A diretoria colegiada da ANS, em reunião realizada em dezembro. “O objetivo é ampliar e simplificar o acesso dos brasileiros aos planos de saúde", disse a agência, em um texto de divulgação Foto: Reprodução/ANS
Um plano de saúde “Melhoral e copo d’água”
O apelido para a inovação da ANS faz sentido: um contrato em que a cobertura não inclui emergências, internações ou tratamentos de câncer
No último dia 10, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) deu o primeiro passo do que pode ser uma mudança drástica no mercado dos planos de saúde. A autarquia aprovou a realização de uma consulta pública sobre a implementação, em caráter experimental, de um tipo de plano barato e com cobertura baixíssima. Não permite atendimentos de emergência nem internações. Não inclui tratamento para câncer, autismo ou outras condições médicas, tampouco exames essenciais para a detecção de doenças graves, como tomografias e ressonâncias.
No jargão técnico, o que a ANS pretende fazer se chama sandbox regulatório – uma medida por meio da qual as agências reguladoras flexibilizam normas e permitem que empresas privadas (no caso, as operadoras de planos de saúde) testem uma nova prática por um determinado período de tempo sem risco de serem punidas. O “plano para consultas médicas estritamente eletivas e exames”, como a ANS vem chamando a nova modalidade, atende a um pleito antigo das empresas do setor.
A decisão foi aprovada por unanimidade pela diretoria colegiada da ANS e anunciada como uma boa notícia. “O objetivo é ampliar e simplificar o acesso dos brasileiros aos planos de saúde, aumentando a oferta e a diversidade de produtos na saúde suplementar”, disse o texto de divulgação da agência. Mas médicos e especialistas no assunto temem que seja o início de um processo de precarização ainda maior do acesso à saúde suplementar no Brasil.
A tese da ANS e das grandes empresas do setor é de que é preciso oferecer planos de saúde mais baratos para brasileiros que, hoje, não são capazes de arcar com a modalidade tradicional e sofrem nas filas de hospitais públicos. Segundo eles, esse grupo consiste sobretudo de trabalhadores informais, desempregados e idosos. Por tabela, além de beneficiar essas pessoas, diz a ANS, o novo plano pode ajudar a desafogar o Sistema Único de Saúde (SUS).
Os especialistas contestam essa tese por dois motivos. Primeiro, alegam que um plano de saúde com cobertura tão precária vai inevitavelmente empurrar seus clientes para o SUS sempre que eles ficarem doentes ou precisarem de um atendimento mais complexo. Segundo, dizem se tratar de uma proposta que fere a Lei dos Planos de Saúde. Em vigor desde 1998, ela obriga as operadoras de planos a cobrir atendimentos de urgência e emergência. Mesmo o tipo mais simplificado de plano que existe hoje, o ambulatorial, garante atendimento de urgência, emergência e internação por até doze horas. Também abarca tratamentos como quimioterapia, radioterapia e hemodiálise.
Soma-se a isso a percepção de que a ANS está tomando decisões sem o devido debate. A Diretoria de Normas e Habilitação de Produtos da agência, responsável por elaborar a proposta que foi aprovada, dispensou a realização de uma análise de impacto regulatório (AIR), medida adotada quando se quer dimensionar o impacto de uma nova regra. Nenhum gerente, coordenador ou diretor adjunto dessa diretoria assinou a proposta, que foi elaborada por um único especialista e endossada pelo diretor responsável, Alexandre Fioranelli. A criação desse novo tipo de plano também não foi discutida até agora com o Ministério da Saúde. É de se esperar que fosse, já que mudanças regulatórias na saúde privada inevitavelmente impactam o SUS.
A decisão da ANS prevê a realização de uma audiência pública online no dia 25 de fevereiro. A consulta pública, por sua vez, será aberta na terça-feira (18), com duração de 45 dias. Depois de colhidas as manifestações da sociedade, a diretoria vai deliberar se aprova o início do sandbox regulatório. Caso confirme a ideia, as operadoras de saúde poderão oferecer o novo plano de saúde por dois anos. Só ao fim desse prazo experimental é que a ANS decidirá se o plano poderá ser comercializado em definitivo.
“O brasileiro tem o direito de poder escolher o produto de saúde que é melhor para ele”, disse Fioranelli, na reunião da ANS no dia 10. O novo plano, se aprovado, funcionará na modalidade “coletivo por adesão” – isto é, será ofertado para empresas e entidades sindicais ou setoriais, mas deve ser flexibilizado para permitir também a adesão de pessoas sem vínculo empregatício. O plano, além disso, terá coparticipação de até 30% – ou seja, o usuário terá que pagar até 30% do custo das consultas e exames.
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Questionada pela piauí, a ANS afirmou que não há problema em propor o novo tipo de plano sem endosso das áreas técnicas, como foi feito, “já que não existe na estrutura regimental a obrigatoriedade de um número mínimo de servidores para assinatura de documentos como notas técnicas”. Disse também que não há afronta à Lei dos Planos de Saúde. O sandbox regulatório, segundo a ANS, está respaldado na Lei 9.961/2000, “que atribuiu à ANS competência para ‘decidir sobre o estabelecimento de subsegmentações’” de planos de saúde (no linguajar técnico, o novo plano de saúde é uma subsegmentação dos planos ambulatoriais, os mais baratos que existem hoje).
Essa leitura, contudo, é contestada por estudiosos da área. “A lei é clara ao estabelecer que a cobertura de emergência e urgência é obrigatória para todos os tipos de plano”, diz o advogado Rafael Robba, cuja tese de doutorado pela USP trata da cobertura assistencial das operadoras de saúde. “A permissão para a ANS subsegmentar planos não afasta essas exigências mínimas.”
Lucas Andrietta, coordenador do Programa de Saúde do Instituto de Defesa do Consumidor (Idec), tem opinião similar: “Qualquer competência atribuída à agência deve obedecer às leis. Não é possível que uma lei ‘permita’ à agência descumprir outra lei.”
A proposta da ANS não é propriamente nova. Há mais de uma década, empresas do setor pleiteiam a permissão de criar planos mais baratos e com cobertura restrita. Seu principal objetivo é conquistar um público que, hoje, costuma recorrer aos chamados “cartões de desconto” – serviços pré-pagos que abatem o preço de consultas, exames e procedimentos. A ANS diz que 50 milhões de brasileiros usam cartões desse tipo e frequentam clínicas populares, estimativa, contudo, feita pelas próprias operadoras. Pegando em cheio esse público, a agência calcula que entre 8 e 10 milhões de pessoas podem aderir ao novo plano de baixo custo.
O pleito das operadoras veio à tona pela primeira vez em 2016, encampado pelo então ministro da Saúde Ricardo Barros, que se referia ao projeto como um “plano de saúde simplificado” (o eufemismo voltou à tona recentemente, junto de outros, como “plano popular” ou “acessível”). Na época, Barros apresentou a proposta à ANS, mas a autarquia a rejeitou. O ministro então tentou aprová-la por meio de um projeto de lei na Câmara dos Deputados. Contava com o apoio do relator, o então deputado e hoje senador Rogério Marinho (PL-RN), mas o texto não avançou. No governo Bolsonaro, a relatoria passou para Hiran Gonçalves (PP-RR), e nada. Hoje, as chances de que a medida prospere no Congresso são ainda menores. O atual relator, Duarte Junior (PSB-MA), descartou mudanças que tornem os planos ambulatoriais ainda mais restritos, em um parecer que apresentou em setembro de 2023 e que ainda não foi a votação.
Em mensagem enviada à piauí, Duarte Junior se mostrou cético com a proposta da ANS. “No início, a ideia de um plano mais barato pode parecer atraente. Mas, na prática, esses planos segmentados poderão se tornar a única opção disponível para milhões de brasileiros, enquanto os planos mais completos se tornam inviáveis financeiramente”, afirmou. “Permitir esse tipo de flexibilização sem garantir que o acesso à saúde seja mantido e melhorado é um erro que poderá custar caro para a sociedade.”
A médica Lígia Bahia, professora do Instituto de Estudos de Saúde Coletiva (Iesc/UFRJ) e integrante do Conselho da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), acredita que, diante da impossibilidade de aprovar o novo plano no Congresso, a ANS esteja tentando aprová-lo pela via burocrática. “É uma manobra regulatória: estão impondo regras administrativas de alto impacto para os consumidores sem alterar a legislação”, ela disse à piauí. Bahia apelidou o projeto da ANS de “plano Melhoral e copo d’água”, por considerar que ele oferece uma proteção à saúde tão eficaz quanto a de um analgésico tomado com água.
Um dos riscos apontados por ela e outros especialistas é de que, uma vez aprovado o sandbox regulatório, muitas empresas contratem o novo tipo de plano para seus funcionários, dificultando seu acesso a tratamentos médicos e criando um cenário de precarização. “A preocupação é real, especialmente com empresas menores, associações e entidades que têm planos por adesão. Neles, o risco é ainda maior”, disse à piauí o procurador da República Hilton Melo, que coordena o Grupo de Trabalho sobre Planos de Saúde do Ministério Público Federal.
O sandbox começou a ser gestado no mandato de Paulo Rebello, que presidiu a ANS até dezembro passado (ele acaba de ser contratado por uma corretora de planos de saúde; na autarquia, é comum que diretores façam carreira no mesmo mercado privado que cabe a eles fiscalizar). Lula indicou como novo presidente Wadih Damous, ex-deputado federal do PT que hoje é Secretário Nacional do Consumidor, no Ministério da Justiça e Segurança Pública. Sua nomeação precisa ser aprovada pelo Senado, que ainda não marcou data para a realização de sua sabatina.
Há dois meses, por iniciativa de Rebello, a ANS criou regras internas para a realização de sandboxes regulatórios. Nos últimos meses de sua gestão, já se comentava nos bastidores que os planos ambulatoriais e os cartões de desconto provavelmente seriam os primeiros alvos da agência, o que agora se confirma.
Na reunião em que foi aprovada a consulta pública sobre os novos planos, no último dia 10, o diretor Alexandre Fioranelli fez uma apresentação de slides em defesa da proposta. “O sandbox é indicado quando existe demanda para flexibilização regulatória para que a experimentação ocorra”, dizia uma das telas. Eliane Medeiros, diretora de Fiscalização da ANS, reclamou das críticas que o projeto vinha recebendo. Segundo Medeiros, os consumidores estavam sendo influenciados por “notícias erradas e distorcidas”. Dias antes, o site Jota havia revelado que a proposta de sandbox não tinha passado pela área técnica da autarquia. Medeiros afirmou que houve, sim, análise técnica. Citando a frase de Nelson Rodrigues segundo a qual “toda unanimidade é burra”, deu a entender que a proposta não foi assinada pelos técnicos da área porque houve discordâncias.
Entre estudiosos da área e ex-integrantes da ANS, a decisão repercutiu mal – tanto pelo conteúdo quanto pela forma adotada pela autarquia. “Isso vai piorar o resultado da saúde suplementar brasileira, porque o consumidor, quando tiver alguma doença, não vai poder se tratar. Como vai ser isso?”, indaga a advogada e ex-diretora da ANS Maria Stella Gregori. “As operadoras vão conseguir vender esses planos porque eles vão ser um produto mais barato, mas o consumidor, achando que vai ter o atendimento integral assim como tem hoje, não vai ter.”
Em resposta aos questionamentos da piauí, a ANS afirmou que o novo tipo de plano é “voltado para uma camada da população que hoje ocupa o que se chama de ‘terceira via’ da saúde” – isto é, “pessoas que não desejam o atendimento pelo SUS, que não possuem planos de saúde, mas que têm condições de pagar por algum serviço na rede privada, normalmente com o objetivo de antecipar prazos de atendimento e não precisar ficar esperando nas filas de atendimento da rede pública”.
De acordo com a ANS, quando se trata de atendimento de emergência, os brasileiros que fazem parte desse público-alvo “já são o que se denomina de ‘SUS dependentes’”. Segundo esse raciocínio, os clientes não precisam mesmo que o plano os proteja em situações críticas, já que, não importa o problema, eles recorreriam mesmo a hospitais públicos. A autarquia argumenta ainda que o novo plano pode ajudar a reduzir a fila do SUS na assistência primária, porque pessoas que hoje dependem de atendimento no sistema público estarão cobertas por planos.
É a mesma posição da Fenasaúde, federação que representa as maiores operadoras de planos de saúde do Brasil. À piauí, a entidade afirmou, em nota, que a decisão da ANS “abre a possibilidade de ser oferecida mais uma alternativa de assistência aos beneficiários, preservando todas as demais opções de planos hoje disponíveis. Afirmou ainda que ela pode “contribuir para tornar os planos de saúde mais acessíveis” e “aliviar o SUS das filas de espera de consultas eletivas e exames”.
A Associação Brasileira de Planos de Saúde (Abramge), por sua vez, disse que “considera a proposta extremamente relevante para ampliar o acesso da população a serviços essenciais de saúde” e que “não há entraves legais que inviabilizem essa iniciativa”. Em coro com a Fenasaúde, afirmou que o modelo “pode contribuir significativamente para desafogar o SUS”.
Há quem enxergue um desfecho oposto. “Na verdade isso vai gerar uma sobrecarga no nosso sistema de saúde. As pessoas vão acabar voltando para o SUS, que vai arcar com as doenças, as necessidades e as despesas assistenciais. Isso pode provocar efeitos deletérios no longo prazo”, diz Andrietta, do Idec. Nos bastidores, críticos da proposta têm se referido a ela como o “plano de saúde nem-nem”, por oferecer uma cobertura tão restrita.
Para as operadoras de saúde, a proposta, caso vingue, matará dois coelhos com uma única cajadada. Primeiro, derrubará uma proteção garantida por lei, abrindo um precedente que pode resultar em novas brechas na regulação da saúde suplementar. E, em segundo lugar, permitirá que essas operadoras disputem mercado com os cartões de descontos e clínicas populares, que surgiram no Brasil como alternativas de baixo custo na saúde.
“Trata-se de uma manobra administrativa da maior gravidade, com um objetivo claro: criar um mercado novo, tentando liberar planos de menor cobertura para competir com os cartões de desconto. Pauta das operadoras absorvida mais uma vez pela ANS, um desserviço aos consumidores e ao sistema de saúde”, disse à piauí Mario Scheffer, professor do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP.
A piauí também entrou em contato com o Ministério da Saúde e a Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), para saber como essas entidades veem a possibilidade de implantação do novo plano. O Ministério respondeu com uma nota curta: “O Sistema Único de Saúde (SUS) tem como princípio fundamental garantir atendimento integral, universal e gratuito a toda a população. Sobre a proposta da ANS, que ainda está em fase de análise, o Ministério da Saúde acompanha de perto debates sobre este tema e segue atento às discussões em andamento.” A Senacon não respondeu. Wadih Damous, indicado por Lula para assumir a presidência da ANS, disse à piauí que não vai se manifestar sobre questões relativas à agência antes de ser submetido à sabatina no Senado.
* Reportagem atualizada às 11h52 de 17/02/2025 para incluir o posicionamento do Ministério da Saúde.