minha conta a revista fazer logout faça seu login assinaturas a revista
piauí jogos

    Veias abertas da Amazônia: a cena de uma área de garimpo em terras Yanomami Christian Braga/ Greenpeace

questões ambientais

Quatro pontos-chave sobre a Amazônia

Coordenação política, modelo econômico, estratégia territorial e comunicação: o que é preciso para reverter o curso da devastação

Philip Yang | 05 dez 2024_20h08
A+ A- A

A Amazônia, o maior bioma do planeta, segue ameaçada. Entre 1985 e 2023, o desmatamento na Amazônia resultou na perda de 55,3 milhões de hectares de vegetação nativa, o que representa cerca de 14% da área total do bioma e, apesar de reduções recentes, a destruição segue seu curso. Por que – com tantas boas intenções, acordos, diagnósticos e prognósticos que construímos nas últimas décadas – ainda não conseguimos reverter esse quadro?

Para que essa base enorme de conhecimento que já possuímos ganhe fruição e utilidade, precisaremos superar quatro grandes vácuos que persistem na estrutura de poder: de coordenação (política), de priorização (econômico-financeira), de estratégia (territorial) e de comunicação (social).

A lacuna de coordenação política é conhecida de todos. Há conflitos e superposições entre órgãos e esferas de governo. Entre o mercado e o setor público, prevalece uma profunda incompreensão sobre seus respectivos limites, possibilidades, interesses e motivações. À luz da COP30, a realizar-se daqui a um ano em Belém, é urgente a implementação da Autoridade do Clima para que essas dificuldades sejam superadas. Dada a natureza interministerial que esse complexo esforço exige, é fundamental – ou inevitável – que seja um órgão supraministerial ligado diretamente ao gabinete da Presidência da República, capaz de atuar como coordenador dos diferentes ministérios, que necessariamente precisam estar envolvidos em qualquer ação de política climática, e de dar ao tema o senso de prioridade e emergência necessários.

E aí chegamos ao ponto da falta de priorização no plano econômico. Hoje, uma miríade de frentes é colocada em movimento sem a força necessária para que tenham o efeito desejado. Por exemplo, programas para fomentar a bioeconomia existem, mas são desconectados das políticas de infraestrutura ou crédito agrícola, dificultando sua expansão para substituir atividades predatórias. Projetos de Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação (REDD+) são financiados por empresas privadas ou doações internacionais, mas frequentemente nãose articulam com políticas públicas locais. Muitas organizações não governamentais desenvolvem projetos independentes de conservação ou reflorestamento, mas a falta de coordenação com iniciativas governamentais ou entre si tem gerado duplicidade de esforços e desperdício de recursos.

As florestas só permanecerão em pé se conseguirmos provar de uma vez por todas que o sustentável é mais rentável que o predatório. Este deve ser o princípio geral que devemos adotar como critério de priorização. No contexto da avidez competitiva que mobiliza os agentes econômicos no capitalismo, a floresta só resistirá se as forças de mercado se interessarem pela sua preservação produtiva.

Felizmente, há dados que dão suporte a esse caminho. Atividades predatórias que operam na legalidade geram um teto de 1.500 de reais por hectare/ano, enquanto o agroflorestal sustentável é capaz de produzir rentabilidades de até 5.000 de reais por hectare/ano. 

Se aceitamos essa realidade como oportunidade, duas linhas de ação se impõem como necessárias. De um lado, será fundamental expandir os mercados globais dos produtos da floresta. Há uma falsa crença de que os mercados de consumo de produtos amazônicos são pequenos. A suposta limitação do mercado impediria o uso do solo da Amazônia para fins agroflorestais sustentáveis em escala. A verdade é que ainda desconhecemos o tamanho desse mercado potencial nos segmentos alimentício, cosmético, farmacêutico, de moda e biomateriais.

Esta é, porém, uma dinâmica comum em negócios. Empresas como Natura, Neutrogena, Boehringer ou Boticário não tinham em seus inícios a dimensão que viriam a atingir. Para ficarmos apenas no segmento da indústria fármaco-cosmética, lembremos que uma empresa como a L’Oréal, por exemplo, começou com tinturas para cabelos; a Bayer, com corantes para tecidos. Ambas começaram como empreendimentos pequenos e hoje são líderes globais em seus mercados. Esses exemplos mostram que o sucesso dessas empresas não foi espontâneo e nem estava visível no ponto de largada, mas resultaram de investimento contínuo em inovação, desenvolvimento de produtos de alto valor agregado e na criação de novos mercados. A mesma lógica, guardadas todas as devidas diferenças e especificidades, se aplica à Amazônia: as riquezas da floresta – o enorme banco de moléculas de que dispomos – não podem ser tratadas apenas como commodities brutas, exportadas sem transformação. Para alcançar seu potencial, é essencial criar produtos que combinem biodiversidade com conhecimento.

Um exemplo claro vem do mercado de café. Embora não cultivem um único grão, Suíça e Alemanha alcançaram um valor de exportações equivalente ao do Brasil – cerca de 7 bilhões de dólares em 2023. A diferença está na agregação de valor: enquanto o Brasil vende principalmente grãos, esses países transformam o café em produtos refinados com margens muito maiores. Da mesma forma, os produtos da floresta Amazônica precisam passar por processos de inovação e agregação de valor. Somente assim evitaremos que sigam a rota da comoditização, onde o preço é ditado mais pelo volume do que pelo valor adicionado, mais pela quantidade do que pela qualidade.

Para que isso aconteça, precisamos investir em inteligência comercial e fortalecer os segmentos capazes de gerar projetos e modelagens de negócios. Embora o ecossistema de financiamento detenha um volume tímido de capital, há ainda hoje mais recursos do que projetos. Curiosamente, no universo de fundos há dinheiro disponível; os índices de alocação são ainda baixos. Historicamente, carteiras como as do Fundo Amazônia, Fundo Clima ou Fundo JBS enfrentaram e continuam a enfrentar dificuldades para encontrar oportunidades de investimento. No encontro entre empreendedores e investidores, uma modelagem bem estruturada é o elo que une a ideia visionária à realidade do capital.

Modelos de negócio custam caro. Há aqui uma falha de mercado, pois empreendedores muitas vezes não dispõem de capital e investidores são avessos ao que não conhecem. É, portanto, fundamental que biólogos, agrônomos, engenheiros florestais, antropólogos, sociólogos, designers e povos nativos se unam aos segmentos especializados em modelagens econômico-financeiras e passem a aumentar a oferta de projetos de bioeconomia na Amazônia, constituindo um novo ecossistema em que a comunidade de pesquisa também atue como catalisadora de novos negócios.

Romper o hiato entre academia e mercados impulsionou a revolução digital no Vale do Silício; com um movimento parecido, agora envolvendo também os povos da floresta, podemos dar impulso extraordinário à transição verde. Comunidades nativas são conhecedoras de técnicas de manejo da terra, de propriedades medicinais de plantas, além de serem portadores de conhecimento das espécies de fauna e flora, seus habitats, comportamento, inter-relações e ciclos. Tal patrimônio – vastíssimo – constitui a base fundamental para as atividades de bioprospecção sustentável das riquezas naturais.

Como exemplo histórico de bioempreendimento na Amazônia, vale recordar o bem-sucedido processo de adaptação da pimenta-do-reino à floresta amazônica em Tomé-Açu, no Pará. Trata-se de um exemplo notável de agricultura integrada e adaptativa. Impulsionada pela colônia de imigrantes japoneses a partir dos anos 30, a iniciativa contribui para a biodiversidade e para a preservação da floresta em pé, a partir da valorização de produto florestal, numa dinâmica de manejo do solo que reduz a necessidade de desmatamento e de controle fitossanitário de pragas e doenças.

De outro lado, será fundamental deslocar a atenção dada aos mercados de carbono em favor de ações e projetos que fortaleçam empreendimentos da bioeconomia. Mercados de carbono são conceitualmente belos, mas as complexidades de mensuração, precificação e operação os tornam um mecanismo insuficiente e acabam resultando em ilusão. Não devemos deixar de aprimorá-los, como busca fazer a Lei que estabelece o Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões de Gases do Efeito Estufa (SBCE), recentemente aprovada pelo Congresso. No entanto, não podemos mais depender exclusivamente deles como fórmula central de preservação de florestas. Mercados de carbono devem ser complementares a empreendimentos agroflorestais, estes sim eixos centrais de conservação e de geração de valor econômico. 

A bioeconomia apresenta uma oportunidade singular para canalizar a vontade de empreender que tem emergido de forma eloquente na sociedade, mas que frequentemente tem sido capturada de maneira distorcida por forças políticas, inclusive criminosas, que direcionam o ímpeto ao empreendedorismo para propósitos limitados ou conflitantes com o interesse público. Uma ação concertada entre governo e mercado na Amazônia pode reorientar essa energia empreendedora para iniciativas que alinhem o desenvolvimento econômico sustentável aos reais interesses individuais e coletivos. Essa colaboração permitiria criar mecanismos que integrem saberes tradicionais e avanços científicos, promovendo cadeias produtivas que preservem a floresta em pé, ao mesmo tempo em que geram riqueza e inclusão social.

Nesse contexto, a adoção da Estratégia Nacional de Bioeconomia pelo governo federal é bem-vinda e aponta para a direção certa, mas precisa ser aprofundada com ações executivas. 

A terceira lacuna advém da perplexidade que a vastidão do território causa em qualquer observador. Com mais de 4 milhões de km2, o combate ao desmatamento no bioma amazônico demanda uma estratégia espacial clara. Prioridade máxima deve ser dada a territórios ameaçados, com foco especial em regiões periurbanas e urbanas e em franjas de empreendimentos predatórios legais existentes.

Nesse contexto, as cidades da Amazônia têm diante de si duas agendas distintas: a agenda do urbanismo convencional, comum às cidades brasileiras, que enfrenta os problemas semelhantes aos das demais regiões no domínio da habitação, mobilidade, saneamento, infraestrutura e segurança; e uma segunda agenda, que é específica às cidades amazônicas. A primeira agenda é pautada por uma disciplina bem estabelecida de planejamento urbano, hoje alimentada por tendências novas ditadas pela transição digital em curso.

A segunda agenda – urgente e inadiável, pois deve estabelecer as bases de como as cidades amazônicas podem ser transformadas em pilares da floresta em pé – é a fronteira do conhecimento. Ela demanda um novo urbanismo, uma nova espacialidade, capaz de integrar o rural e o urbano, a ser determinada pela transição verde.

Esse novo “urbanismo florestal” demandará um ordenamento socioespacial capaz de transformar a riqueza natural da Amazônia em oportunidades econômicas sustentáveis, sempre em benefício da preservação da floresta. Para que essa nova realidade “rurbana”, integradora do rural e do urbano, possa ser induzida, as cidades amazônicas deverão promover as chamadas economias de aglomeração – benefícios econômicos gerados pela proximidade de elementos de uma cadeia produtiva num mesmo local – tendo como imperativos a rentabilidade e a sustentabilidade da floresta em pé.

Como o “rurbano” nas cidades e florestas amazônicas deverá se constituir? Não há respostas definitivas. A formulação dessa agenda exigirá um planejamento cuidadoso e a participação dos mais diversos atores sociais. Mas algumas pistas podem ser apontadas.

A criação desse continuum entre a cidade e a floresta deve compreender, em termos metafóricos, um vetor de software e de hardware.

O software deve favorecer a formação e treinamento em bioeconomia. Deverá contemplar um ecossistema que estimule a inventividade, o desenho, branding, marketing global e a definição de novas tendências de consumo de produtos florestais. Tal software urbano deve ter como resultado a aceleração de sinergias entre pesquisadores, comunidades locais, povos da floresta, empreendedores, investidores e no desenvolvimento de uma inteligência comercial capaz de entender e induzir demandas e preferências de consumidores internacionais pelas riquezas da floresta.

O vetor de hardware contempla obras físicas com estratégia espacial muito clara de integração campo-cidade. Agrovilas produtivas e florestas nas franjas urbanas, amparadas por zoneamentos e planos diretores ajustados a novas realidades, incentivos fiscais específicos (que torne a bioeconomia competitiva em relação ao predatório fortemente subsidiado). Regimes especiais como o das Reservas Particulares do Patrimônio Natural (RPPN) certamente poderão impulsionar a integração de redes de colaboração, cooperativas, incubadoras e comunidades locais.

Ou seja, o novo urbanismo florestal deverá idealmente integrar territorialmente uma agenda que veja o empreendedorismo como uma forma de cidadania ou, melhor ainda, como uma expressão de “florestania”, no termo cunhado por Antônio Alves, que designa a extensão de oportunidades e direitos das cidades aos povos da floresta.

Há evidentemente um desafio de natureza cognitiva e emocional envolvida nesse esforço que é, necessariamente, um esforço de integração inédita de visões de mundo antagônicas. O desenvolvimento sustentável da floresta não pode ser visto como sinônimo da financeirização da ecologia por “porcos capitalistas”, como costumam reagir setores empedernidos da esquerda convencional. E tampouco se refere a uma luta “identitária woke” como quer designar com ranço de ironia os segmentos conservadores radicais. Trata-se efetivamente de uma luta voltada para o reequilíbrio de um dos biomas mais importantes para a sustentabilidade do planeta e que requer uma inusitada combinação de dinheiro, tecnologias modernas, conhecimento ancestral e um sistema de governança que será necessariamente público-privado. Risco de mercantilização da floresta? Claro que há, mas fazer do mercado uma força transformadora da ecologia talvez seja a única alternativa que nos resta.

Finalmente, a superação da quarta lacuna – a ausência de estratégia de comunicação social – implica uma mudança da semântica na qual usualmente enquadramos a luta pela preservação da floresta. O conservacionismo não pode mais ser descrito como uma luta de defesa; trata-se efetivamente de uma luta de ataque. Dada a urgência do tema, a narrativa usual de que “o desmatamento invade a floresta” precisa ser substituída pela ideia de que “a floresta invadirá o desmatamento”.

A queda recente das taxas de desmatamento permite promover a ideia de avanço, rumo a taxas de desmatamento negativas, tornadas possíveis com exemplos concretos de que o sustentável é mais rentável que o predatório.

No plano comunicacional, a reversão de estratégia negativamente defensiva para positivamente ofensiva poderia envolver a criação de novas expressões. As expressões técnicas como “zonas de amortecimento” e “corredores ecológicos” poderiam, em contextos não acadêmicos, ser refraseadas e designadas como “zonas de inclusão produtiva” e “corredores de desenvolvimento bioeconômico”, respectivamente.

É fundamental passar uma mensagem clara de que, uma vez aportados os investimentos públicos e privados adequados, a conta da preservação será paga pela própria floresta.

A COP30 em Belém certamente será o maior palco para o Brasil, num tema em que o país é ator relevante na arena do poder mundial. Não podemos errar na substância e na forma de nossas mensagens. A bela iniciativa do Fundo Florestas Tropicais para Sempre, novo instrumento voltado para a preservação de florestas, conhecido como TFFF no seu acrônimo em inglês, poderá tornar-se marca e legado central da política ambiental do governo.

Anunciado na COP28 em Dubai e a ser lançado formalmente na COP 30, o TFFF tem inúmeros méritos, mas ainda reflete as quatro lacunas acima apontadas. Tal como a conhecemos em seu estágio de desenvolvimento, há um descompasso enorme com o segmento investidor. Valores, mecanismos de implementação e de controle parecem insuficientes. O governo parece seguir escutando uma parcela pequena de stakeholders. Os resultados limitados alcançados na COP29, realizada em Baku, reforçam a responsabilidade do Brasil como país-sede e líder das negociações globais de mecanismos como esse fundo. Não podemos nos permitir cometer erros. 

Captar a inteligência coletiva que existe na sociedade e nos mercados para aprimorar a iniciativa constitui oportunidade única para a arregimentação de forças necessárias não só do próprio TFFF, mas também para o sucesso da política ambiental como um todo. Embora a concatenação de políticas dependa de uma miríade de atores, somente o governo federal – desvestido de qualquer viés partidário – terá a legitimidade e o poder de convocatória necessário para aplacar a polarização e conferir a universalidade de propósito que a sobrevivência da floresta precisa alcançar.

Além de vertente central das políticas de enfrentamento das mudanças climáticas – dado o papel crucial que as florestas desempenham na regulação do clima em níveis regional, continental e global, no armazenamento e captura de carbono, na preservação da biodiversidade –, o combate ao desmatamento pode constituir-se no maior legado que o Brasil deixará ao mundo. Grandes civilizações nos legaram pirâmides e muralhas, palácios e monumentos, pontes e mausoléus, templos e arranha-céus. Quem sabe, a grande contribuição brasileira, talvez a mais civilizatória de todas, seja a floresta em pé?

Assine nossa newsletter

Toda sexta-feira enviaremos uma seleção de conteúdos em destaque na piauí