A política nas periferias
“Vai começar os homem”, dizia minha mãe sobre o horário eleitoral na tevê
Fim de tarde, sento na frente do computador, entro no Facebook e encontro uma mensagem inbox. É um convite da piauí. Levo um susto. A piauí é uma daquelas revistas que não fizeram parte da minha vida. Pensei: o que posso dizer de interessante para o leitor de uma publicação como essa? Na hora, percebi que a coisa está ficando realmente preta e que eu tinha conquistado a oportunidade de ocupar mais um espaço de expressão.
Ao sair da redação, em Ipanema, na Zona Sul do Rio, lembrei que não precisaria passar sufoco para chegar à minha casa em São Gonçalo, município a uns trinta quilômetros da capital fluminense. Desta vez, eu iria para o bairro do Catete, também na Zona Sul carioca, onde troquei a hospedagem no apartamento de uma professora universitária, amiga da amiga de uma amiga – sim, isso mesmo! –, pelo cuidado de suas lindas gatinhas enquanto ela viaja. Brigitte e Pinga têm me feito companhia nas últimas semanas. Havia tempos, eu precisava me aquietar num lugar mais perto de tudo para focar em minha tese de doutorado. “Oba! Com vinte reais vou confortavelmente de Uber para o Catete!”, pensei. Moradora a vida inteira da periferia, negra, ralando entre estudo e mil trabalhos, eu reafirmava mentalmente que já tinha mesmo passado a hora de a política ser vista de outro lugar.
O trajeto não era longo como de costume. Em geral, quando quero pensar com calma, conto com as duas horas no busão. Naquele dia, porém, foi diferente. No Uber, me lembrei da Universidade Federal do Rio de Janeiro, a UFRJ, onde cursei serviço social. Foi lá que tive a certeza de algo que me intrigava desde criança: alguma coisa no mundo estava fora do eixo. Foi a primeira vez que realmente entendi o que era nascer na periferia e o que significava ser negra. Eu não compreendia por que, numa universidade pública, havia tanta gente diferente de mim e tão parecida entre si. Sapatos, roupas, estilo, cor da pele, jeito de falar, lugares que frequentavam. Certa vez, uma colega chegou a me dizer que nunca tinha andado de trem. Aquilo me chocou. O trem para mim era algo tão óbvio, tão presente no meu dia a dia – a ponte para “chegar à cidade”, como diz minha mãe.
Entrei na faculdade em 2005 e logo consegui uma bolsa de iniciação científica. Ganhava 300 reais por mês. Graças a isso, pude abrir minha primeira conta no banco e recebi um cartão no meu nome. Certo dia, fui fazer uma pesquisa num Centro de Referência de Assistência Social (Cras), onde os pobres necessitam cumprir 1 milhão de regras para ter acesso a certos “benefícios”. A funcionária me perguntou se eu estava esperando atendimento. Ela nem sequer imaginou que a pesquisadora era eu.
Com o passar do tempo, me flagrei transitando cada vez mais por lugares onde quase ninguém se parecia comigo. Notava que minha presença frequentemente causava surpresa, incômodo, hostilidade e, às vezes, até uma simpatia fora do comum. Esses ambientes me permitiam trocar ideias com pessoas que nunca terão experiências como a que vivi no Cras. Em paralelo, também vi acontecer um fenômeno interessante: se diferentes grupos que compõem a população negra sempre fizeram política, a partir de determinado momento foi a política tradicional que começou a enegrecer, inclusive por causa das redes sociais.
Antes de me mudar para São Gonçalo, vivi muito tempo em Realengo, bairro na Zona Oeste do Rio. Meu pai – eletricista e militar de baixa patente da Marinha – trabalhava em Niterói. Minha mãe deixou o emprego de operária para virar dona de casa em tempo integral e cuidar da gente. Somos três irmãos. Ela se lembra até hoje de como fazia as bolsas e as vassouras nas fábricas onde trabalhou. Todo domingo, nos levava à igreja evangélica em que se converteu. O templo ficava na minha rua, em cima da casa da tia Darcy, vizinha querida e amiga da família até hoje. Já meu pai preferia acordar cedo para desfrutar o domingo em Nova Iguaçu, num campo de terra, vestindo a camisa do time de várzea que defendeu a vida inteira. Atualmente, ele não joga mais. Mesmo assim, todo santo domingo, continua dando pitacos no time pelo celular.
Na minha família, sempre entendemos que votar é importante para “melhorar alguma coisa”, mas minha mãe nunca gostou do horário eleitoral. Quando a programação da tevê era interrompida, ela dizia: “Desliga aí que vai começar os homem.” Era assim que se referia aos políticos. Vinte anos depois, minha mãe segue reclamando do horário “dos homem”, mas agora pego o celular e vejo uma galera muito potente colocando a boca no mundo digital para fazer da internet um espaço de discussão política e gritar por mais representatividade.
As redes sociais vêm cumprindo um papel fundamental nos debates sobre que Brasil democrático é este e para quem se destina. A política “dos homem” está sendo cada vez mais colocada em xeque e setores da população negra e periférica vêm ganhando mais protagonismo nas discussões. Por isso, o primeiro desafio para quem deseja entender o que vai acontecer nas eleições deste ano é superar os estereótipos que definem pessoas negras de forma homogênea. A maioria dessas pessoas sente a política todo dia no próprio corpo – quando vai ao mercado, quando gasta uma grana absurda com passagem, quando constata a precariedade do posto de saúde, quando não sabe a hora que vai chegar em casa porque teve operação policial na favela.
Para mim, mais do que nunca, política e eleição devem ser analisadas também e, principalmente, sob a ótica dos territórios em que os ciclos de crise sempre arrebentam mais pesado. Rose, a moça que trabalha uma vez por semana no apartamento onde estou, me levou a pensar nisso durante uma conversa sobre a viagem que faz para chegar ao emprego. Naquela manhã, ela tinha saído às 6h40 de casa, na Baixada Fluminense, e desembarcado somente às 9h30 no Catete. Enquanto Rose lavava a louça, eu estava na frente do computador vendo e apoiando iniciativas que borbulham diariamente nas periferias e que disputam com “os homem” o sentido do que é fazer política no Brasil de hoje.
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