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    Trabalhadores escravizados na colheita do café, no Rio de Janeiro, por volta de 1882 Foto: Marc Ferrez/Coleção Gilberto Ferrez/Acervo Instituto Moreira Salles (IMS)

questões decoloniais

O passado que não abandona Portugal

“O Estado pedirá desculpas pela colonização e pela escravidão?”, perguntou uma jornalista da Reuters, em abril. A resposta do presidente Rebelo de Sousa deflagrou uma crise

Filipe Santa-Bárbara, de Lisboa | 22 jul 2024_09h28
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Eram sete e meia da noite quando Marcelo Rebelo de Sousa despontou no salão do Vila Galé Opera, hotel à beira do Rio Tejo, em Lisboa. O presidente de Portugal estava ali para participar de seu jantar anual com a Associação da Imprensa Estrangeira. Como era véspera dos cinquenta anos da Revolução dos Cravos, assim que se sentou pôs-se a falar dos “ideais de Abril”. Conhecido por falar muito e comer pouco, Rebelo de Sousa embrenhou-se num longo monólogo, observado por jornalistas de diferentes partes do mundo que batiam talheres ao seu lado, saboreando tornedós com batata e risotos de salmão.

“Creio que foram 50 minutos respondendo à primeira pergunta”, lembra a jornalista Catarina Demony, uma das poucas portuguesas a participar do encontro. O microfone passava de mão em mão, para que todos pudessem indagar o presidente. Demorou uma hora e meia até chegar a vez de Demony. De bate-pronto, ela o questionou: por ocasião dos cinquenta anos da revolução e da presença de chefes de Estado africanos em Lisboa – entre eles os de Angola e Moçambique –, Portugal pedirá desculpas pela colonização?

A resposta, que tinha tudo para ser protocolar, surpreendeu os convidados. “Temos de pagar os custos”, afirmou Rebelo de Sousa. “Há ações que não foram punidas e os responsáveis não foram presos? Há bens que foram saqueados e não foram devolvidos? Vamos ver como podemos reparar isto.” Teve início, ali, uma pequena crise política que se arrastou por semanas e é ilustrativa de como Portugal lida – ou evita lidar – com o próprio passado.

Até então, somente um líder português havia entrado no campo dos pedidos oficiais de desculpa. Foi em 2022. O então primeiro-ministro António Costa, ao visitar Moçambique, rememorou o massacre de Wiriyamu, ocorrido cinquenta anos antes, quando soldados portugueses mataram cerca de quatrocentos civis em meio à guerra pela independência do país africano. Costa disse que não poderia deixar de se “curvar perante a memória das vítimas do massacre”, um “ato indesculpável que desonra” a história de Portugal. “As relações entre amigos são feitas da gentileza de quem é vítima e faz por não recordar, mas também por quem tem o dever de nunca deixar esquecer aquilo que praticou e, perante a história, se deve penitenciar”, concluiu o premiê, em tom apaziguador.

No ano passado, Rebelo de Sousa já havia tocado brevemente no assunto, de forma delicada o suficiente para não causar alarde. Ao receber o presidente Lula em Lisboa, disse que não bastava pedir desculpa – “devida, sem dúvida” – pelo passado colonial, do qual o Brasil foi uma das vítimas. Era preciso, afirmou, se responsabilizar pelo “futuro daquilo que de bom e de mau fizemos no passado”. 

A declaração no jantar com jornalistas, neste ano, levou a discussão a um patamar inédito. “Foi uma resposta muito curta, mas que adicionou algo ao debate. Anteriormente, ele havia falado em ‘reconhecer’. Dessa vez, falou em ‘reparar”’, observa Demony, ciente dos significados por trás das pequenas mudanças de vocabulário. Quando foi dormir naquela noite, em 23 de abril de 2024, a jornalista portuguesa não sabia que sua pergunta chacoalharia o país.

 

Catarina Demony é correspondente da Reuters, tem 31 anos e se especializou em debates decoloniais. Seu interesse pelo assunto não é meramente jornalístico. Lisboeta, ela tinha tinha 18 anos quando descobriu, ao conversar com sua avó materna, que seus antepassados foram traficantes de pessoas escravizadas. Fizeram fortuna sequestrando, agredindo e transportando angolanos além-mar. “Durante muito tempo, eu não soube o que fazer com essa informação. Vivia numa bolha de privilégio”, ela conta. “Eu não conseguia ligar o passado e o presente, o que é um grande problema da sociedade: não perceber como esse legado ainda está presente em Portugal e nos países que foram colonizados.”

Um dos antepassados de Demony, Manuel Matoso Andrade, viajou para Angola como soldado voluntário, no século XVIII, mas em pouco tempo enveredou pelo comércio de pessoas. Acumulou poder e influência em Luanda. “O local onde hoje fica o Museu Nacional da Escravatura de Angola era uma propriedade dos meus antepassados. Ali ficava uma capela onde as pessoas escravizadas eram batizadas à força antes de serem enviadas, majoritariamente, para o Brasil.” Demony conta que o brasão de sua família ainda está lá, decorando o edifício.

A jornalista se mudou para Londres, onde cursou faculdade. Ao retornar à terra natal em 2018, depois de lentamente digerir a revelação feita por sua avó, decidiu investigar sua árvore genealógica. Vasculhou arquivos públicos e traçou a origem da riqueza de sua família. Dessa pesquisa, resultou o documentário Debaixo do tapete, lançado em 2023. No filme, Demony conta o que descobriu sobre os antepassados e a destruição causada por eles. A história é usada como um veículo para discutir por que a escravidão ainda é um tabu para tantos portugueses. Estima-se em 6 milhões o número de africanos traficados por Portugal, estatística assombrosa que não é igualada por nenhum outro país.

No embalo do filme, Demony virou notícia. Deu entrevistas a veículos brasileiros na esperança de aquecer o debate sobre reparação. Só alcançou o feito, porém, quando fez a pergunta, na lata, para o presidente português. A resposta rodou o mundo lusófono. Renan Calheiros (MDB-AL), que preside a Comissão de Relações Exteriores do Senado, parabenizou Rebelo de Sousa pelo que disse ser “uma expiação histórica, necessária, altiva, coerente e há muito aguardada”.

O Chega, principal partido da extrema direita portuguesa, fez tanto barulho quanto pôde. Acusou o presidente de traição à pátria, coação contra órgãos constitucionais e usurpação. Uma lista de crimes tão robusta que, se fosse condenado, Rebelo de Sousa poderia amargar até vinte anos atrás das grades.

Como sua bancada saltou de doze para cinquenta deputados nas últimas eleições legislativas, o Chega tinha os requisitos necessários para propor ao Parlamento que abrisse um processo contra Rebelo de Sousa. Assim fez. Na segunda etapa do processo, contudo, para que a queixa fosse encaminhada ao Supremo Tribunal de Justiça, era preciso muito mais do que cinquenta deputados. O partido votou sozinho e foi derrotado por larga margem.

O estrago, porém, já estava feito. A declaração do presidente e o processo no Parlamento motivaram horas e horas de cobertura jornalística. A extrema direita, mais forte do que nunca, jogou lenha nessa que é uma das fogueiras mais ardentes do debate ideológico em Portugal. Dias depois do jantar com os correspondentes, uma pesquisa Ipespe/Duplimétrica apontou que 74% dos portugueses se opunham à ideia de indenizar as antigas colônias. O levantamento, encomendado pelos canais de tevê CNN Portugal e TVI, ouviu 800 pessoas no começo de maio. Só 25% consideravam a gestão Rebelo de Sousa boa ou muito boa.

 

A chiadeira não surpreendeu Francisco Bethencourt. Historiador e professor no King’s College, em Londres, ele estuda a expansão do antigo império português, com foco no racismo e nas desigualdades sociais acarretadas pela colonização. Diz não ter dúvidas de que, no período pós-Revolução dos Cravos, de 1974 em diante, “houve um pacto implícito”, em Portugal, de não remexer os tempos coloniais e “ter a ilusão de que esse passado seria absorvido, integrado, e que as pessoas passariam a uma vida democrática sem questionar o passado”. 

“A vida não é assim”, explica Bethencourt. “Quando metemos o passado debaixo do tapete, ele geralmente regurgita das piores maneiras.” Uma dessas maneiras, ele diz, é o espetáculo que está sendo promovido pela extrema-direita, munida da “narrativa salazarista, que não foi confrontada e não foi substituída”. O professor se refere a António Oliveira Salazar, ditador que comandou Portugal entre 1932 e 1968 e alimentava uma visão nostálgica do império português.

Bethencourt atribui essa visão, em parte, a um notável brasileiro: Gilberto Freyre. O intelectual pernambucano cunhou o termo lusotropicalismo – a ideia de que os portugueses, se comparados a colonizadores de outras nacionalidades, não foram tão ruins assim. Eram maleáveis; toleravam a miscigenação. Essa tese – que nunca foi formulada como uma teoria, propriamente, mas que permeia a obra freyriana – soava como música aos ouvidos de Salazar, que nos anos 1960 convidou Freyre para visitar colônias portuguesas, muitas das quais lutavam, naquele momento, para se emancipar.

A máquina de propaganda do salazarismo divulgou à exaustão a tese de Freyre, que, de tão martelada, se enraizou no senso comum. Muitos dos portugueses que hoje estão vivos cresceram e foram educados com essa mentalidade. “Se formos à rua falar com as pessoas e perguntarmos sobre o período da expansão, é provável que a esmagadora maioria tenha uma visão muito positiva do passado colonial”, atesta Aurora Almada Santos, pesquisadora do Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa.

Nascida em Cabo Verde, arquipélago que só se emancipou de Portugal em 1975, Santos nota que o orgulho da era colonial transparece até nos pequenos simbolismos. Ao tomar o poder neste ano, por exemplo, o primeiro-ministro Luís Montenegro trocou imediatamente o logotipo institucional do governo: onde antes havia um traço gráfico minimalista nas cores verde, amarela e vermelha, passou a figurar o velho brasão de armas português. “Se não se identificam com o brasão de armas, então não são verdadeiramente portugueses”, esbravejou durante a campanha eleitoral José Manuel Durão Barroso, ex-primeiro-ministro que apoiou a coalizão de centro-direita encabeçada por Montenegro.

A pesquisadora Ana Cristina Pereira, também conhecida como Kitty Furtado, lembra o quanto as caravelas são romantizadas no imaginário português. Em 2004, quando Portugal sediou a Eurocopa, um dos atrativos da cerimônia de abertura foi uma embarcação cenográfica que percorreu o gramado, numa referência às grandes navegações. A própria Furtado, que trabalha na Universidade do Minho, só mudou sua concepção quando assistiu ao videoclipe de Batuka, música lançada em 2019 por Madonna. Caravelas fantasmagóricas aparecem no vídeo ao som de um batuque, e a legenda explica: “Os batuques eram condenados pela Igreja e retirados às pessoas escravizadas por serem considerados um ato de rebelião.” A mensagem impactou Furtado, que nunca se atentara à violência implícita dessa imagem, tão recorrente na iconografia lusa.

“Portugal tem dois problemas: falta de vergonha e minorias que não são suficientemente ativas”, resume Francisco Bethencourt, que também já dirigiu a Biblioteca Nacional portuguesa, em Lisboa. A falta de vergonha, ele explica, reside na incapacidade de reconhecer o racismo. As minorias pouco mobilizadas, diz, são o que explica a diferença entre Portugal e outros países na forma de lidar com o debate decolonial. “Por que Estados Unidos, Inglaterra, Alemanha, França, Holanda e outros estão a confrontar o passado colonial, e em Portugal isso ainda não acontece?”, pergunta, e arremata: “Creio que tem que ver, fundamentalmente, com a capacidade de protesto das minorias.”

Em parte, crê Bethencourt, isso se explica pela composição demográfica dos países. Nos Estados Unidos, por exempo, os negros formam 14% da população, e os hispânicos, 19%. Embora sejam minorias, são grandes o suficiente para produzir movimentos organizados e lideranças políticas que intervêm no debate público. No Reino Unido, os asiáticos são 9% da população; os negros, 4%. Em Portugal, o censo não produz dados étnicos, mas um levantamento amostral feito pelo Instituto Nacional de Estatística concluiu, no ano passado, que os negros eram apenas 3% da população, e pessoas de origem “mista” eram 2%.

Os negros americanos, afirma Bethencourt, são “uma minoria que tem, hoje em dia, uma classe média importante, com grande número de jornalistas, escritores e ativistas”. O mesmo ocorre na França (que não produz dados sobre a composição étnica da população) e, em menor escala, no Reino Unido. “Não foi por obra e graça das elites brancas”, argumenta o professor, que “a luzinha surgiu”, dando início ao debate decolonial. Ele foi fruto de pressões políticas ao longo de décadas – um processo que, em Portugal, ainda está engatinhando.

 

Nas escolas, ao menos, notam-se algumas mudanças. Miguel Barros, professor de história desde 1991, leciona para os anos finais do ensino fundamental e do ensino médio. Em 2016, ocupando o cargo de presidente da Associação de Professores de História em Portugal, foi procurado pelo governo, que queria revisar e atualizar o currículo da disciplina. Barros aceitou a missão de bom grado. Dedicou-se a ela por quase dois anos, concluindo o trabalho em 2018.

Daquele ano em diante, crianças de 10 e 11 anos passaram a aprender, em sala de aula, sobre a violência cometida pelos portugueses durante a expansão colonial. O Ministério da Educação recomenda aos professores “sublinhar a importância dos movimentos migratórios no contexto da expansão portuguesa, ressaltando alterações provocadas pela expansão, nomeadamente uma maior miscigenação étnica, a troca de ideias e de produtos, a submissão violenta de diversos povos e o tráfico de seres humanos.” Até então, diz Barros, o programa falava somente em “escravos”, sem oferecer contexto nem humanizá-los.

A implantação do novo currículo, porém, foi gradual. Somente em junho deste ano todos os livros didáticos passaram a contemplar a nova diretriz do governo. O que não significa que as escolas estejam totalmente livres de problemas. Barros conta que, folheando livros infantis, ainda se depara com frases que tratam escravos como mercadorias. É o caso da página 38 do primeiro volume do livro Novo História 8: “Foi o Infante quem criou a primeira feitoria na costa africana, a feitoria de Arguim. Aí se armazenavam e trocavam as mercadorias levadas de Portugal, tecidos e trigo, pelos produtos africanos, ouro e escravos.”

Para pessoas de sua geração, diz Barros, ainda “é difícil escapar a preconceitos”. Ele próprio só se sensibilizou para o assunto quando precisou escrever um livro didático para o ensino médio. No processo, deu-se conta de que “havia uma parte significativa da população portuguesa que era completamente ignorada na história de Portugal e nos manuais”. Ele se refere aos descendentes de africanos. “Os suevos e os visigodos estavam lá, embora nós tenhamos provavelmente uma contribuição étnica muito maior da África.”

A mudança no currículo foi celebrada por gente progressista. Há quem ache, porém, que o confete é demais para um fato tão pequeno. “Os manuais [escolares] são importantes, mas o professor continua a ter uma grande margem de manobra para contextualizar as informações”, argumenta o historiador José Pedro Monteiro. “De certa forma, ficamos presos a uma ideia iluminista de que a educação vai libertar as pessoas e as tornar melhores cidadãs. Não vai.” Monteiro defende que essas novas práticas devem ser aplicadas também à “cultura institucional relativamente enfraquecida” das universidades portuguesas, que podem qualificar a discussão decolonial no país.

No campo das ações concretas, Portugal está muito atrás de países como França e Alemanha. Em 2017, o presidente Emmanuel Macron encomendou um relatório enumerando os patrimônios de origem africana que estavam em exibição em museus franceses. Mais tarde, com esse dossiê em mãos, ordenou a devolução de 26 objetos ao Benim, pequeno país que só conquistou a independência da França em 1960. Recentemente, por sua vez, a Alemanha devolveu à Namíbia, sua antiga colônia, 23 itens saqueados no século XIX.

Nada semelhante ocorreu em Portugal. O ex-ministro da Cultura Pedro Adão e Silva diz que a culpa não é só do governo. À piauí, ele contou que, em reuniões da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, o tema da devolução de objetos “nunca foi abordado sequer” pelos ministros dos países lusófonos. Além disso, afirmou, nenhuma peça em específico foi identificada por esses países.

Mas Adão e Silva defende a própria gestão. Recorda que o governo português financiou a transformação do campo de concentração do Tarrafal, em Cabo Verde, onde morreram muitos presos políticos, em museu. Também garantiu recursos para a criação do Museu da Luta de Libertação Nacional, em Angola, e a recuperação da Rampa dos Escravos, sítio histórico onde milhares de moçambicanos foram embarcados rumo ao trabalho forçado no continente americano. O termo “reparação”, porém, não é mencionado pelo ex-ministro.

Quando esteve no cargo, entre 2022 e 2024 , Adão e Silva criou um grupo informal de trabalho reunindo diretores de museus nacionais. Queria inventariar obras e identificar aquelas que pudessem ter sido obtidas em contexto de pilhagem ou violência. O resultado desse trabalho não foi tornado público, mas a nova ministra da Cultura, Dalila Rodrigues, disse em uma audiência parlamentar no começo de julho que não foi identificado nenhum bem cultural que tenha sido “apropriado indevidamente”. Revelou, contudo, que no Museu Nacional de Etnologia, em Lisboa, existem 14.685 itens oriundos das antigas colônias portuguesas. Para apurar a circunstância em que foram obtidos, explicou Rodrigues, será preciso fazer um inventário rigoroso, em trabalho conjunto com pesquisadores universitários. A ministra não se comprometeu com prazos.

 

Quando a pergunta de Catarina Demony foi parar nos jornais, o governo português se apressou em deixar claro que a “reparação” era coisa da cabeça de Rebelo e Sousa. Em nota, afirmou que “não esteve e não está em causa nenhum processo ou programa de ações específicas com esse propósito”.

A resistência se faz notar não só na política ou nos partidos de direita. Mesmo acadêmicos se opõem à ideia de pedir desculpas ou indenizar antigas colônias. Luís Reis Torgal, 82 anos, historiador e professor catedrático aposentado da Universidade de Coimbra, disse à agência Lusa que “há coisas pelas quais não faz sentido pedir desculpa”. João Pedro Marques, outro historiador, lamentou, num artigo publicado no jornal Observador que, ao ser “vago e impreciso”, o presidente de Portugal permitiu que a mídia enquadrasse sua declaração num “pré-fabricado e bem conhecido ato de contrição woke sobre escravatura”.

Kitty Furtado, ao lado de alguns colegas, vem tentando reverter a pasmaceira da academia – e, com isso, pressionar o governo. No verão de 2023, a pesquisadora organizou, num teatro da cidade do Porto, uma oficina criativa sobre restituições e reparações. Durou dez dias. Pessoas de Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné, Brasil e Portugal juntaram-se para assistir a filmes, pensar e debater. Fizeram uma performance e redigiram um documento intitulado Declaração do Porto: reparar o irreparável, no qual tentam estabelecer “uma proposta concreta” para “a reparação do mundo tal como o temos”.

Entre as medidas listadas, a primeira e mais fundamental é “o reconhecimento do colonialismo, da escravatura, dos massacres coloniais, do trabalho forçado, da negligência às fomes, das práticas genocidas, etnocidas, segregacionistas e epistemicidas enquanto crimes contra a humanidade e, consequentemente, a formalização de desculpas”. Mas o documento não se restringe ao simbólico: propõe também a anulação de dívidas de ex-colônias, a restituição de objetos roubados e a criminalização do racismo com condenação efetiva (hoje, em Portugal, o racismo não tem uma tipificação própria; é enquadrado no artigo 240 do Código Penal, que trata de “discriminação e incitamento ao ódio e à violência”, o que dificulta a penalização de expressões especificamente racistas e xenófobas). O texto sugere também a implementação de políticas afirmativas em Portugal. Para que isso se concretize, no entanto, será preciso primeiro colher dados étnico-raciais da população, o que não é feito atualmente no país.

Parte das propostas já foram aprovadas há anos, mas nunca tiradas do papel. É o caso da construção do memorial em homenagem às pessoas escravizadas. Essa foi uma das ideias mais votadas no orçamento participativo da cidade de Lisboa referente a 2017/2018, sete anos atrás. O município diz que o memorial vai ser construído, e que o atraso se deve a questões técnicas, não políticas. No fim de junho, houve uma nova reunião entre a prefeitura e a associação que apresentou o projeto, para tentar chegar a um consenso sobre os próximos passos. Por agora, serão encomendados laudos para aferir se é possível instalar o memorial na Ribeira das Naus, perto do Terreiro do Paço e junto ao Rio Tejo.

 

Da entrevista em abril, pouco ficou além da gritaria. O presidente Rebelo de Sousa visitou Cabo Verde poucos dias depois da declaração polêmica, e capitulou: “O apoio que nós damos [às ex-colônias], a cooperação que temos, as parcerias” são uma reparação “que já está a ser feita”, disse a jornalistas. Não se esboçou, até agora, um projeto de reparação. Tudo está igual em Portugal.

Catarina Demony, enquanto isso, arruma as malas. Retornará em breve ao escritório da Reuters em Londres, onde fica a sede da agência. Apesar da partida, espera que o debate “tenha continuidade em Portugal, que as pessoas e jornalistas se vão interessando cada vez mais, que mantenham o debate vivo dando lugar de fala às pessoas que têm conhecimento de causa do assunto.” 

A jornalista largou a bomba e, achando um pouco de graça da situação, deseja “boa sorte” aos colegas que ficaram e terão de enfrentar os estilhaços.

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