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    Foto: Elvis Ferreira

depoimento

“Povos indígenas também precisam de internet”

A jornada de uma comunicadora wapichana para ver os rostos de seu povo na mídia

Ariene Susui | 08 mar 2023_07h43
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Em depoimento a Elane Oliveira 

 

Eu me chamo Ariene dos Santos Lima, mas prefiro que me chamem de Ariene Susui (que significa flor em wapichana). Venho da comunidade indígena Truaru da Cabeceira, Terra Indígena Truaru, no município de Boa Vista, capital de Roraima. Meu povo é Wapichana, assim como a língua falada por ele. Sou uma jornalista indígena.

Tenho 26 anos e desde os 14 percebi que queria ser uma comunicadora. Entrei no Conselho Indígena de Roraima (CIR) e em seguida numa rede de comunicadores indígenas, chamada Rede Wakywai. Essa rede era um projeto antigo do CIR, que colocamos em prática no período pandêmico devido à necessidade de monitorar os casos de Covid e repassar as informações para as comunidades mais distantes. Nesse projeto formamos trinta comunicadores indígenas, e muitos deles estão cursando jornalismo na Universidade Federal de Roraima (UFRR).

Quando eu tinha 18 anos saí da minha comunidade, a 64 km de Boa Vista, para estudar na UFRR. Eu escolhi comunicação porque vi que poderia ajudar na luta do meu povo, na visibilidade, nas narrativas, na escrita e na fotografia, sempre no olhar do nosso para os nossos. Antes mesmo do curso eu já gostava dessa área, principalmente por entender que era um ambiente em que não tínhamos tantas pessoas. Era um lugar para dar visibilidade à nossa causa coletiva.

Vi logo que rostos e vozes do meu povo não estavam presentes nos meios de comunicação de massa. E nem mesmo nos meios de comunicação independentes. Meu maior objetivo é ter nossos povos sendo pautados da forma como eles são. E a maior dificuldade é ter essa narrativa nas grandes mídias.

Eu fiz o processo seletivo específico para indígenas, que é uma conquista dos nossos povos do estado de Roraima, pela UFRR. Fiz esse processo especificamente para mostrar a importância desses espaços. São quatro anos de curso, mas na verdade me formei na graduação em três anos e meio. 

 

Soube que estava no caminho certo quando percebi que podia ter uma escrita ativista, com as minhas narrativas, os meus olhares. Comecei a acompanhar as minhas lideranças e a escrever sobre isso, entendi que esse era o caminho. Tive a oportunidade de participar de congressos nacionais e internacionais pela comunicação, sempre levando a comunicação indígena como carro-chefe. Quero mostrar nossas realidades e dizer quem somos. Fiz o mestrado e pesquisei sobre a Rede Wakywai. Enfatizei o conhecimento tradicional como ponto central da minha pesquisa, estudando a comunicação indígena. Analisei o processo enquanto fazia parte dele, eu e minha orientadora costumávamos dizer que “não existe o caminho, mas estávamos fazendo o caminho ao andar por ele”. Entendi que a pesquisa era também importante. 

Penso em fazer doutorado e também em lecionar na universidade, um lugar que me trouxe tanto conhecimento e me abriu portas. Quero que mais jovens que, assim como eu, querem trazer mais visibilidade às nossas lutas possam ter a oportunidade de se formar. No ano passado fui chamada para integrar o grupo de transição do atual governo, com o objetivo de levar as demandas da região Amazônica para o debate. Apontei várias situações que ocorrem em nossa região, como por exemplo a importância da tecnologia e de acesso à internet nas comunidades indígenas, ribeirinhas e quilombolas. Nós, povos indígenas, queremos acesso à internet. Nós, povos indígenas, queremos salvar nosso território e queremos ocupar também os territórios digitais. Povos indígenas também precisam de internet.

Nós crescemos tendo o ensino fundamental e médio dentro da comunidade. A educação no passado teve uma interferência muito grande na cultura indígena, mas hoje ela serve também para ajudar na construção das nossas identidades, de mostrar quem nós somos. Na escola eu estudei arte indígena, fazendo os nossos artesanatos, os brincos, pinturas e panelas de barro, coisas que por exemplo as outras escolas tradicionais talvez não teriam. Em geografia, estudávamos sobre os nossos territórios. Também já víamos questões climáticas, como mudanças do tempo, tudo isso a comunidade e a escola trabalhavam em conjunto.

 

Meu povo tem bastante contato com os homens brancos. Temos muitas comunidades indígenas hoje que falam sua língua e outras línguas. E existem outras comunidades que não falam mais as suas línguas. Muitos dos mais velhos sabem a língua, mas a nossa geração de jovens aprendeu na escola indígena e não tem mais aquele contato dialogado, então é mais difícil. Nós sabemos e estudamos a nossa língua indígena na escola, mas não é como antes.

Meu povo Wapichana teve muitos anos de contato, então hoje as nossas comunidades têm a língua portuguesa como a mais falada. Só os povos mais antigos falam suas línguas maternas. O povo Wapichana é do tronco linguístico Aruak. As pessoas acham que todos os povos indígenas vêm do tronco linguístico Tupi, mas somos uma diversidade de povos e culturas. Acham que nós indígenas somos todos iguais, mas temos diferenças linguísticas, de cocares, de vestimenta e pinturas, e tudo isso faz a nossa diversidade ser muito bonita.

Quando me perguntam se estamos caminhando para um país com mais liberdade de expressão, minha resposta é sim, claro. Ainda não estamos no ideal, porém já estivemos pior. Meu maior desejo é que as políticas públicas para os nossos povos se concretizem. Não importa onde eu estiver, sempre serei indígena. Sabemos que nossa luta nunca vai parar.

 

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