"Fiz burrada, doutor", disse Sintz. Não tinha antecedentes, não impôs resistência à prisão e se disse arrependido, mas ouviu do policial que só deixaria a delegacia se pagasse uma fiança de 400 reais em espécie Ilustração: Edson Ikê
Um pouco de queijo, presunto e chocolate
A prisão de um homem negro no feriado da Consciência Negra
Em 20 de novembro de 2024, um homem de 67 anos de sobrenome Sintz acordou com vontade de comer um misto quente. Vestiu sua prótese (ele não tem parte de uma das pernas), passou um café pronto e se arrumou para pegar o ônibus. Sintz mora no bairro Bacacheri, na região nordeste de Curitiba, mas visita semanalmente o Mercado Matriz, no Centro da cidade, onde compra pães velhos para servir aos canários e pombas-rolas que pousam no seu quintal. Como são sobras, os pães saem por uma bagatela de 6 reais o quilo.
Sintz fez a compra e, no caminho de volta, resolveu passar também no supermercado Condor Santa Cândida. Dessa vez, separou pães para seu misto quente e algumas frutas. No corredor de frios, viu uma bandeja com 400 gramas de queijo (18,79 reais) e duas bandejas de presunto, cada uma com 180 gramas (17,58 reais, ao todo). Seguro de que ninguém o via, deslizou as três bandejas para dentro da sacola do Mercado Matriz, onde estavam os pães dos pássaros, já pagos. Antes de chegar ao caixa, guardou dezessete KitKats no bolso da calça.
Sintz pagou pelos pães e pelas frutas. Chegou a sair pela porta do supermercado, mas logo percebeu que era seguido por dois seguranças. Eles o abordaram e reivindicaram os itens furtados. Sintz pediu desculpas e devolveu todos. Foi conduzido de volta ao mercado.
Nascido em Erechim (RS), Sintz era um bebê de 8 meses quando foi adotado por uma família branca. Completou o ensino médio, mas não fez faculdade. Aos 40, se mudou para Curitiba. Trabalhou a maior parte da vida como taxista e chofer, sendo forçado a parar em 2014, quando uma trombose venosa fez com que tivesse de amputar a perna direita do joelho para baixo. Aposentou-se por invalidez em 2018. Recebe 1.707,86 reais por mês do INSS, mas 761,09 são descontados automaticamente para quitar os empréstimos consignados que fez ao longo da vida. Sintz mora sozinho há quarenta anos, mas nunca teve casa própria. Vive no andar térreo de um sobradinho alugado por 750 reais, valor que inclui as contas de água e luz. A internet custa 104,90 reais.
Sobram 91,87 reais para custear todas as refeições do mês, além de outras despesas. O valor é complementado graças a um auxílio alimentar de 80 reais pago pelo município para ser gasto nos Armazéns da Família, mercados de baixo custo que existem em Curitiba há mais de três décadas. Sintz tem, portanto, um orçamento diário de menos de 6 reais para sua alimentação, que consiste basicamente em pão com margarina, café, frutas, arroz, feijão e, eventualmente, frango a passarinho. Às vezes ganha cestas básicas, e em algumas semanas faz bicos cortando grama na vizinhança.
Os produtos que furtou no Condor somavam 95,70 reais. Conduzido de volta ao supermercado, constrangido, Sintz levou uma advertência e se desculpou novamente. Estava prestes a ser liberado quando uma terceira segurança se aproximou. “Estou estressada, vou chamar a polícia’”, ela disse, segundo se recorda Sintz. O aposentado diz que, nesse momento, a mulher o xingou de “velho filho da puta”.
Quando a viatura chegou ao supermercado, os policiais perguntaram a Sintz se ele tinha dinheiro para pagar pelos itens furtados. Ele respondeu que não, e foi encaminhado para a delegacia dentro do “chiqueirinho” do carro, onde são acomodados os presos. A segurança fez a viagem acomodada no banco de trás, para prestar queixa.
Todos foram conduzidos à Central de Flagrantes da Polícia Civil, a vinte minutos dali. Os policiais exigiram que Sintz tirasse a roupa, a prótese e o cadarço do tênis, para ser revistado. “Demorou uma eternidade. Colocaram os produtos na mesa, tiraram foto. Pegaram minha carteira, meu relógio, meu celular. Perguntaram onde eu morava, minha idade, minha altura. Tiraram uma foto minha de lado e outra de frente.” Sintz é diabético. Chamou atenção do escrivão para o fato de que só tinha tomado café naquele dia. Precisava medir a glicemia, mas não recebeu assistência médica ou alimento. Nas horas que passou ali, se virou comendo as bananas que havia comprado.
Chamado para conversar com o delegado, Sintz desabafou: “Eu fiz burrada, doutor.” Não tinha antecedentes criminais, não impôs resistência à prisão e se disse arrependido, mas ouviu do policial que só deixaria a delegacia se pagasse uma fiança de 400 reais. Como não dispunha da quantia, os policiais sugeriram que telefonasse para um familiar. Sintz só conseguiu pensar em Neto, seu sobrinho de 62 anos, que ao saber do ocorrido se prontificou a ajudá-lo.
“Fiquei uma hora e pouco na delegacia até terminar todos os procedimentos, mas na hora de pagar a fiança fui informado de que precisava ser dinheiro em espécie”, diz Neto, que não carregava consigo 400 reais. “O delegado falou, por intermédio do escrivão, que estava terminando o plantão e não ia esperar. Às 19h10, disse que aguardaria até, no máximo, 19:40. Se passasse disso, meu tio teria que ficar preso até a audiência de custódia.”
Neto diz que, correndo pelo bairro atrás de um caixa eletrônico, se sentiu “como um moleque”. Conseguiu, por fim, sacar o dinheiro a tempo de entregá-lo aos policiais. Liberou o tio e lhe deu uma carona.
Neto diz que se sentiu péssimo. “Num caso assim, em que houve a devolução dos itens, que tinham pouco valor, em que a pessoa é humilde, reconheceu o furto e não tem antecedentes criminais, normalmente não há abertura de auto de prisão, e sim uma reprimenda por parte do delegado”, diz o sobrinho, que tem formação em direito. “É discricionário”, ressalta. “Mas houve rigor excessivo.”
Assim que deixou o tio em casa, Neto dirigiu até o supermercado Condor e pediu para conversar com a chefia. Segundo ele, foi atendido pelo gerente da noite, chamado Adriano, que ficara sabendo do furto. “Eu disse a ele que meu tio gostaria de se retratar e pedir desculpas pelos transtornos causados, mas que também queria receber um pedido de desculpas por parte da vigilante que o ofendeu”, relembra Neto. “Eu também disse que esperava a retirada da queixa na delegacia, principalmente por ter sido um ato praticado contra uma pessoa negra, idosa, pobre e com deficiência física no Dia da Consciência Negra, ressaltando que ele não causou prejuízo porque as bandejinhas de presunto e queijo e os chocolates foram devolvidos.”
O gerente disse não ter autoridade para tomar uma decisão, mas se comprometeu a repassar a mensagem para seus superiores. “Eu falei que aguardaria o jurídico do supermercado me procurar. Tomei o cuidado, inclusive, de liberar o meu celular para receber chamadas de telefones desconhecidos, mas não recebi retorno até o momento.” Procurados pela piauí, o supermercado Condor e a Polícia Civil do Paraná não se manifestaram até o fechamento desta reportagem.
Não há, no Brasil, uma estatística unificada sobre furtos famélicos – aqueles praticados por quem tem fome, com o intuito de saciá-la. Casos que se enquadram nessa categoria, por mais insignificantes que sejam, ainda chegam com frequência ao Supremo Tribunal Federal, último degrau da Justiça brasileira. No ano passado, a ministra Cármen Lúcia absolveu um homem que furtou quatro galinhas em Bambuí (MG), num processo que tramitava desde 2019. Cada ave valia 5 reais.
Em setembro deste ano, a Segunda Turma do STF absolveu um homem que havia sido condenado a um ano e dois meses de prisão por ter roubado um rádio e um pendrive em Pouso Alegre (MG). Os produtos, juntos, valiam 60 reais. Gilmar Mendes, cujo voto foi seguido pelos demais, afirmou que “não é razoável que o direito penal e todo o aparelho do Estado-polícia e do Estado-juiz movimentem-se no sentido de atribuir relevância” a um furto assim. O Supremo, nesses casos, tem se guiado pelo princípio da insignificância.
A posição do STF, contudo, não tem força de lei. Delegados e promotores podem abrir inquéritos e protocolar denúncias por furtos de KitKats. A Justiça pode levar à prisão quem furtou comida para matar a fome ou para suprir uma necessidade básica de subsistência.
Sintz não sabia, até ser avisado por seu sobrinho, que aquela quarta-feira era o Dia da Consciência Negra, celebrado pela primeira vez como um feriado nacional. Liberado da delegacia, chegou em casa, mediu a glicemia, aplicou insulina, tomou um banho e foi dormir.
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