Luis Celso Damasceno, mototaxista que trabalha na Praça do Esplanada, em Teresina Foto: Vitória Pilar
Quadrinista em duas rodas
Em Teresina, mototaxista quer largar a moto para se consagrar com histórias de terror e super-heróis
Quando a Zona Sul de Teresina ainda está dormindo, Luis Celso Damasceno começa seu dia. Divorciado há quatro anos, ele prepara e toma café sozinho na pequena casa onde vive no bairro Porto Alegre. Em seguida, antes das cinco da manhã, ele desce alguns quarteirões até chegar ao bairro vizinho, na Praça do Esplanada. Damasceno repete o itinerário todos os dias, mesmo em feriados e fins de semana. Sentado numa “cadeira espaguete”, ele aguarda passageiros para transportar a todas as zonas da cidade. Ali, Damasceno observa tudo o que acontece na praça: os carros, os animais, as pessoas, os barulhos. É essa movimentação que lhe dá inspiração para os desenhos que faz numa prancheta apoiada em suas pernas. “Quem passa na calçada eu boto no papel e vira meu personagem”, conta, dando um sorriso largo.
O colete amarelo e laranja de mototaxista serve para guardar um estojo com grafite, borracha e uma caneta de ponta super fina. “Foi quase 70 reais essa bichinha”, diz, referindo-se à caneta (o valor equivale ao que Damasceno fatura com cinco corridas). “Manter um sonho é caro”, ele constata. Sem smartphone, internet ou qualquer meio de pagamento eletrônico instantâneo, como o pix, Damasceno se considera um dos poucos mototaxistas tradicionais que ainda restam em Teresina. Ele está na profissão desde 1979. Agora, aos 61 anos, quer mudar de carreira.
Sua relação com o desenho começou na infância, quando morava em Monsenhor Gil (distante 70 km de Teresina), junto de seu primo Renato. Os dois passavam as tardes inventando histórias e criando personagens, mas, por falta de incentivo, nenhum dos dois se profissionalizou. Enquanto Damasceno entrou para o mundo do mototáxi, Renato virou empreendedor no ramo da moda. “Depois que precisei trabalhar, passei a desenhar só aqui e acolá. Não mostrava meus desenhos pra quase ninguém”, diz Damasceno. Quando veio a pandemia de Covid, em 2020, Damasceno precisou trocar a praça pela casa. “Foram quase cinco meses desenhando sem parar, o dia todo riscando no papel. Criei um mundo de histórias.”
Até ali, contudo, o sonho de ser desenhista ainda era uma hipótese remota. Isso mudou quando, por obra do acaso, Damasceno conheceu Bernardo Aurélio, editor de quadrinhos. Ao notar que o mototaxista era um autodidata, Aurélio tratou de iniciar uma campanha para arrecadar recursos no Catarse, site de financiamento coletivo, com o objetivo de juntar dinheiro para publicar uma das histórias de Damasceno. A meta da campanha era arrecadar 10 mil reais até o final de fevereiro para a publicação da revista Cenouras Malditas. Antes de o mês acabar, a vaquinha virtual já tinha acumulado 11,8 mil reais, contabilizando 283 apoiadores diferentes.
Cenouras Malditas é o nome de uma das seis HQs que compõem a revista. A história foi concebida por Damasceno e Aurélio como um conto de terror e mistério. Eles avaliaram que a hachura forte utilizada nos desenhos do mototaxista daria o tom gótico necessário à trama. “É de arrepiar”, conta Damasceno, gargalhando.
O processo criativo do mototaxista começa pelos traços: primeiro ele desenha, depois cria os diálogos. Em Cenouras, ele conta a história de Onofre, um lavrador, plantador de cenouras, que faz um pacto com o diabo para se vingar dos ladrões que roubaram sua safra e mataram sua cachorrinha. “Seu Onofre transforma-se em um tipo de pazuzu e sai matando geral para se vingar. É catártico!!!”, diz o texto que apresenta a campanha de arrecadação, no Catarse. O estilo sombrio acompanha outras histórias da revista, como A Maldição do Vesgo do Quinto dos Infernos.
Damasceno, que por muitos anos pensou que a arte não lhe traria mais do que algumas horas de passatempo, mudou de ideia. Não tem a ambição de ser famoso, mas quer viver dos desenhos. Os primeiros exemplares de Cenouras Malditas serão impressos ainda em março, entrando em circulação até o final de abril para serem vendidos na livraria da editora Quinta Capa, de Bernardo Aurélio, localizada no bairro Ininga, na Zona Leste de Teresina. Com a ajuda de uma de suas filhas, que administra o perfil do pai no Instagram, Damasceno pretende divulgar sua obra para além do Piauí, e quem sabe, do Brasil.
Enquanto os pormenores da publicação se resolvem, o mototaxista está trabalhando em uma história muito maior: Filhos do Tempo. O enredo começou a ser desenhado antes da pandemia, e, hoje, tem mais de trezentas páginas. Todos os dias, no intervalo entre um passageiro e outro, a história ganha uma folha a mais. Filhos do Tempo fala sobre heróis de Piripiri, cidade do Norte do Piauí com cerca de 60 mil habitantes (que Damasceno nunca visitou). De lá, cinco jovens com superpoderes saem para cumprir missões e aventuras em pontos turísticos do estado. “Se tudo der certo, vou me aposentar da motinha ainda este ano”, suspira Damasceno.
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