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Começa no banheiro, termina na Justiça
No mais recôndito dos espaços de uma empresa, alguns vestígios de mesquinharias corporativas
Os desafios de Bruna durante a gravidez iam além das suas atribuições de operadora de telemarketing: ela tinha de se deslocar com barrigão e pés inchados até o banheiro e usar o espaço em até cinco minutos, cronometrados no relógio. Raíssa, atendente de uma rede varejista de roupas, não conseguiu se segurar e molhou as calças enquanto trabalhava porque não foi autorizada a ir ao lavabo. Janaína, atendente de uma empresa de telefonia, usava fraldas para não molhar a cadeira, diante do controle da chefia para uso do espaço. Um ferroviário recorria a sacos ou garrafas por falta de latrinas nos vagões. José Luiz, trabalhador da construção, preferia ir ao “mato” a usar a tenda sanitária oferecida no canteiro de obras, “um buraco no chão que fedia e juntava insetos”.
Enquanto parte do mundo empresarial discute boas práticas ESG (ambientais, sociais e governamentais, na sigla em inglês) e capricha em relatórios de responsabilidade social, uma série de condenações na Justiça dão uma boa amostra da mesquinharia corporativa aplicada no uso cotidiano desse espaço civilizatório fundamental.
“Tive crise de ansiedade, pesadelos e mal conseguia comer e dormir. Só lembrava da humilhação. Imagina fazer xixi nas calças no meio da loja”, conta Raíssa Avelar, que aos 19 anos pensava ter conquistado o “melhor emprego da vida” em uma loja da C&A no BH Shopping, na capital mineira. A experiência durou pouco mais de cinco meses e deixou uma lembrança traumática, segundo ela.
Era julho de 2023, Raíssa aguardava o intervalo pré-estabelecido de quinze minutos, pouco depois das 18 horas, para ir ao banheiro. “A orientação era sempre pedir permissão ao superior. Então, esperei meu horário de café.” Naquele dia, havia uma fiscalização interna, e o superior hierárquico direto lhe disse que não havia outro funcionário para substituí-la. Raíssa relata que insistiu, mas a resposta foi: “Segura um pouco.” Uma hora depois, pediu de novo, expondo a urgência, mas não foi atendida. Quando recorreu à solidariedade de outra mulher, responsável pela supervisão na ausência do chefe, a urina “já estava escorrendo”. “Subi as escadas em direção ao banheiro, mas, quando cheguei, estava toda molhada. Nunca passei tanta vergonha”, conta a jovem que, em vez de um pedido de desculpas, conta ter ouvido uma ameaça do supervisor: “Se continuar me dando trabalho, vou te voltar pro caixa.”
Na ação trabalhista por assédio e danos morais, o advogado de Raíssa, Leonardo Rezende, destacou que, apesar da roupa molhada e do cheiro de urina que a funcionária exalava, a loja (de roupas,´por sinal) “nem sequer ofereceu uma calça para que ela fosse embora”. A foto de suas calças jeans molhadas na altura da virilha foi anexada ao processo. O caso acabou em acordo judicial, com uma indenização de 16 mil reais paga pela empresa. Pouco tempo depois, Raíssa descobriu que estava grávida quando aconteceu o episódio.
A C&A diz que o processo de Raíssa foi encerrado após conciliação entre as partes e que não compactua com qualquer ação em desacordo com seus princípios éticos e morais ou que atente contra a dignidade dos seus funcionários e clientes. “Nesse sentido, para garantir um bom ambiente de trabalho, a companhia mantém mecanismos efetivos de compliance como canal de denúncia e empreende continuamente uma série de iniciativas e processos para que esse posicionamento alcance toda a liderança e funcionários da empresa”, ressalta a empresa em nota.
No processo contra a empresa de telemarketing Almaviva, em Minas Gerais, Bruna de Souza contou que era limitada a três pausas diárias para ir ao toalete ao longo da jornada, de no máximo cinco minutos cada uma. Ela diz que, mesmo grávida, “sempre estourava” a duração de seu expediente, devido às “pausas feedback”, momentos de sermão para os funcionários que não conseguiam ir ao banheiro nos prazos previstos. “E toda vez que eu tirava a pausa era a mesma situação humilhante. A supervisora gritava meu nome e todo mundo sabia que eu seria punida.” Bruna explica que pediu várias vezes para ter mais tempo de banheiro, mas ouviu da chefia que “gravidez não é doença”. Acabou desenvolvendo infecção urinária e pressão alta, apontadas por laudos médicos.
A Almaviva foi condenada a pagar uma indenização de 7 mil reais por danos morais. A juíza Ângela Rogedo Ribeiro afirmou que o conjunto de provas mostrou que “a empregadora adotou medidas de controle das pausas, impondo limites e restrições ao tempo de uso dos sanitários, restringindo, assim, a liberdade da autora [do processo] de satisfação das necessidades fisiológicas, ferindo-lhe a dignidade e o seu direito de personalidade, extrapolando os limites do poder diretivo do empregador”.
A empresa nega as práticas e, em nota, defende que advogados trabalhistas que atuam a favor da classe de empregados se aproveitam de estereótipos criados em nichos empresariais. “Essas condutas são claramente observadas nas diversas ações temerárias que são postuladas diariamente pelo comportamento da advocacia predatória.” A Almaviva diz ser contra qualquer tipo de preconceito, agressão física ou moral, cumprindo com seu compromisso em relação às leis trabalhistas, acordos sindicais e principalmente éticos. “Investimos continuamente em treinamentos e infraestrutura para garantir o bem-estar físico e social de todos os nossos colaboradores.”
O controle rígido do horário de intervalo pode ser mais frequente entre algumas operadoras de telemarketing ou atendimento telefônico porque a jornada de trabalho costuma ser monitorada via login e logout no computador, segundo funcionários ouvidos pela reportagem. “Se precisar fazer xixi fora do seu intervalo, não cumprirá seis horas diárias de jornada”, afirma o advogado Leandro Rezende.
No Ceará, o advogado Matheus Holanda dos Santos diz que cansou de ver a mesma história se repetir em processos que chegam ao seu escritório. “A cada dez casos que ingresso na Justiça do Trabalho, sete são do telemarketing”, afirma. “Esses trabalhadores chegam a situações extremas porque têm metas altíssimas para bater e não podem deixar o posto de atendimento fora dos horários pré-determinados. A maioria tem salários baixos que são complementados por programas de incentivo. Ir ao banheiro significa perder premiações.”
Foi o que levou Larice da Silva a conseguir na Justiça uma indenização de 5.754 reais em processo por assédio moral contra a Telefônica/Vivo em Fortaleza. A ex-funcionária conta que o tempo em que permanecia no banheiro influenciava negativamente no percentual do Prêmio de Incentivo Variável (PIV), um sistema de metas que podia chegar a até 70% do salário do empregado. “Para ir ao banheiro fora das pausas determinadas pela empresa, precisávamos programar uma pausa pessoal extra, que afetava o nosso PIV e também a meta do supervisor. Ou seja, impactava a equipe, e o supervisor nos cobrava”, diz Larice. “Eu segurava o máximo que conseguia, vivia ansiosa. Uma vez, a minha supervisora foi atrás de mim dentro do banheiro pra saber o que estava acontecendo porque passei dos dez minutos. E ficou claro que não era por preocupação com minha saúde.”
Bater meta a qualquer custo saiu muito caro para Janaína Arruda, 48 anos, que passou cinco anos atendendo clientes da Vivo/Telefônica Brasil. Ela chegou ao ponto de usar fraldas descartáveis porque tinha escapes de xixi entre os horários permitidos para a ida ao sanitário. “Como trabalhamos com a voz, temos que tomar água o tempo todo, e a vontade de fazer xixi aumenta. Como chamavam a atenção pelas pausas extras, ficava com a bexiga cheia e desenvolvi incontinência urinária”, relata. “Mesmo com fralda, às vezes o xixi passava para a cadeira, e eu não falava nada para ninguém porque era vergonhoso.”
A respeito da pandemia da Covid, quando os atendimentos passaram a ser em home office, Janaína afirma que não podia “sair um minuto sequer da tela do computador” em meio à pressão online de supervisores. Os problemas de saúde se acumularam, e a funcionária teve que passar por uma perineoplastia (cirurgia para reconstruir a região que sustenta a bexiga e outros órgãos pélvicos). Acabou demitida logo após voltar ao trabalho presencial. “Hoje vivo à base de remédios tarja preta”, desabafa.
Procurada pela reportagem da piauí, a Vivo/Telefônica Brasil informou que não comenta processos judiciais em andamento. Em relação ao processo de Larice, a companhia afirmou que “respeita essa decisão judicial, mas reforça que segue as determinações legais e as regras sobre as pausas com todo o rigor que a lei exige”.
“O controle formal por parte do empregador quanto ao uso do banheiro configura extrapolação do poder diretivo, causando constrangimento e humilhação ao trabalhador e constituindo-se em ato ilícito, passível de compensação moral”, afirmou o juiz Gabriel Garcez Vasconcelos, do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região, em uma decisão de janeiro deste ano. O magistrado determinou o pagamento de indenização de 8 mil reais para um ferroviário. Ele trabalhou de 2011 a 2023 para a MRS Logística, que administra uma malha ferroviária de 1.643 km, passando por São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais.
No processo, o homem contou que inexistiam banheiros nas locomotivas em que operava e que por isso recorria a “sacos plásticos, garrafas ou jornais”. Depois de algumas reclamações trabalhistas, a empresa instalou toaletes em algumas locomotivas, mas, segundo o trabalhador, “os sanitários implementados simplesmente não tinham água para descarga”.
O trabalhador já havia recebido uma indenização de R$ 12 mil em uma ação coletiva aberta pelo sindicato de sua categoria que resultou em um acordo com a empresa, homologado pela Justiça em agosto de 2018. A restrição ao uso do banheiro, porém, continuou a existir após aquela data, motivando um processo individual quando ele deixou a empresa. O juiz Gabriel Garcez Vasconcelos afirmou, na decisão, que “o direito à satisfação das necessidades fisiológicas constitui um direito humano fundamental, primário e básico, dada a condição biológica do ser humano”.
A MRS preferiu não comentar o processo que ainda está em andamento na Justiça. Mas informou que, atualmente, não há circulação de trens sem banheiro disponível para maquinistas. A empresa assumiu a concessão da Malha Regional Sudeste da Rede Ferroviária Federal Sociedade Anônima (RFFSA) em 1996 e diz que, “desde então, vem ampliando, renovando e readequando, constantemente, a sua frota de locomotivas que pertencia à RFFSA”.
Em 2020, a advogada Glenda de Oliveira Pinto começou a receber em seu escritório, em Lorena (SP), uma série de trabalhadores da Planova Planejamento e Construções. Acabou representando cerca de cinquenta deles, com ações da mesma natureza.
Distribuídos em canteiros de obra para construção e manutenção de linhas de transmissão de energia, relatavam situação precária no local onde permaneciam o dia inteiro. “O banheiro era um buraco no chão e um banquinho em que o trabalhador sentava para fazer as necessidades, com uma espécie de cortina de plástico ao redor, que a empresa chamava de tenda sanitária”, afirma Glenda.
José Luiz dos Santos trabalhou no canteiro de obras de Lorena e afirma que o cheiro que exalava da fossa era tão repulsivo que muitos preferiam fazer as necessidades básicas “no mato”. “Tinha mosca, todo tipo de bicho, uma nojeira”, diz o funcionário demitido no ano passado, após reclamar reiteradamente das condições de higiene, e que processa a Planova — o caso ainda está em andamento na Justiça.
Em outra ação contra a construtora, um servente do pátio de ferragens em Lorena, repetiu à Justiça que o banheiro era um “buraco no chão” que, ao ser utilizado, “não tinha como ser higienizado”. A Planova alegou que as denúncias eram “inverídicas” e que “cumpria as exigências das normas técnicas” laborais, mas foi condenada pela Justiça a pagar uma indenização de 2 mil reais para o trabalhador, por danos morais, após perder em segunda instância. Fotos e vídeos das tendas sanitárias foram anexadas ao processo. “Situação que não atende às normas de higiene e segurança no trabalho (…) ferindo a dignidade e o direito de intimidade dos empregados”, afirmou no acórdão o desembargador Claudinei Marques, relator do processo no Tribunal Regional do Trabalho da 15.ª Região
A falta de limpeza e o uso da chamada “bacia turca” — tipo de louça sanitária instalado no chão, sem assento — foram alguns dos argumentos de um funcionário na ação por danos morais contra a Metalúrgica Tuzzi Ltda, em São Joaquim da Barra (SP). Vencido em primeira instância, recorreu da sentença na corte superior e recebeu 3 mil reais de indenização. Há aí, claro, uma questão cultural: são bacias comuns em muitos países, mas causam estranhamento na maior parte do Brasil. Nos bastidores, a razão para a instalação é diminuir tempo de uso do banheiro, para que o empregado volte mais rapidamente ao turno, sem dormir ou ficar no celular.
O relator do processo de Oliveira no TRT de Campinas, Gerson Pistori, destacou que a bacia turca “não se coaduna com o mínimo de dignidade necessária” para o ambiente de trabalho. Em nota enviada à reportagem, o advogado Marcelo Dezem, representante da empresa no processo, informou que a Tuzzi “sempre esteve e permanece comprometida em garantir um ambiente de trabalho seguro e em conformidade com todas as regulamentações aplicáveis, incluindo as relacionadas às condições sanitárias”. Afirmou ainda que “a alegação lançada no processo indicado foi inédita, não se verificando em outras ações ajuizadas contra a empresa”.
é jornalista, com passagem por veículos como Agência Estado, CBN e Curto News
foi editor do Painel, do caderno Cotidiano e secretário de redação da Folha de S.Paulo. É colunista do UOL e da Folha
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