O trauma no 50º Batalhão de Polícia Militar do Interior, em São Paulo: “Eu disparei o fuzil para me defender”, disse Gouveia. “Eu estava em surto. Nem ouvi o barulho dos tiros” CRÉDITO: VITO QUINTANS_2024
“Vocês vão ter que me ouvir”
A história do policial exemplar que assassinou dois colegas com tiros de fuzil
Em fevereiro de 2023, viralizou nas redes sociais um vídeo em que o primeiro-sargento Claudio Gouveia, da Polícia Militar de Salto, no interior de São Paulo, aborda educadamente um motoqueiro. Nas imagens, o policial explica que está havendo uma operação destinada a garantir a segurança das rodovias paulistas: “Desce um pouquinho, põe [a moto] no pezinho, apresenta para a gente o documento do senhor.” Em um país tão habituado à truculência policial, a BBC News Brasil veiculou uma reportagem na qual classifica Gouveia como um profissional “calmo, educado, respeitoso e, principalmente, gentil”. A reportagem rendeu alguma fama ao sargento, além do título de “policial exemplar”. Para seus colegas de farda, fazia sentido. Gouveia era um policial sensível, compartilhava alegrias e angústias com os companheiros de trabalho e tinha um aguçado senso de humor.
Em maio de 2018, quando ainda era segundo-sargento, Gouveia atendeu a uma ocorrência de estupro, cuja vítima era uma menina de 13 anos. Ciente da sensibilidade do caso, passou horas conversando com a família da vítima para tentar identificar o agressor. Gouveia empenhou-se em localizá-lo, e conseguiu. Era um vizinho, que assumiu o crime e foi preso. Na mesma época, Gouveia foi chamado para socorrer uma vítima de esfaqueamento, que acabou morrendo. De novo, fez de tudo para achar o criminoso e prendê-lo. Também conseguiu. Sucessos como esses acabaram rendendo a ele uma Láurea de Mérito Pessoal, a primeira distinção da sua carreira.
Em julho de 2020, Gouveia foi promovido a primeiro-sargento. Para comemorar, saiu com a mulher para jantar no restaurante favorito dos filhos. Sua carreira seguia de vento em popa. Em janeiro de 2023, num único dia, o capitão Josias Justi, chefe da PM de Salto, registrou de uma só vez três elogios ao registro militar de Gouveia – “por seu desempenho e dedicação, o policial é um exemplo a ser seguido por seus pares e subordinados”, escreveu o capitão. Em março, o chefe acrescentou novo elogio à ficha do sargento. Em abril, mais um. Gouveia queria ser alçado a subtenente e, com seus bons exemplos, mostrava estar no caminho certo para chegar lá.
Um mês depois do registro do último elogio, na manhã do dia 15 de maio, uma segunda-feira, Gouveia, 52 anos de idade e 32 de carreira, pegou um fuzil de calibre 5.56, o único disponível na companhia de Salto, se dirigiu à sala do capitão Josias Justi, abriu a porta e disparou treze tiros. Nove atingiram o capitão na cabeça, no tórax, nas costas, no braço e na perna direita. O capitão morreu na hora. Outros quatro tiros acertaram o sargento Roberto da Silva, três no tórax e um no braço esquerdo. O sargento também morreu na hora.
A cidade de Salto fica na Região Metropolitana de Sorocaba, a uma hora e meia de carro de São Paulo num dia de trânsito tranquilo. Em certos aspectos, se assemelha a qualquer cidade brasileira pequena ou média. Boa parte dos 134 mil moradores trabalha nas indústrias que margeiam as rodovias e gasta seu dinheiro no comércio local – mercadinhos, hortifrútis, farmácias, creches, dentistas, lojas de móveis. A diferença é o sossego nas ruas, com poucos transeuntes, e nas praças, quase sempre vazias. À primeira vista, a sensação de esvaziamento é tão viva que fica difícil imaginar para quem são vendidos todos os chuveiros elétricos das lojas de construção do Centro da cidade.
O Dia das Mães do ano passado, que caiu em 14 de maio, foi uma amostra do clima plácido em que trabalham os policiais militares de Salto. Não houve nenhuma ocorrência grave e, no começo da noite, os três sargentos escalados para o serviço dominical – Leandro Barbosa, Alex Barreto e Roberto da Silva – repousavam no alojamento da 3ª Companhia do 50º Batalhão de Polícia Militar do Interior (BPMI). Conversavam banalidades, até Barbosa dizer que estava preocupado com a segurança da equipe. Na terça-feira anterior, dia 9 de maio, Barbosa havia passado quatro horas tentando acalmar a cabo Camila Gouveia, de 32 anos, casada com o primeiro-sargento Gouveia. Durante uma tarde de ronda pela cidade, Camila (como ela é chamada na PM) reclamou que a escala de serviço proposta pelo capitão Justi estava prejudicando sua vida pessoal, e por isso ela o mataria.
Os outros policiais entenderam a declaração como um blefe ou desabafo, mas Barbosa achou prudente comunicá-la à chefia. Na sexta-feira, dia 12, o capitão Justi, que já vinha tendo dores de cabeça com Camila, decidiu então recolher a arma da policial e a encaminhou para o Centro de Atenção Psicossocial. Camila reagiu à notícia dando dois socos contra uma pilastra. Levada ao hospital, saiu com a mão direita engessada. A situação piorou quando Camila descobriu que o seu revólver, recolhido mais cedo, havia sido entregue ao marido. De saída do hospital, ela dirigiu até o trabalho, pois não queria voltar para casa sem a arma. Quando chegou à Companhia, se trancou num alojamento e os policiais a ouviram gritar no telefone com alguém que parecia ser o seu marido. Não se passou muito tempo e Gouveia apareceu na Companhia com o revólver da sua mulher em mãos.
Dois colegas alertaram Gouveia para não entregar a arma para Camila. Ele respondeu que conhecia sua mulher e sabia que ela se acalmaria. Em seguida, ao entregar o revólver, pediu que Camila entrasse em sua caminhonete. Ela disse que queria voltar para casa sozinha, de bicicleta. O casal seguiu caminhos distintos.
Então, naquela noite do Dia das Mães, o sargento Leandro Barbosa temia que, a qualquer momento, Camila entrasse na Companhia com o revólver em punho e atirasse no capitão ou em qualquer outra pessoa que estivesse à sua frente. Mais tarde, ele observaria: “Conheço a Camila há seis anos e ela sempre foi insubordinada e rebelde com o comando. Não sei por que nunca foi penalizada. Se eu fosse o chefe, com certeza a teria penalizado.”
Mas, ao contrário dos receios de Barbosa, a noite transcorreu com tranquilidade. Na segunda-feira de manhã, com Sol pálido e vento frio, Gouveia chegou à Companhia faltando 15 minutos para as 9 horas. Estava fardado, mas a esposa, que também desceu do carro, estava à paisana. Camila tinha ido apenas buscar os documentos para regularizar o afastamento médico do trabalho. Depois de retirar a papelada na administração, ela se despediu dos colegas que chegavam para o expediente e tomou a estrada rumo à Unidade de Saúde Integrada da PM de Votorantim. O filho caçula, um bebê de 11 meses, foi a sua companhia no trajeto de 50 km pela Rodovia Santos Dumont.
Naquela manhã, o fuzil 5.56 estava sob os cuidados do sargento Alex Barreto, cuja viatura estacionou na companhia às 9h20. Antes que Barreto saísse do carro, o sargento Claudio Gouveia o abordou e pediu a arma emprestada, dizendo que naquele dia faria muitas operações na rua. Barreto disse que emprestaria, mas pediu que Gouveia pegasse o fuzil mais tarde, quando estivesse saindo para a patrulha.
O capitão Justi, o chefe, chegou em seguida e convocou os sargentos Alex Barreto e Roberto da Silva para conversar na sua sala. Quis saber o que tinha acontecido depois do afastamento de Camila na sexta-feira anterior. Soube então que ela acabara engessando a mão. Em tom preocupado, disse: “Vou ter que conversar com ela.” Enquanto isso, alguns jovens policiais foram para o pátio externo aguardar a instrução de uso de arma longa que Gouveia ministraria. A certa altura, Gouveia entrou na administração da Companhia e pediu que todos os policiais fossem ao pátio. Os colegas ficaram confusos, já que nem todos fariam o treinamento. Quando um cabo sinalizou que não sairia, Gouveia gritou: “Vai lá pra fora, caramba!”, e, para tranquilizá-lo, enfatizou: “Não é nada com você.”
O grupo que se formou na área externa viu Gouveia se aproximando da entrada principal da Companhia, mas estranharam ao vê-lo se trancar do lado de dentro da porta gradeada. Ficou em posição de sentido, bateu continência para os colegas e se virou, vasculhando o interior do prédio com o fuzil em posição de tiro. Caminhou rumo à sala do capitão Justi. Queria, segundo contou depois, conversar sobre o que havia ocorrido com sua mulher na sexta-feira. “Mas, quando cheguei perto da porta, ouvi o capitão falando o nome da Camila.” Ele ficou nervoso. Abriu a porta e disparou os tiros de fuzil contra o capitão Justi e o sargento Roberto da Silva.
Assim que os tiros começaram, o sargento Alex Barreto, que estava na sala, encolheu-se e berrou. Então, Gouveia começou a gritar: “Vocês vão ter que me ouvir.” Quando os estampidos cessaram, Barreto levantou o rosto e viu os corpos do capitão e do sargento estirados no chão, enquanto o atirador retomava seu estado de normalidade. “Você não tem nada a ver com isso, não vou atirar em você”, avisou Gouveia. “Vou precisar de um negociador. Pode ser você?” Barreto assentiu ao pedido. Quando os dois saíram da sala, Barreto correu rumo à saída da Companhia, e Gouveia subiu para o segundo andar, onde encontrou o cabo Márcio da Silva.
– Sargento, por que isso? O que está acontecendo? – perguntou Silva, assustado, segundo rememorou em seu depoimento.
– Márcio, cadê a sua arma? – perguntou Gouveia.
– Sargento, não vou te dar a minha arma. Vamos conversar, a gente é amigo.
– Márcio, me dá sua arma – insistiu Gouveia.
– Sargento, vamos conversar…
Gouveia, então, mudou de assunto abruptamente e perguntou:
– Eu preciso de um intermediador. Você pode ser meu intermediador?
– Posso – concordou Silva.
– Então vem comigo.
Gouveia levou Silva até uma sala da administração e ordenou que ele chamasse o comandante-geral do 50º Batalhão de Polícia Militar do Interior, Emerson Drague. Também pediu para chamar os jornalistas, pois queria falar à imprensa sobre o crime que acabara de cometer. Calmo, explicou: “Eu só quero ser ouvido.” E logo fez outra exigência: “Eu quero que você faça uma live para mim, Márcio.” O cabo Silva disse que estava sem o celular. Gouveia ordenou que fosse buscá-lo. Quando Silva voltou com o aparelho em mãos, viu que Gouveia havia se rendido e fora algemado por outro agente. O cabo perguntou por que o sargento cometeu os crimes, então Gouveia se justificou: “O capitão Josias era uma pessoa má. E o sargento Silva influenciava o capitão, era ele que montava as escalas.”
Na Unidade de Saúde em Votorantim, um policial abordou Camila para avisá-la do crime cometido pelo seu marido. Em lágrimas, com seu bebê no colo, ela ligou para um advogado cujo número havia encontrado na internet uma semana antes. O criminalista Rogério Augusto Duarte, de Campinas, pegou imediatamente a estrada para Salto. Ao chegar, cerca de uma hora depois, encontrou Gouveia algemado no pátio da Companhia e assumiu a defesa do sargento ali mesmo.
Em um vídeo gravado pouco antes da chegada do advogado, Gouveia explicou a motivação dos assassinatos. Com seu rosto oval, testa franzida, disse: “Quando ele [o capitão Justi] me trocou de escala, mexeu na nossa vida […]. Eu implorei, expliquei a situação, mas ficou por isso mesmo.” Gouveia enumerou uma série de problemas que teve com o capitão e concluiu: “Estou estressado com isso, não aguento mais. Não estou dormindo, o meu casamento acabou. Eu abri aquela porta para dar o pagamento que ele merece, é só isso. Ele não deveria ter destruído a minha vida. […] Se alguém quiser ouvir, esse é o depoimento.”
Exibidos em primeira mão pelo Fantástico, fragmentos do vídeo também foram reproduzidos pela Folha de S.Paulo e pelo G1. As notícias do crime, além do choque natural, provocaram um espanto duplo. Dois assassinatos em Salto? Logo na cidade que registrou apenas quatro homicídios por 100 mil habitantes em 2022, uma taxa que rivaliza com a Finlândia? E o autor dos crimes é o sargento Gouveia? O policial exemplar?
A íntegra da reportagem, disponível para assinantes da piauí, pode ser lida aqui.
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