejamento vai até 2059, mas tudo ali é diferente do programa eleitoral do presidente apresentado ao TSE

Breno Pires | 27 out 2022_10h00
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Longe do debate das eleições, o presidente Jair Bolsonaro e seus aliados militares estão preparando uma “Política Nacional de Longo Prazo”. Em suas 65 páginas, às quais a piauí teve acesso, o plano não cita o combate a fome, nem políticas para mulheres, negros ou indígenas. O plano de desenvolvimento, concebido para orientar as ações do Estado brasileiro para os próximos 36 anos (equivalente a 9 mandatos presidenciais), está sendo gestado no Palácio do Planalto, no âmbito da Secretaria Especial de Assuntos Estratégicos (Seae), chefiada pelo almirante Flávio Augusto Viana Rocha, que está há dois anos e oito meses no cargo. A intenção do governo é enviar a proposta ao Congresso, como projeto de lei, para convertê-la em lei.

O documento, cuja minuta foi concluída em agosto passado, foi entregue no início do mês passado para as 23 maiores autoridades do governo, incluindo os secretários executivos de todos ministérios, para apresentação de comentários. Apesar de haver pouco tempo hábil para análise e aprovação do almejado projeto de lei ainda neste ano, o documento é uma importante sinalização dos planos do governo para o futuro do país. No texto, a Seae tenta traçar o que considera os principais problemas nacionais e estabelece estratégias para sua superação no longo prazo. “O Brasil de hoje ainda possui deficiências e desafios que, se não forem superados nas próximas décadas, continuarão a ser obstáculos que reduzirão a nossa capacidade de crescimento”, diz um trecho do texto.

O Brasil que emerge das páginas elaboradas pela secretaria do Palácio do Planalto, porém, trata com descaso alguns dos mais graves problemas conjunturais e estruturais do país. O documento nem sequer menciona as palavras “pobreza” e “fome”. Cita a “segurança alimentar”, como um “assunto estratégico nacional”, mas aborda a questão da qualidade e ignora a questão mais grave, que é a falta de comida para boa parte da população. Diz o documento: “Ampliar o acesso da população brasileira a alimentos de qualidade, diversificados e seguros ao consumo.”

Nessa proposta de Política Nacional de Longo Prazo há poucas menções à desigualdade, considerado um dos grandes gargalos do país, tanto para o crescimento econômico como para a justiça social. Um dos objetivos descritos no plano de 36 anos é “minimizar o número de pessoas em situação de vulnerabilidade socioeconômica”, o que, de acordo com especialistas, deveria ser uma política de curto prazo, e não longo. Se for aprovado no ano que vem, por exemplo, o plano de desenvolvimento vai até 2059.

Apesar de constarem na lista dos “óbices ao desenvolvimento”, não há nenhuma clareza sobre como devem ser enfrentados os “grandes desafios na esfera educacional” e o “sistema de saúde com deficiências”. No plano de 36 anos, consta a meta de “universalizar o acesso à educação básica, possibilitando que todos os cidadãos tenham completado o ensino de nível médio” — o que, mais uma vez, deveria ser um objetivo mais imediato. A proposta na área de educação é um contraste agudo com as medidas que vêm sendo adotadas pelo governo de Jair Bolsonaro. Com aprovação do ministro da Economia, Paulo Guedes, há cortes sistemáticos no orçamento da educação que tornam duvidoso até mesmo se, no longo prazo de 36 anos, o país conseguiria levar o ensino médio a todos. O mesmo ocorre no campo da ciência e da tecnologia. A minuta da Política Nacional de Longo Prazo considera que são temas de destaque, mas na prática o governo os colocou em segundo plano, aplicando drásticos cortes de verbas e ameaçando a continuidade dos projetos de pesquisa, entre outras atividades.

Na saúde, a Política Nacional de Longo Prazo informa sobre a necessidade de “se reformar o financiamento do sistema previdenciário e dos serviços de saúde”, mas o governo, na prática, tem se limitado a cortar financiamento de programas de saúde do Sistema Único de Saúde (SUS). Em suas 65 páginas, na verdade, a minuta do texto sequer menciona o SUS, à exceção de uma referência bibliográfica. Nesse sentido, é preocupante, porém, que uma das citações aos problemas da saúde inclua a observação de que “orçamento destinado ao setor é um dos maiores do País”.

No entanto, o governo tem aplicado cortes em programas como o Farmácia Popular e, ao mesmo tempo, entregou aos deputados e senadores aliados o controle sobre as verbas que deveriam ser distribuídas pelo SUS de maneira técnica. O escoamento de verbas de saúde para cidades escolhidas politicamente por parlamentares, além de prejudicar a gestão do SUS, está na mira da Polícia Federal depois que a piauí denunciou um esquema de consultas e atendimentos fantasmas em pequenas cidades que, graças às fraudes, enchem os cofres com emendas parlamentares do orçamento secreto.

O plano também defende a promoção de transparência, compliance (conformidade legal) e accountability (prestação de contas). Nisso, também é um contraste com a prática do governo Bolsonaro. Em quatro anos, o governo institucionalizou o orçamento secreto, o maior programa de recursos públicos sem transparência pública, bem como enfraqueceu o cumprimento da Lei de Acesso à Informação e tornou a administração pública como um todo mais opaca.

Nas 65 páginas, a minuta do texto do projeto de lei também deixa de discutir soluções para um dos problemas estruturais do Brasil: a corrupção.

O conteúdo da proposta gestada no Planalto é bem diferente do programa eleitoral que Jair Bolsonaro apresentou ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Com 48 páginas, as propostas do candidato à reeleição citam a “Proteção e Promoção dos Direitos dos Povos Indígenas e Quilombolas” — o que não existe no texto da Política Nacional de Longo Prazo.

O documento enviado ao TSE, para atrair eleitores e eleitoras, tem 25 menções à palavra “pobreza” (duas delas em links citados como fonte). Cita propostas de políticas públicas direcionadas às mulheres, em relação, por exemplo, a emprego, proteção e participação na política. Na minuta da Política Nacional de Longo Prazo, zero menções.

Nada impede que o governo aprimore o texto da Política Nacional de Longo Prazo antes de enviá-lo ao Congresso. No entanto, o próprio documento informa que houve um amplo debate prévio. “Este documento foi elaborado a partir de uma perspectiva de Estado, colocando o rigor metodológico e a evidência empírica antes de qualquer posição política”, diz o texto. “Ela é o resultado dos esforços conjugados do poder público e da sociedade.”

Segundo o texto, “foram coletados cerca de 1500 objetivos nacionais junto aos órgãos de governo, pastas ministeriais, universidades e especialistas dos diversos setores. Estes objetivos foram obtidos por meio de consulta direcionada, discutidos em workshop, e extraídos de políticas e estudos vigentes”. Apesar dessa descrição, não há registro no documento de qualquer participação de estados e municípios na elaboração da proposta. O documento não cita nenhuma entidade, nem tampouco dá nome aos especialistas. E, em vez de audiências públicas, houve uma janela de menos de um mês para envio de sugestões pela internet, sob responsabilidade do Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE), uma organização social vinculada ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), encerrada em maio. A piauí não encontrou na internet os resultados da “consulta dirigida” feita pelo CGEE.

 

A redação e os assuntos elencados na minuta do texto lembram os estudos típicos de Estado-Maior das Forças Armadas, como as menções a óbices e objetivos nacionais permanentes e o conceito militar de soberania, afirmou à piauí o historiador Carlos Fico, professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro. “O documento lembra o ‘Conceito Estratégico Nacional’ de 1968, espécie de planejamento a longo prazo das ações governamentais elaborado pelo general Jaime Portela, chefe do Gabinete Militar do marechal Costa e Silva”, disse o pesquisador, com trabalhos publicados sobre a ditadura militar. Ao longo dos últimos anos, esse tema surgiu aqui e ali em círculos militares, mas nunca foi à frente.

A visão da caserna no Plano Nacional de Longo Prazo é bastante clara quando o assunto é preservação ambiental. A única menção a desmatamento que existe no texto encontra-se no tópico sobre “ocupação urbana”. Há um reconhecimento sobre a crise climática mundial e uma menção à “preservação e exploração sustentável” das florestas no país, em especial à amazônica. O texto justifica a defesa da preservação e da exploração sustentável dizendo que elas “são franqueadoras do acesso nacional aos investimentos do bilionário mercado mundial dos créditos de carbono e dos fundos dos títulos verdes’”.

O texto, porém, lista alguns “desafios” que por si só trazem desconfiança quanto ao compromisso com a agenda da preservação do meio ambiente. Entre eles, cita “as campanhas internacionais caluniosas sobre o agronegócio nacional para comprometer a imagem do Brasil como não cumpridor de critérios de conservação e preservação ambiental”. O texto também cita, como desafios, “a tentativa de potências globais assumirem papel predominante na exploração e controle do agronegócio brasileiro” e as “pressões, com viés comercial, de atores ambientais nacionais e internacionais, restringindo o crescimento da área produtiva”.

No mês de maio, veio a público um documento chamado “Projeto de Nação”, com 96 páginas, elaborado por algumas ONGs ligadas ao mundo militar, como os Institutos General Villas Bôas, Federalista e Sagres. O documento , que teve apoio do vice-presidente Hamilton Mourão, agora eleito senador pelo Rio Grande do Sul, previa o fim da gratuidade no SUS e a cobrança de mensalidade nas universidades federais. Além disso, citava ameaças internas e rotulava de “radicais” aqueles que não compartilham a ideologia “conservadora evolucionista” defendida no texto. Criticava também o “globalismo”.

O trecho que lista desafios do agronegócio na Política Nacional de Longo Prazo é quase um “copia e cola” do Projeto de Nação. 

Procurada pela piauí, a Secretaria de Comunicação do Planalto não respondeu até a conclusão desta reportagem.

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