O presidente Jair Bolsonaro e a primeira-dama, Michelle Bolsonaro, durante o Culto de Ação de Graças promovido no Palácio do Planalto em 2019 -- FOTO: CAROLINA ANTUNES/PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA
Quando a cruz vira espada
Seguindo o manual dos autocratas, Bolsonaro apela à radicalização religiosa para dividir o país e corroer ainda mais a democracia
“Só Deus me tira da Presidência”, bradou Bolsonaro, pela enésima vez, agora diante de uma multidão de apoiadores que se reuniu na Avenida Paulista no Sete de Setembro. “Nós temos três alternativas: preso, morto ou com vitória. [Vou] dizer aos canalhas que nunca serei preso.” Sua legião de seguidores foi à loucura. Partindo para o tudo ou nada, o presidente deixou claro que só sairá do poder se Deus lhe abreviar a vida. Em seu roteiro de golpe particular, a sede de poder, típica de autocratas, é substituída pela vontade divina de perpetuá-lo no comando da nação. Uma espécie de direito divino dos golpistas.
Essa mistura de absolutismo medieval com ditadura militar bananeira é traço singular do bolsonarismo. Na história moderna do Ocidente, cristianismo, nacionalismo e militarismo só se fundiram dessa forma nos experimentos fascistas ibéricos de Franco (chefe de Estado da Espanha de 1936 a 1975) e Salazar (chefe de Estado de Portugal de 1932 a 1968). Embora nosso golpe de 1964 tenha sido patrocinado e fomentado por grupos católicos radicais, os militares sempre buscaram manter uma postura laica e ecumênica – inclusive na perseguição e tortura de bispos e leigos católicos que atuavam contra o regime.
No caso de Bolsonaro, a religião está na base do movimento que o conduziu ao Planalto, em 2018, e que o sustenta desde então. Da infame declaração de campanha, segundo a qual o Brasil seria um “país cristão” em que as minorias deveriam se curvar às maiorias, ao desgastado bordão “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”, passando por manjados versículos bíblicos, o bolsonarismo não perde uma oportunidade de reforçar essa estranha ideia de nação cristã.
Estranha porque propõe uma total reorganização da nossa leitura de sociedade: todas as clivagens pelas quais buscávamos dar sentido ao Brasil – gênero, raça, classe, regionalismos – são eliminadas em favor de uma dicotomia entre os verdadeiros brasileiros, cristãos, e os traidores da pátria, que não comungam dessa mesma fé (conforme compreendida pelo bolsonarismo). Ao mesmo tempo, esse movimento resolve a antiga disputa entre católicos e protestantes, pasteurizando as diferenças num receituário ideologicamente conservador e tradicionalista. Todos são cristãos e Bolsonaro é seu messias.
Não à toa, um dos atos de campanha mais simbólicos de Bolsonaro ocorreu durante sua viagem a Israel, em maio de 2016. Recém-filiado ao Partido Social Cristão (PSC), ligado à Assembleia de Deus, o então deputado foi batizado nas águas do Rio Jordão pelas mãos do ex-candidato presidencial Pastor Everaldo, presidente do partido. Formalmente católico, mas cercado por um núcleo político-familiar evangélico, Bolsonaro explorou essas ambiguidades para ampliar sua base de apoio junto a grupos religiosos. Desde então, o desbocado capitão passou a misturar suas bravatas politicamente incorretas e apologias à tortura com frases de efeito dominicais.
A estratégia deu resultado: ele ganhou a eleição com amplo apoio de evangélicos e de católicos conservadores – e, ao contrário de outros grupos preteridos ou até mesmo abandonados pelo meio do caminho, os cristãos mais radicais seguem como pedra angular do bolsonarismo. Nesse arco, reúnem-se figuras tão distintas quanto Silas Malafaia, Edir Macedo, Ernesto Araújo e dom Bertrand de Orleans e Bragança.
A fórmula política que assegura a adesão cristã a Bolsonaro pode ser resumida na ideia de nacionalismo religioso. Cunhada pelo sociólogo norte-americano Mark Juergensmeyer, a expressão remete a uma visão de sociedade que condiciona o pertencimento nacional não a critérios legais e laicos de cidadania, mas à filiação religiosa. Trata-se de um fenômeno global que ganhou força no pós-Guerra Fria, especialmente em regiões periféricas do mundo, do Irã ao Afeganistão, do Sri Lanka ao Myanmar. Nelas, a disputa entre capitalismo e comunismo foi suplantada por expressões religiosas de afirmação nacional, com enorme potencial de violência sectária.
Nos últimos anos, a ideia de organização política em torno do eixo religioso-civilizacional expandiu-se para além dos grotões. A crise dos valores liberais do secularismo e do multiculturalismo criou condições para a ascensão de partidos e lideranças populistas de extrema direita, que muitas vezes estão atreladas a uma cosmovisão fundamentalista religiosa. Governos de países tão distintos como Estados Unidos, Hungria, Índia e Polônia passaram a defender a necessidade da regeneração espiritual de suas sociedades, tornando a religião o principal elemento de unidade nacional, em prejuízo de valores como a diversidade, o pluralismo e a tolerância.
O risco evidente desse nacionalismo antiliberal – seja de corte étnico, racial ou religioso – é a linha tênue entre a solidariedade e o supremacismo. Ninguém pode negar a importância dos laços de fé ou de sangue como fundamento da vida comunitária. No entanto, tomar uma religião como moralmente superior às demais, a ponto de se pregar a assimilação forçada, a segregação social ou até mesmo a eliminação literal de quem não pertence ao grupo, é a antítese do espírito secular da modernidade e do projeto democrático que se consolidou no próprio Ocidente ao longo do último século.
Certas democracias populosas foram tomadas de assalto pelo discurso radical religioso. Na Índia, o nacionalismo hindu, também conhecido como hindutva, transformou-se na principal bandeira do governo conservador de Narendra Modi. Ao mobilizar o hinduísmo como parte indissociável da identidade nacional, o premiê vem alterando a legislação e fazendo vistas grossas à violência de sua milícia partidária, a RSS, para transformar cerca de 180 milhões de muçulmanos em cidadãos de segunda classe. Sintomaticamente, entre os traidores da pátria estão, além da grande minoria islâmica, jornalistas, esquerdistas e opositores em geral.
Nos Estados Unidos, apesar de ser um fenômeno antigo (e amplamente documentado), o nacionalismo cristão em sua versão radicalizada está na base do trumpismo, movimento ultraconservador que foi gestado dentro do partido Republicano nos últimos anos. Segundo pesquisa dos sociólogos Andrew Whitehead e Samuel Perry, aproximadamente 20% dos norte-americanos identificam-se com essa teologia política, que subverte narrativas e simbologias cristãs para reconstruir uma versão pura, elevada e segregada da “América”.
Andando de mãos dadas com o supremacismo branco e flertando com o autoritarismo, o nacionalismo cristão explica não somente o apoio incondicional de certos grupos a Trump, mas também arroubos antidemocráticos como a invasão ao Capitólio, em 6 de janeiro deste ano. Em meio à turba que reivindicava a permanência do republicano no poder, viam-se palavras de ordem bíblicas, camisetas com símbolos religiosos e placas exaltando tanto Jesus Cristo quanto seu improvável porta-voz mundano.
Eis a ironia do nacionalismo cristão dos dias atuais: nem Trump nem Bolsonaro são exemplos de vidas devotas, abnegação material ou comportamento pio. Mas são populistas autoritários que perceberam o valor estratégico de se instrumentalizar a religião como forma de construir uma narrativa totalizante e sacramentar o apoio de parcelas numerosas da população. Em nome de Deus, lideram movimentos reacionários, marcados por desrespeito às instituições democráticas, sectarismo religioso e violência política. De quebra, garantem sua governabilidade ao adular lideranças clericais, oferecendo-lhes a aprovação de pautas conservadoras, benesses fiscais e oportunidades de negócios.
No caso brasileiro, são abundantes as evidências de que uma fração expressiva do bolsonarismo é adepta a uma visão radical de nacionalismo cristão. “A relação entre esta nação e Cristo é intrínseca, fundante e inseparável”, diz o programa do partido criado por Bolsonaro, a Aliança pelo Brasil. A despeito do fracasso da empreitada partidária, que nunca saiu do papel, as implicações concretas dessa teologia política já se fazem sentir – desde coisas mais prosaicas, como cultos escondidos no Palácio do Planalto e indicação de ministros por rateio denominacional, até práticas explicitas de supremacismo cristão, como a evangelização forçosa de indígenas, perseguição a defensoras da legalização do aborto ou destruição de terreiros de religiões afro-brasileiras.
Não restam dúvidas de que nosso nacionalismo cristão, conduzido pelo profeta autoritário e travando uma guerra santa contra inimigos fantasmagóricos, é uma ameaça à democracia brasileira. Para satisfazer seus desejos de poder e seus delírios ideológicos, os cruzados tropicais já estão preparando uma nova investida autoritária, com as bênçãos de Deus e em defesa de Bolsonaro. Resta saber se, como nos Estados Unidos, nossas instituições serão capazes de dar a volta por cima. A esta altura, o compromisso de defendê-las deve ser mais que um mero ato de fé.
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