minha conta a revista fazer logout faça seu login assinaturas a revista
piauí jogos

questões musicais

Porque tudo no mundo acontece

Descobri Cartola no anos 70. Não só eu, mas toda a minha geração. Primeiro foi no LP de Paulinho da Viola, um dos mais belos da música popular brasileira - A Dança da Solidão (1972) - com Acontece. Claro, para Paulinho da Viola, Cartola estava presente desde sempre, mas pra minha geração não. Depois, vieram, ao mesmo tempo, o primeiro LP de Cartola, pela Marcus Pereira e a gravação de Acontece por Gal Costa no LP Temporada de Verão, ambos em 1974.

Eliete Negreiros | 14 dez 2012_12h22
A+ A- A

Descobri Cartola no anos 70. Não só eu, mas toda a minha geração. Primeiro foi no LP de Paulinho da Viola, um dos mais belos da música popular brasileira – A Dança da Solidão (1972) – com Acontece. Claro, para Paulinho da Viola, Cartola estava presente desde sempre, mas pra minha geração não. Depois, vieram, ao mesmo tempo, o primeiro LP de Cartola, pela Marcus Pereira e a gravação de Acontece por Gal Costa no LP Temporada de Verão, ambos em 1974.  Ficamos todos deslumbrados com aquele samba lindo – que melodia! – e com aquela sinceridade, aquela franqueza e delicadeza ao tratar do difícil tema do fim de uma estória de amor.  Diante desta situação desconcertante em que a gente não sabe o que dizer, o que pensar, vem Cartola com aquela simplicidade poética e diz: Esquece nosso amor, vê se esquece, porque tudo no mundo acontece, e acontece que já não sei mais te amar. A partir de então, esta canção seria um dos pilares da nossa educação sentimental.


Acontece, com Paulinho da Viola e Cartola


Com Cartola

Cartola por muitos é chamado de filósofo do samba. A canção popular brasileira ocupa um lugar muito importante na nossa formação, é uma espécie de filosofia moral que nos ajuda a compreender nossa complexidade e a do mundo, e a enfrentar os reveses da vida. Neste sentido é esclarecedor o ensaio de Olgária Matos, Theatrum mundi: filosofia e canção onde ela fala da presença da filosofia moral nas canções brasileiras e da sua importância, pois “A filosofia moral ensina a lidar com os prazeres e dissabores, pois se apenas o impulso bastasse para desfrutar de todos os deleites e fugir das dores, ela perderia sua razão de ser.”

Em Acontece temos uma variação da máxima de Pascal (1663-1662), “o coração tem razões que a razão desconhece”, que aparece também em Aos pés da Santa Cruz (Marino Pinto,Zé Gonçalves): O coração tem razões / Que a própria razão desconhece / Faz promessas e juras / Depois esquece. Ensina Cartola que tudo no mundo acontece. E acontece independentemente de nossa vontade: Se eu ainda pudesse fingir que te amo, Ah! se eu pudesse Mas não posso, não devo fazê-lo, Isso não acontece. A canção ensina que não temos controle sobre nossos sentimentos, eles, como nós, mudam, o coração é inconstante, está sempre em movimento e eu não posso saber nem decidir o que vou sentir amanhã, pois Acontece que o meu coração ficou frio / E o nosso ninho de amor está vazio.

Esta canção colocava o dedo na ferida: Será que os sonhos, sonhos são? Será que Calderon tinha razão? Estaríamos envoltos em quimeras? Ilusões perdidas? Estas ainda são questões. Enfim, naqueles anos 70 a gente buscava quebrar a casca da aparência, encontrar alguma verdade, algo que para nós fizesse sentido. Aí, quando vem Cartola, com simplicidade e franqueza, falando  sobre seus sentimentos e pensamentos, sobre o mundo, ouvir isso era uma iluminação, uma iluminação profana. Acontece era um hino de franqueza amorosa. Sinceridade, poesia, amizade. Cartola falava pela gente. O mundo é um moinho, o conselho de alguém experiente para um jovem que sai em busca de seu sonho, um alerta sobre os perigos do mundo. E tudo isso ele dizia sobre aquela melodia linda, suas melodias, mais um dos traços inconfundíveis do nosso grande poeta do samba. Mestre Cartola.


Tive sim

Cartola era também a Alvorada, a Alegria, nos acordava para a beleza das coisas simples da vida, para a beleza da natureza, de uma canção, de um amor, de um fim de amor, de um conselho. Em algumas canções, Cartola trazia a esperança possível, aquela que vê a transformação das coisas: Finda a tempestade, o sol nascerá, finda esta saudade, hei de ter outro alguém para amar. A sorrir eu pretendo levar a vida, elecantava.


Alvorada – Cartola, Carlos Cachaça, Hermínio Bello de Carvalho


Corre e olha o céu, Cartola e Dalmo Castelli

Angenor de Oliveira, Cartola, nasceu na cidade do Rio de Janeiro em 11 de outubro de 1906 e morreu nesta mesma cidade em 30 de novembro de 1980. Aos onze anos foi morar no morro de Mangueira. Desde então precisou trabalhar para ajudar a família e, ao mesmo tempo, foi conhecendo e fazendo parte da vida do morro. Seu inseparável amigo e parceiro Carlos Cachaça conta: “O Cartola era pequeno, mas esperto. Quando nos conhecemos, ele tinha 11 anos e eu 17. Começamos logo a andar nas bocas (…) Minha afinidade com Cartola foi desde o começo. (…) Como eu já disse, bem cedo ele começou a andar nas bocas. Das bocas para o samba, foi um pulo.” Este depoimento de Carlos Cachaça foi dado em 1981 e está no belo livro de Marilia Barbosa e Arthur de Oliveira, “Cartola, os tempos idos.”

Cartola não parava nos empregos: era outra a sua inclinação. Foi tipógrafo, pedreiro e outras coisas também. Foi trabalhando como pedreiro que recebeu seu apelido. Na construção, para evitar que o cimento caísse em seus cabelos, usava um chapéu-coco. Aí, começou a usar o chapéu mesmo fora do serviço e ganhou este apelido, Cartola, que se tornou seu nome. Pouca gente sabe que ele se chamava Angenor.

Cartola e seus amigos criaram um bloco: “Estavam dispostos a brigar, ser presos, bater, apanhar. O Bloco dos Arengueiros e seus componentes, no entanto, também eram bons  de samba. Não demorou muito para que sete deles decidissem fundar uma escola de samba”, conta o jornalista Sérgio de Oliveira. Em 28 de abril de 1928 foi fundada a Estação Primeira de Mangueira.

Cartola começou compondo sambas para sua escola, mas logo sua música chegou aos ouvidos de Mário Reis que, juntamente com Francisco Alves, era o cantor mais famoso do Rio. Numa prática comum na época, esta gente famosa ia atrás dos sambistas para “comprar” sambas, isto é, em troca de seu nome na parceria, pagavam uma boa quantia em dinheiro para os compositores. Como os sambistas eram pobres, era difícil resistir à tentação e esta prática se difundiu muito. Quando Mário Reis procurou Cartola para comprar um samba, ele relutou. Mas depois acabou vendendo. Os sambas do mestre fizeram sucesso nas vozes de Francisco Alves, Mário Reis, Silvio Caldas, Carmem Mirada, isto entre 1923 e 1933. Assim, Cartola foi se tornando conhecido, ampliando seu círculo de relações. Conheceu Noel Rosa que durante certa época passou praticamente a morar na casa dele.


Estamos esperando – Cartola e Noel Rosa com Francisco Alves e Mario Reis


Que Infeliz Sorte, Cartola, canta Francisco Alves


Divina Dama, Cartola, com Francisco Alves


Tenho um novo amor – Cartola e Noel Rosa, canta Carmem Miranda

Heitor Villa-Lobos era grande admirador da música de Cartola. Quando foi visitar a Mangueira, Cartola preparou uma bela recepção e mostrou ao maestro alguns de seus sambas. Ao ouví-los, o maestro exclamou: “Isso está tudo errado. Mas que beleza!” Foi através de Villa que Cartola participou da antológica gravação de música brasileira que aconteceu no navio Uruguai (1937) onde o maestro Stokowski pediu que ele reunisse a fina flor da música, os chorões e os sambistas: Pixinguinha, Donga, João da Baiana, Cartola. Numa sessão musical que virou a noite, gravaram cerca de 40 fonogramas. Entre eles, Quem me sorrindo, de Cartola e Carlos Cachaça, na voz de Cartola. Foi sua primeira gravação.

O final dos anos 40 foi muito triste para Cartola: desencantou-se com sua escola, pois seu samba perdeu para o de Nelson Sargento. A questão não era ter perdido, era o motivo. O presidente da Mangueira chamou um “professor” para a escolha do samba daquele ano (1949). Diz Nelson Sargento: “O professor explicou: pela beleza, pela perfeição, por tudo, ele daria 10 para o de Cartola, e 6 para o meu. Agora, para o desfile, o meu era mais fácil, era melhor (…) A música dele era muito elaborada, a linha melódica, muito difícil (…)”.Quer dizer, Cartola perdeu porque o seu samba é muito bonito, era muito bom, era melhor… Antes disso, em 1946, ele ficou doente, com meningite, à beira da morte. Quando se recuperou compôs o clássico Grande Deus. Depois disso, perdeu sua primeira companheira, que havia cuidado dele todo esse tempo, Deolinda. Foi demais. Cartola deixou o morro, parou de tocar e compor. Desapareceu.


Grande Deus, Cartola.

Foi num encontro da casa do sempre amigo e parceiro Carlos Cachaça que Cartola conheceu Zica que viria a ser sua mulher. Cartola estava fraco, física e emocionalmente, bebendo demais. Zica, irmã da mulher de Carlos, da Menina, começou a cuidar dele e lentamente Cartola começou a renascer. Zica o convenceu a voltar pra Mangueira, procurou seus amigos e admiradores que naquela altura o julgavam morto. Foi num dos empregos que conseguiu arranjar, o de lavador de carros, que aconteceu mais um grande encontro que mudaria sua vida. Numa madrugada, Cartola foi a um bar beber um pouco e encontrou Sergio Porto, famoso colunista de jornal do Rio de Janeiro e apaixonado pelo samba. Stanislaw Ponte Preta, pseudônimo do jornalista, saudou-o em sua coluna, denunciou a falta de interesse dos artistas e das gravadoras pela obra do grande mestre. Levou-o para a Radio Mayrink Veiga. Amigos tentavam ajudá-lo a conseguir colocação. Até que o casal ficou sendo zelador de um prédio desapropriado, no centro da cidade. No segundo andar, fizeram sua moradia. Zica começou a fazer comida para vender e a casa veio a se tornar um ponto de encontro dos amigos Nelson Cavaquinho, Zé Kéti, Nelson Sargento, Elton Medeiros. Os amigos dos sambistas passaram a frequentar as rodas de samba e estava lançada a semente daquela que seria a casa de samba mais prestigiada do Rio, no início dos anos 60: o Zicartola, nome inventado pelo compositor.

O sobrado da rua da Carioca, n. 53, tornou-se o principal ponto de encontro de sambistas e de gente que gostava de samba. Um reduto do melhor samba carioca. Zé Kéti divulgava na imprensa, Hermínio Bello de Carvalho inventou a Ordem da Cartola Dourada, que era entregue a grandes nomes da música popular brasileira. O grupo da casa reunia Cartola, Nelson Cavaquinho, João do Valle, Zé Kéti, Ismael Silva, Pandeirinho e um garoto que se tornaria um grande sambista: Paulinho da Viola e que, nas palavras do próprio Cartola, seria seu sucessor. Sobre isso, Paulinho diz num depoimento, logo após a morte do mestre “Soube que o mestre disse que eu era seu herdeiro. Cartola não tem sucessor, que ele me perdoe lá em cima. Seu trabalho é único.” Nara Leão freqüentava o Zicartola. Em seu LP Nara ela gravou Diz que fui por aí, de Zé Kéti, Luz Negra, de Nelson Cavaquinho e Amâncio Cardoso e O Sol Nascerá, de Cartola e Elton Medeiros, sambas que eram tocados e cantados nas noites do Zicartola.

Cartola só veio a ter um LP gravado, cantando suas composições em 1974. Pois é. E isto não é um fato isolado. A cultura brasileira parece sobreviver por milagre. Ou pela aparição de certas figuras que resolvem ter uma atitude e fazer o que deve ser feito. No caso de Cartola, essa figura foi Marcus Pereira que resolveu gravar o disco. Cartola mesmo conta: “Quando a ideia do LP surgiu, achei impossível o Marcus Pereira topar. As fábricas não queriam nada comigo. Eu já tinha tentado, e sempre diziam: ‘Cartola não vende’. Aí o Marcus Pereira fechou os olhos e disse: ‘Vamos gravar!’ Foi emocionante. Uma coisa de louco. O dia que ele telefonou e disse ‘Depois de amanhã vamos gravar’ eu pensei: ‘Não é possível.’ E mesmo depois de gravado eu não acreditava. Precisei ter o disco na mão. Precisei ver ele sendo vendido, nas lojas, pra acreditar. E me senti muito emocionado, quando ouvi a minha voz no disco. Tava até perdendo a vontade de compor, vendo que tanta gente gravava e só não chegava a minha vez. Quando o disco saiu, voltei a fazer música correndo.”

E foi nessa época do ressurgimento de Cartola que ele passou a fazer parte da vida da minha geração. Anos 70. Como contei no começo. A partir de então gravou outros LPs, fez muito sucesso, viajou pelo Brasil, conseguiu um  modesto equilíbrio financeiro e povoou nossa vida de beleza, de poesia com seus sambas.  Sobre ele Nelson Sargento disse: “Cartola não existiu. Foi um sonho que a gente teve…”.

No dia 27 de novembro de 1980, três dias antes de Cartola morrer, Carlos Drummond de Andrade, seu velho amigo e admirador, escreveu na coluna que tinha no Jornal do Brasil: “o nobre, o simples, não direi divino, mas o humano Cartola, que se apaixonou pelo samba e fez do samba o mensageiro de sua alma delicada.” Drummond conta nesta crônica que estava andando pela rua e esqueceu de tudo quando ouviu um samba de Cartola. Depois de escutá-lo, seguiu seu caminho: “O som calou-se e ‘fui à vida’, como ele gostava de dizer, isto é, à obrigação daquele dia. Mas levava uma companhia, uma amizade de espírito, o jeito de Cartola botar em lirismo a sua vida, os seus amores, o seu sentimento do mundo, esse moinho, e da poesia, essa iluminação.”


Trailler do filme Música para os olhos, roteiro e direção de Lírio Ferreira e Hilton Lacerda.


Autonomia, Cartola | Arranjo Radamés Gnattali


Cordas de aço


O sol nascerá

Assine nossa newsletter

Toda sexta-feira enviaremos uma seleção de conteúdos em destaque na piauí