Em 1987, o senador democrata Gary Hart, tido como o mais promissor candidato à presidência da República, precisou desistir da candidatura após ter sido flagrado em companhia de uma jovem modelo
Poder e sexo em Brasília
Parece haver um acordo tácito entre os jornalistas políticos de que questões morais, como o adultério, devem ser mantidas na esfera privada, a não ser que comprometam a ética pública do sujeito
O caso do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso com a jornalista Miriam Dutra, recentemente escancarado por ela em uma publicação espanhola e replicado na imprensa brasileira, reacendeu a discussão sobre a fronteira do que deve ou não ser notícia no que se refere à vida íntima dos homens públicos. Parece haver um acordo tácito entre os jornalistas políticos de que questões morais, como o adultério, devem ser mantidas na esfera privada, a não ser que comprometam a ética pública do sujeito.
Ao longo da história, os políticos brasileiros nunca se constrangeram em manter relações extraconjugais em público. O adultério, sobretudo o masculino, é largamente aceito e raramente discutido. Quando o assunto vem à tona, em geral a personalidade exposta já está morta há muito e suas “traições” são tratadas como curiosidade.
As biografias de políticos brasileiros estão recheadas de aventuras sexuais. O presidente Getúlio Vargas costumava escapar de seu gabinete durante a tarde para encontrar seus amores secretos – que iam de vedetes a damas da sociedade do Rio de Janeiro, então borbulhante capital federal. Juscelino Kubitschek, afora os inúmeros romances fortuitos, manteve por anos um caso com a socialite Maria Lúcia Pedroso, mulher do deputado José Pedroso, um dos mais próximos colaboradores do presidente. A mudança da corte para Brasília não alterou em nada o comportamento dos poderosos. Pelo contrário. Longe de suas famílias, que com frequência se recusavam, e até hoje se recusam, a se mudar para a insípida capital, casos extraconjugais ficavam (e ainda hoje ficam) mais fáceis.
Embora os políticos circulem com suas amigas, namoradas, casos, amantes, ou como quer que sejam chamadas suas parceiras, muitas vezes eles caem em armadilhas, raramente montadas pela imprensa. Luiz Inácio Lula da Silva foi o primeiro político a sofrer as consequências de seu descuido da esfera do privado. Na campanha presidencial de 1989, na disputa do segundo turno com o então candidato Fernando Collor de Mello, caiu numa cilada por causa de sua relação bastante próxima com uma psicóloga de Brasília. No debate final, Collor, no meio de uma discussão sobre casas populares, saiu-se com um comentário que pareceu não fazer o menor sentido do lado de cá da tevê. Disse que Lula possuía “aparelhagens ultramodernas e sofisticadas de som”, que ele próprio não tinha tido “a oportunidade de ter”.
Lula se calou e daí em diante se perdeu no debate. Toda a imprensa política sabia da proximidade de Lula com a psicóloga. Antes do início da campanha, o ainda deputado era visto publicamente em companhia da moça, que lhe havia sido apresentada por uma conhecida jornalista da TV Globo, íntima do então deputado Bernardo Cabral – que, como Lula, era casado. Lula perdeu as eleições e Cabral tornou-se ministro da Justiça de Collor. Em Brasília, comentava-se que teria sido Cabral quem informara Collor sobre a aparelhagem de som com que Lula presenteara a amiga. Pelos bons serviços prestados, o suposto X9 ganhou a pasta.
Mais tarde Bernardo Cabral provaria do mesmo veneno, quando foi defenestrado do cargo ao se envolver com uma colega, a ministra da Fazenda, Zélia Cardoso de Mello. O próprio casal tratou de escancarar a relação: durante uma festa, os dois dançaram um bolero, cheek to cheek. A despeito de o salão estar lotado de jornalistas, apenas um veículo divulgou a cena. A partir daí, os outros caíram matando. E essa foi, muito provavelmente, a primeira vez que a imprensa brasileira repercutiu um caso amoroso de político casado.
Nos Estados Unidos, até o começo dos anos 80, a imprensa tinha por hábito não noticiar a vida íntima dos homens públicos. Importantes presidentes como Franklin Roosevelt, John Kennedy e Lyndon Johnson eram notórios adúlteros, e a imprensa fazia vista grossa. Essa postura mudou de forma radical depois de 1987, quando o senador democrata Gary Hart, tido como o mais promissor candidato à presidência da República, precisou desistir da candidatura após ter sido flagrado em companhia de uma jovem modelo. Na verdade, não foi o affair em si que arruinou a carreira política de Hart: o que a inviabilizou foi o fato de ele negar o envolvimento com a moça.
Jornalistas do Miami Herald receberam uma denúncia de uma amiga da modelo e decidiram montar tocaia na porta da jovem, em Washington. Durante dois dias viram o candidato saindo da casa com a namorada. Quando pressionado pelos jornalistas, o senador não deu importância ao caso, acostumado que estava, como os demais políticos, a ter sua vida íntima preservada. Quando, no entanto, o affair de Hart foi estampado na primeira página do jornal, acompanhado de fotos comprometedoras, o caso mudou de figura. Ao insistir em negar o romance, o senador teria sido desonesto. Sua ruína, na verdade, se deu muito mais pelo fato de sair da história como mentiroso do que como adúltero. Naquela época, os americanos ainda estavam traumatizados com o impeachment de Nixon, treze anos antes, em razão do escândalo de Watergate. Como Hart, Nixon negara à exaustão o envolvimento com a escuta na sede dos Democratas.
O Hartegate foi o divisor de águas no modo como as infidelidades conjugais de homens públicos passaram a ser tratadas. As feministas se mobilizaram num movimento que considerava o adultério uma espécie de “traição política” – e, como tal, precisava ser exposto. Tanto que, anos depois, Bill Clinton quase sofreria um processo de impeachment por seu envolvimento com uma estagiária, agravado pelo fato de ter admitido que mentira para os americanos. Livrou-se da cassação após um humilhante pedido público de desculpas.
No Brasil, o adultério continua sendo preservado, a não ser que o caso envolva relações promíscuas dos agentes públicos com o poder privado. Em 2007, Mônica Veloso, também jornalista, veio a público revelar seu caso com Renan Calheiros, então presidente do Senado – e casado. Veloso, que teve uma filha com o então senador pelo PMDB, soltou o verbo por motivação financeira: Calheiros não estaria depositando a pensão da criança. No entanto, o componente mais explosivo da inconfidência de Veloso, que transformou o caso num escândalo nacional, foi o fato de que o aluguel de 4 400 reais do apartamento onde ela vivia era pago por um lobista da empreiteira Mendes Júnior. Calheiros perdeu a presidência do Senado e só não foi cassado graças à intervenção do então deputado Michel Temer, presidente do partido, que mobilizou a bancada na defesa do correligionário.
Assim como ocorreu com Calheiros, o que causou espécie nas declarações de Dutra não foram as revelações de que Fernando Henrique e ela tiveram um affair durante seis anos. Mas, sim, dizer que o ex-presidente transferia o dinheiro da pensão da criança por intermédio de uma empresa de exportação, a Brasif, do empresário Jonas Barcellos, que durante anos teve o monopólio dos free-shops nos aeroportos. Fernando Henrique negou ter qualquer relação com o contrato firmado entre a empresa e a jornalista.
Se o adultério parece longe de mobilizar os jornalistas de Brasília, o mesmo não se dá com as transações comerciais por trás dessas relações. Permanecemos fiéis ao princípio de que a notícia só é escandalosa se vier acompanhada de um empresário amigo.
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