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    CRÉDITO: Intervenção de Paula Cardoso sobre foto de Ana Carolina Fernandes_ Folhapress

anais da tragédia brasileira

Quando a violência vem de quem deveria proteger

Quatro meninas são estupradas por hora, a maior parte dentro de casa, e 17 pessoas são mortas pela polícia por dia, revelam dados do Anuário de Segurança Pública

Amanda Rossi | 10 set 2019_10h15
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Quem deveria cuidar, estupra. Quem deveria garantir a segurança, mata. Os números da violência no Brasil em 2018, divulgados nesta terça-feira pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, mostram uma realidade aterradora sobre duas tragédias cotidianas: as mortes provocadas por policiais no país e a violência sexual. Sete de cada onze vítimas de estupro são crianças com menos de 14 anos ou pessoas consideradas vulneráveis (com deficiência ou enfermas, por exemplo). Ao mesmo tempo, três de quatro agressores não são estranhos, mas sim pais, padrastos, tios, primos, amigos, vizinhos. Já em relação à violência policial, o número de vítimas não para de crescer. Em 2018, uma entre cada dez pessoas assassinadas morreu pelas mãos da polícia. 

“O ambiente doméstico é extremamente hostil para as crianças. Mas deveria ser o ambiente da segurança, da proteção. Por outro lado, a polícia, que está ali para defender e garantir cidadania, está tirando a vida de milhares de jovens todos os anos”, resume Samira Bueno, diretora executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e pesquisadora de segurança pública. “É um desconforto quando a gente olha esses dados. Um mal-estar civilizatório”, continua Bueno, que participou da análise de ocorrências policiais obtidas em cada estado do país, graças à Lei de Acesso à Informação, para a elaboração do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2019.

O retrato do estupro no Brasil resultante dessa análise difere da cena que geralmente se imagina sobre esse tipo de crime: mulheres adultas violentadas por estranhos na rua, em um ataque repentino. Não que esse tipo de crime não ocorra e não deva ser combatido, mas a grande maioria dos casos é uma violência pouco visível, cometida contra crianças dentro de casa, por pessoas que já as conhecem. 

As informações sobre violência sexual prestadas à polícia, por incrível que pareça, são mais abrangentes do que as obtidas na rede de saúde, que atende as vítimas. Entre 2017 e 2018, foram cerca de 130 mil ocorrências policiais. 

Para as vítimas do sexo feminino, os dados revelam que o número de casos de estupro começa a crescer a partir dos 7 anos de idade. A partir dos 10 anos, a alta fica mais vertiginosa. Aos 13 anos, ocorre o pico de casos. Já com o sexo masculino, as ocorrências aumentam drasticamente a partir dos 3 anos, com ponto máximo aos 7. A pior faixa etária para vítimas de estupro do sexo feminino é dos 10 aos 13 anos. Para as do sexo masculino, dos 5 aos 9 anos.

Em 2018, cerca de quatro meninas até 13 anos foram estupradas por hora no Brasil. Se o número de casos se mantiver este ano, serão cerca de cem crianças vítimas ao longo do dia de hoje. A realidade fica ainda mais cruel quando se considera que a quantidade de ocorrências registrada pelas autoridades públicas é muito menor que a de casos. A última pesquisa do Ministério da Justiça sobre vítimas de violência no Brasil, feita em 2013, estimou que menos de 10% das vítimas de violência sexual notificam a polícia.

“A gente vai fuçando nos dados e vai ficando cada vez mais assustada. A gente sabia que havia uma prevalência de casos entre menores de idade, mas não tinha noção que eram crianças tão novas. E o agressor é alguém da sua confiança, seu tio, seu vizinho, seu padastro. São todos potenciais agressores. E é geral, no Brasil inteiro”, afirma Samira Bueno. 

Essa dinâmica doméstica dificulta o combate ao problema. Uma das primeiras medidas necessárias é ajudar a criança a discernir quando sofreu uma violência sexual, para que possa relatar a alguém. A seguir, impedir que o abusador continue em convívio com a vítima, para que não ocorram novos abusos. 

Em janeiro deste ano, por exemplo, no Pará, uma menina de 11 anos procurou uma assistente social para contar que sofria violência sexual de um idoso que era tido na família como seu avô. Em maio, no Amazonas, uma menina de 7 anos relatou para a mãe abusos cometidos pelo tio. Em comum, as duas haviam visto uma palestra sobre abuso sexual na escola dias antes de relatarem o que estavam vivendo.

Nesses mesmos estados, o mito amazônico do boto narra a história de um belo rapaz que leva mulheres para a beira do rio e as engravida, se transformando em boto e desaparecendo antes da criança nascer. É um símbolo muito ligado à violência sexual doméstica. “O mito do boto esconde uma paternidade proibida, por diversas vezes fruto da violência que foi praticada contra aquela ribeirinha pelo pai, avô, padrasto, irmão, primo”, escreveram as juízas Elinay Melo e Nubia Guedes, que atuam na região do Pará e Amapá, em artigo de 2017.

A educação é uma das principais ferramentas para combater essa cultura de violência sexual doméstica, dizem especialistas. Há políticos, porém, que querem deixar as escolas longe do debate. “Autoridades políticas demonizam a educação sexual dentro da escola, quando a escola é, muitas vezes, o único espaço onde a criança pode aprender a identificar elementos de que esteja sofrendo uma violência sexual”, diz Bueno. 

Assim como as crianças não deveriam sofrer violência sexual, especialmente vinda daqueles que mais deveriam protegê-las, a sociedade não deveria correr tantos riscos nas mãos da polícia. Em 2018, dezessete pessoas foram mortas por policiais por dia no Brasil. O número total de vítimas chegou a 6 220, uma alta de quase 20% em relação ao ano anterior – e de 47% em comparação com o número de 2016.

 

O aumento da violência policial acontece num momento em que o Brasil registra a maior queda de homicídios nos últimos anos, de 10% entre 2018 e 2017. Especialistas não têm uma explicação na ponta da língua para essa redução. Uma das possíveis razões é uma combinação de forças entre facções criminosas, após uma alta dos conflitos entre elas em 2017.

Há algo porém em que a maioria dos especialistas concorda: a queda de homicídios não é provocada pela alta de mortes cometidas pela polícia. “Os discursos que associam letalidade policial à redução da violência não possuem lastro na realidade”, confirma o Anuário de Segurança Pública. Caso contrário, São Paulo não teria visto uma redução de 11% na taxa de homicídio, já que os policiais também mataram 10% menos. Ou então, em Roraima, estado mais violento do país no ano passado, não teria havido um crescimento de 65% na taxa de homicídio, uma vez que a taxa de mortes policiais subiu 183%.

A taxa de mortes provocadas pela polícia alcançou três a cada 100 mil habitantes no Brasil em 2018. É duas vezes a taxa de homicídio da França – incluindo todos os assassinatos no país europeu, não só os cometidos pela polícia. 

De fato, Brasil e França são muito diferentes. Já a Colômbia tem uma taxa de homicídios muito similar à brasileira e um histórico de atuação de crime organizado, assim como o Brasil. Porém, enquanto a polícia colombiana é responsável por quinze a cada mil assassinatos, a brasileira provoca 108 a cada mil.


Em alguns estados brasileiros, a taxa de mortes provocadas pela polícia é muito maior que a média. No Rio de Janeiro, que tem a polícia mais letal do país, chegou a 8,9 por 100 mil habitantes. É um número próximo da taxa de homicídios total do estado de São Paulo, 9,5 por 100 mil habitantes.

De São Paulo, porém, não se pode dizer que sua polícia seja pacífica. Em 2018, foram 851 vítimas. Em alguns locais, como o bairro do Rio Pequeno, na Zona Oeste da capital paulista, um jovem corria mais risco de ser morto pela polícia do que por um bandido, segundo análise dos boletins de ocorrência de 2015. Tente imaginar alguém que você conheça e que tenha por volta de 18 anos andando pelas ruas desse bairro. Haveria mais motivo para ter medo de uma pessoa fardada do que de um civil qualquer. 

O Anuário Brasileiro de Segurança Pública analisou o perfil de quase 8 mil vítimas de polícia nos últimos dois anos. Constatou que três de cada quatro são negros. Oito de cada dez têm até 29 anos. O ápice da mortandade pela polícia é aos 20 anos. 

“Se são criminosos matando, você tem como ter política de segurança pública. Já se é a polícia matando, o que você faz? A quem você recorre? Isso corrói as instituições. Nas favelas do Rio de Janeiro, por exemplo, quando as pessoas vivem o terror do tráfico, podemos pensar que o estado pode resolver o problema. Mas quando é o estado que mata, quem vai resolver?”, questiona Pedro Abramovay, advogado e diretor no Brasil da Open Society Foundations, organização internacional fundada pelo filantropo George Soros. Em um texto recente, Abramovay criticou o que chamou de “estatização” dos homicídios – quando o Estado passa a ser responsável por grande parte das mortes.

Mas os altos índices de violência policial não são uma realidade em todo o Brasil. Pelo contrário, há dinâmicas estaduais diversas – o que é compreensível já que as polícias militares são estaduais e possuem formações diferentes. A comparação entre Ceará e Pará é ilustrativa dessas disparidades. Em 2018, os estados tiveram taxas de homicídios equivalentes – 53 e 55 por 100 mil habitantes, respectivamente. Já as taxas de violência policial do Pará, que tem a segunda polícia mais violenta do país, foram muito superiores – 7,9 contra 2,4 por 100 mil habitantes no Ceará. 

“Há estados em que as polícias têm culturas operacionais que produzem muita morte, como Rio de Janeiro, Pará e São Paulo. E há estados em que as polícias praticamente não provocam mortes. Então, o fato de uma polícia matar mais que a outra está vinculado a práticas arraigadas em determinadas instituições”, explica Samira Bueno, do Fórum Brasileiro de Segurança, que fez doutorado sobre violência policial em São Paulo. 

Durante a pesquisa para o doutorado, Bueno entrevistou policiais paulistas matadores que estavam presos. Eles contaram que, até os anos 1990, era comum marcar uma listra com esmalte branco no revólver para cada morte cometida. Um das fontes da pesquisadora não conseguiu disfarçar o orgulho de ter tido um revólver parecido com a pele de uma zebra. Naquela época, São Paulo e Rio de Janeiro também chegaram a dar medalhas ou bônus salarial para policiais que matassem. “Quando você implanta uma política como essa, dificilmente um dia você vai conseguir eliminá-la. O policial foi forjado daquele jeito”, fala Bueno.

Mas não é só a cultura da corporação que modela o policial violento. Coronel da reserva da PM do Pará, Cristiane Lima passou vinte anos dando aulas de direitos humanos em cursos de formação policial. Nos últimos anos, observou uma mudança no perfil dos alunos. 

“Antes, eu ouvia muito um discurso de combate ao inimigo entre os policiais mais velhos. A gente analisava isso dizendo que era um fruto do treinamento que receberam na ditadura militar, em um período mais repressivo, de enfrentamento a um outro que era visto como inimigo. Mas, para minha surpresa, esse discurso está reaparecendo, mas na boca dos mais jovens, que estão entrando na polícia agora. Isso mostra que esse olhar não está só aqui dentro [das polícias], mas na sociedade brasileira”, relata Lima. 

“É o momento de pararmos e olhar o que está acontecendo no Brasil. Acreditávamos no mito de que o Brasil era cordial e estava avançando em direitos humanos. Mas muitas pessoas não queriam esse caminho”, continua ela. “Há um discurso punitivo que acaba invertendo os papéis em muitos momentos: ‘Eu deveria estar protegendo, mas tenho domínio sobre o corpo do outro.’ Seja a polícia decidindo sobre o corpo do jovem. Seja o familiar ou conhecido decidindo sobre o corpo da menina dentro de casa.” No Brasil, quem deveria proteger, fere. Crenças forjadas na violência, como os filhos do boto amazônico e “bandido bom é bandido morto” só ajudam a perpetuar o problema.

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