Gugu Liberato apresenta Shakira no Domingo Legal, em 1997 Moacyr dos Santos/SBT
Quando Shakira, a do Velho Testamento, desbravou o Brasil
Décadas atrás, a colombiana rodou capitais e cidades do interior, encarou toda sorte de programa de tevê – e assim fez do país a pedra fundamental de sua carreira no exterior
“Você já viu o pessoal fazendo a Dança da Bundinha?”, perguntou o apresentador Gugu Liberato no palco do Domingo Legal, do SBT. De olhos arregalados, a cantora Shakira, em seus 20 anos de idade, se esquivou de qualquer possibilidade de fazer a coreografia: “Conheço, mas não sei dançar.” Era março de 1997 e a tevê aberta brasileira era pródiga em meter seus convidados nos embaraços mais diversos. Mais do que depressa, Gugu escalou Marinara Costa, ex-policial que havia ficado famosa ao posar nua, para ensinar os movimentos à cantora colombiana. Restou a Shakira botar a mão no joelho, dar uma abaixadinha e encerrar assim que pôde a cena. Como a audiência respondeu bem, esticaram a permanência da cantora por mais tempo. Nos blocos seguintes, ainda teve de assistir à competição do quadro Banheira do Gugu e uma outra em que homens e mulheres disputavam para ver quem se despia mais depressa. Em contrapartida, pode mostrar muito mais o trabalho, em um programa que brilhava no Ibope. “Eram duas músicas, mas ela dublou o álbum inteiro”, relata o publicitário Valtinho Fragoso, um parceiro-chave na fase em que a jovem artista perambulou pelo Brasil em sua estratégia para se tornar uma estrela internacional.
Passadas quase três décadas, Shakira soma cerca de 100 milhões de discos vendidos, quatro Grammys (o último no início deste mês, de melhor álbum pop latino), catorze Grammys latinos e 29 canções na parada Hot 100 da Billboard.
Neste mês, ela está de volta ao Brasil, para a estreia da nova turnê, Las Mujeres Ya No Llorán (as mulheres não choram mais). Fará show amanhã no estádio Nilton Santos, Rio de Janeiro, e de lá segue para São Paulo, para o palco do Morumbis, no dia 13. A expectativa é reunir cerca de 120 mil pessoas nessas duas datas. A temporada terá outras quarenta e duas apresentações por toda a América até junho, incluindo dezoito cidades dos Estados Unidos. Números vultosos de uma artista da linha de frente do pop – mas que personificou a máxima de que “todo começo é difícil”. Cantou em kartódromo, fez shows com febre de 39 graus e encarou um périplo por programas de auditório que não costumavam primar pela sutileza.
Em meados dos anos 1990, o Brasil recém-ingressado no plano Real foi o primeiro país de dimensões continentais a abraçar a música da moça de 18 anos vinda de Barranquilla, no Norte da Colômbia, o que chancelou seu nome para outras subsidiárias da gravadora Sony Music. Dessa forma, foi uma peça-chave de sua carreira global.
Em outubro de 1995, Shakira lançou em seu país natal o álbum Pies Descalzos. Ela havia sido contratada anos antes pela Sony Music de lá para três discos. Os dois primeiros foram mal de vendas e essa era sua chance derradeira. A essa altura, a moça tinha participado da novela colombiana El Oasis, que tornou seu rosto mais conhecido do público. A notoriedade televisiva pesou, a cantora estava mais madura e conseguiu negociar certa autonomia para a produção das faixas. O disco, enfim, deslanchou, primeiro em sua terra, depois nos países hispânicos vizinhos, até ressoar no Brasil.
Conforme o sucesso se consolidou, dois executivos da gravadora no Brasil fizeram as malas para conhecê-la: Roberto Augusto Soares e Luiz Calainho, então diretor artístico e diretor de marketing, respectivamente. “O carisma dela, aquela levada pop das músicas, o timbre muito próprio… Tudo indicava que ali havia uma oportunidade muito importante. Voltamos decididos a lançar Shakira por aqui”, conta Calainho. Entender os passos seguintes requer uma olhada para o panorama cultural do mundo pré-internet. Era a época das mídias de difusão de massa, que tinham como característica concentrar nas mãos de pequenos grupos o poder de decidir que produtos chegariam às multidões. Nas palavras de Calainho: “Toda música que os milhões de brasileiros curtiram nos anos 80 e 90 foi escolhida por uns 25 executivos da indústria.”
A Sony Brasil decidiu investir. Montou um plano de marketing típico da época, que consistia na exposição intensa e massiva de Shakira na maior quantidade possível de pontos de contato com o público. Eram fundamentais, portanto, os programas de televisão e rádio. Entravam também na estratégia entrevistas em jornais e revistas, bem como tentativas de emplacar canções entre os disc-jockeys de grandes casas noturnas. Tudo isso entremeado, assim que possível, com uma turnê por vários estados.
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É aqui que o caminho de Valtinho Fragoso, lá do primeiro parágrafo, cruza com o de Shakira. Em 1996, ele era funcionário da Sony Music e tinha como missão divulgar artistas da empresa em baladas de São Paulo. Entre seus alvos estava Ronaldo Gasparian, que comandava o som dois dias por semana no Moinho Santo Antônio. A casa noturna ocupava o imenso imóvel na Mooca, Zona Leste de São Paulo, onde hoje funciona uma unidade da Faculdade das Américas. Aos domingos, Gasparian embalava cerca de 5 mil pré-adolescentes nas matinês. Portanto, era um elemento chave para a disseminação de potenciais novos hits. Depois de ouvir, ele aceitou tocar Estoy Aqui. Mal começaram os primeiros acordes e… A pista esvaziou. “Parecia um velório, ninguém se mexia”, conta o DJ. Porém, essa rejeição inicial estava prestes a mudar, conforme outra frente da estratégia de divulgação ganhava força.
Calainho, o executivo da Sony que trouxe Shakira, relata que o plano de marketing da gravadora tinha como um dos pilares a Jovem Pan, conhecida por seu poder de emplacar talentos. “Propusemos praticamente uma sociedade ao Tutinha [dono da estação], mas ele não aceitou.” Embora tenha declinado, o empresário levou o disco para casa. Uma semana depois, percebeu que sua filha estava cantando os versos de Estoy Aqui com grande empolgação e mudou de ideia. O acordo comercial previa que a Jovem Pan ficasse com 1 real de cada disco da colombiana vendido no Brasil – e foram mais de 1 milhão de cópias. “Com o perdão do clichê, foi uma win-win situation [situação ganha-ganha]. Todo mundo se deu bem: a rádio, a Sony, a artista e até o público”, diz Calainho. Procurado pela piauí, Tutinha não respondeu aos pedidos de entrevista.
Uma faixa após a outra, Pies Descalzos virou febre entre os ouvintes da Jovem Pan – e das demais emissoras, naturalmente. Em paralelo, Gasparian, que não havia desistido de tocar as canções da artista, percebeu que Shakira passou a encher as pistas. O plano de marketing havia montado um ecossistema que se retroalimentava: os jovens que ouviam a música no rádio se empolgavam ao ouvi-la nas baladas e os que haviam tido contato primeiro nas festas aumentavam a audiência quando as canções eram executadas na mídia. Ou tudo isso ao mesmo tempo. “Em toda festa, vinha um funcionário da Jovem Pan com bloquinho na mão, que anotava quais as músicas mais empolgavam o pessoal. A que causasse mais comoção era tocada mais vezes durante a semana”, relata o DJ Gasparian.
O efeito Shakira não se restringia à capital paulista. A primeira leva de shows da artista no país, em 1996, incluiu Manaus, Goiânia, Belém, Barretos (SP), Brasília, Maringá (PR), Belo Horizonte, Salvador e Recife. “No começo, era mais difícil conseguir patrocínio para os shows, porque as marcas não sabiam bem quem era. Mas o público conhecia e corria para comprar ingresso”, afirma Humberto Pereira Lima, que trabalhava no comercial da WTR, empresa responsável por organizar a série de apresentações.
Em março do ano seguinte, Shakira voltou ao Brasil, inclusive para cantar no mesmo Moinho Santo Antônio, da Mooca, que rejeitara sua canção tempos antes. “Cabiam 6 mil pessoas e devia ter umas 2 mil a mais”, lembra Gasparian. O circuito de apresentação era intercalado com aparições na mídia e Valtinho Fragoso foi escalado para acompanhá-la nessa peregrinação. “A gente esteve em todas as rádios e emissoras que você possa imaginar: de Mogi das Cruzes a Guarulhos, do AM ao FM, da Avenida Paulista ao Morumbi”, diz Valtinho. O mesmo se deu com as atrações televisivas: teve Shakira no Gugu, no Faustão, na Hebe, no Raul Gil, na MTV. Onde houvesse um auditório e audiência, lá estava ela. De tanto circular com a cantora, Fragoso acabou aparecendo no programa do Jô Soares, no SBT. O célebre entrevistador quis que a moça sambasse para a plateia – de novo a dança como uma prova de amor ao país – e Shakira tirou o companheiro de jornada dos bastidores para se juntar a ela na tarefa. “Nossa conexão era uma coisa cármica”, conta. “Virei o cara que subia no hotel, ajudava a passar roupa, ia com ela comer pão de queijo e coração de galinha no Galeto’s. Ficamos muito amigos mesmo.”
As participações de Shakira na televisão brasileira entre 1996 e 1997 poderiam render um estudo de caso sobre como um artista pode utilizar a exposição na mídia a seu próprio favor. A artista reagia com naturalidade a (quase) tudo e respondia sem titubear perguntas assanhadas e pedidos inusitados, como o feito no Programa Livre, do SBT, em que uma adolescente da plateia pediu para ver seus Pies Descalzos, prontamente exibidos. Fora isso, se dedicou a aprender bem o português, idioma no qual se mantém fluente (ela também fala, com diferentes níveis de proficiência, italiano, árabe e inglês). Usava roupas básicas que destoavam do figurino de popstar internacional.
Em alguns momentos, como numa participação no H, que Luciano Huck apresentava na Band, ela pouco se distinguia visualmente das demais meninas da plateia. Um programa após o outro, a colombiana galvanizou o público com sua imagem de menina dedicada, talentosa, sem afetações e encantada com o Brasil. “A estratégia que a gente montou era excelente, mas só deu certo porque ela realmente cativava as pessoas”, analisa o ex-Sony Calainho.
Conforme o Brasil abraçava Shakira, ela dava esse abraço de volta. Esforçava-se para conhecer a cultura nacional – ficou apaixonada pela música Mama África, de Chico César – e, além das iguarias mencionadas algumas linhas acima, citava nas entrevistas paixões nacionais como feijoada, pudim e churrasco. Já era maior de idade, mas viajava sempre com os pais, Nidia Ripoll e William Mebarak, e o irmão, Antonio, que trabalhava em sua equipe. Nas visitas ao país, não se empolgava com baladas ou qualquer atrativo que alguém de sua idade pudesse achar interessante. “Ela sempre foi muito pé no chão. Nunca saía do foco”, diz Valtinho. Segundo ele, a artista também tinha seus momentos de timidez e constrangimento. Um dos mais marcantes se deu numa sessão de fotos para a revista Querida, publicação adolescente da Editora Globo, quando teve de se sentar no colo do paquito Marcelo Faustini. E às vezes relutava em demonstrar a dança do ventre, que aprendeu aos 4 anos de idade. Anos mais tarde, esses movimentos se tornariam uma de suas marcas registradas em sucessos como Ojos Así e Hips Don’t Lie.
Em março de 1997, mesmo mês em que esteve no Domingo Legal, Shakira cantou no Speedy Kart de Ribeirão Preto, com ingressos à venda por 20 reais no Bob’s do Ribeirão Shopping – em valores atuais, o equivalente a cerca de 173 reais, nada perto dos 490 reais mínimos necessários para ver uma apresentação dela em fevereiro. Na passagem pelo interior paulista, ficou hospedada no Hotel Taiwan, um quatro estrelas de quatro pavimentos e um mezanino, para onde vários fãs rumaram em busca de contato com a artista. Entre eles estava o ator Tino Nascimento, que tem em seu perfil de Facebook uma extensa galeria de fotos ao lado de famosos – de Xuxa a Paulo Autran, passando por Pepê e Neném. E quem é que não está lá? Pois é, a Shakira. “Ela queria vir do mezanino para perto da gente, mas um produtor a levou embora correndo e não consegui chegar a menos de três metros dela”, lamenta, ainda hoje. Imagine a decepção do rapaz quando meses depois soube que a artista colombiana havia voltado à região, dessa vez de férias, e ido embora antes que o público ficasse sabendo. Ou seja, pela segunda vez perdeu a chance de uma foto com ela.
Tino Nascimento descobriu pelo jornal A Cidade, na edição de 1º de setembro de 1997, que Shakira havia passado alguns dias de descanso em Jardinópolis. A publicação daquele dia estampou uma imagem da cantora na piscina com seu namorado da época, o ator porto-riquenho Osvaldo Rios, e o empresário Saulo Pereira Lima, dono da fazenda em que os dois haviam estado. “Ela andou descalça no pomar, colheu laranja e limão e teve sossego, coisa que naquele momento de turnê parecia ser raro”, afirma Saulo. A conexão da estrela internacional com a pacata cidade paulista se deu por meio de Humberto Pereira Lima, da WTR, irmão de Saulo. Como a turnê era muito intensa, com shows quase todo dia, ele convidou a artista para conhecer a propriedade de sua família em um pequeno respiro entre as datas das apresentações. As miniférias contaram ainda com uma visita a um clube de Ribeirão chamado Gamboa, onde Shakira teve lições de jet-ski. “Até hoje tem gente que não acredita que ela veio aqui. Quando sai notícia na mídia vem todo mundo perguntar a respeito”, diz Saulo.
A estrada teve alguns perrengues. Carlos Cury, profissional responsável por gerenciar a turnê, conta que em agosto de 1997 Shakira e a equipe estavam em Belém e precisavam viajar para Barretos, no interior de São Paulo. A organização da apresentação paulista fretou um turboélice Brasília 30 da Passaredo, hoje Voepass. Embarcaram todos e logo em seguida pousaram em Tocantins para reabastecer. Pouco depois da decolagem, foi necessário descer de novo, agora em Goiânia. Ali, o piloto avisou que tinha gente e equipamento demais a bordo da aeronave, e que o excesso de peso tinha de ser resolvido. Como a apresentação do dia seguinte seria na própria cidade, largaram por lá tudo que foi possível. “Ela seguiu só com a mala de mão”, lembra Cury. “Quando chegamos ao interior, foi preciso trocar a aeronave, porque o trem de pouso estava prestes a quebrar.”
Segundo Cury, os pedidos de camarim incluíam banana, castanhas e chocolate, para dar energia e evitar cãibras no palco. Shakira bebia água e sucos. Fugia de álcool, pães, massas e refrigerantes. Era montado um espaço para a cantora, com capacidade para cinco ocupantes, outro para os dez integrantes da banda e um terceiro, dedicado aos seis membros da equipe técnica. “Quando a pessoa vira sucesso internacional, aparecem produtores que enchem de exigências porque acham que cria um glamour”, diz ele. “Raramente o artista aproveita aquilo. Trabalhei catorze anos com o Roberto Carlos, e ele pede biscoito água e sal e pão com manteiga.”
Luiz Calainho afirma que, nas reuniões de executivos da Sony, a ascensão de Shakira era tratada como um paradigma para lançamentos futuros. Uma reportagem publicada no jornal econômico Wall Street Journal, em fevereiro de 2001, falou da artista como um produto. Àquela altura, ela já tinha se consolidado entre o público latino residente nos Estados Unidos, porém era pouco conhecida pelos não-hispânicos – e a etapa seguinte era corrigir isso, com álbuns em inglês, idioma que havia aprendido pouco tempo antes. Entre os responsáveis pela Shakira que as gerações mais jovens conheceram – loira, de cabelos selvagens, furacão sensual – apareceram Emilio Estefan (marido da cantora Gloria Estefan), que trabalhou a parte musical e o visual, e o empresário Freddy DeMann, que tinha experiência ao lado de Madonna e foi escalado para estruturar a agenda de shows.
Parte do sucesso de uma popstar passa, necessariamente, por se deixar moldar em momentos assim – até certo ponto, pelo menos. Outra parte, no caso de Shakira, tem a ver com tomar as rédeas na hora certa. Arthur Fitzgibbon, CEO da ONErpm Brasil, plataforma de distribuição digital de música, conta que Shakira tem no mercado a reputação de conhecer cada passo dado em sua carreira. “Ela entende cada plataforma, a importância das diferentes modalidades de divulgação e, sobretudo, tem em mente que para se manter no auge é preciso apostar em renovação de público”, analisa o executivo, que menciona como evidência disso a recente parceria da colombiana com o argentino Bizarrap, querido da geração Z.
Em 2002, Shakira voltou ao SBT. Participou do reality show Popstars, do qual emergiu o grupo feminino Rouge – dividiu com as meninas da banda suas vivências até ali – e reencontrou Gugu Liberato no Domingo Legal. A carinha de menina havia dado lugar a uma mulher mais madura, com bronzeamento artificial e um macacão de couro preto. Já não aparecia sozinha em cena, mas com uma banda completa. Contou que tinha passado pelo Japão, pela Nova Zelândia e por toda a Europa.
Foi com esse status, o de “uma estrela conhecida nos quatro cantos do planeta”, que ela foi recebida por Luciano Huck no palco do Domingão do Huck, ontem, na TV Globo. O apresentador mostrou na tela uma imagem dos dois no palco do programa H, na Band, em 1997, quando ela dava os primeiros passos na carreira internacional. “Eu comecei aqui”, declarou. Em português fluente e com o carisma de sempre, explicou a razão de começar a nova turnê pelo Brasil. “É o melhor público do mundo”, disse. “Foi o país que abriu as portas à minha música, há tantos anos, e ainda continua comigo.”