Marcelo/Armando, interpretado por Wagner Moura Crédito: Divulgação
Quem é o agente secreto?
Um sucesso de crítica e público recebido com ressalvas
OAgente Secreto, de Kleber Mendonça Filho, chegou coberto de louros ao nosso circuito de cinemas há duas semanas. Em maio, no Festival de Cannes, recebeu os prêmios de Melhor Direção e Melhor Ator, atribuídos, respectivamente, a Mendonça Filho e Wagner Moura, além do Prêmio Fipresci (Federação Internacional de Críticos de Cinema) e o Prêmio “Art et Essai”, concedido pela AFCAE (Associação Francesa de Cinema de Arte e Ensaio). Seguiu-se uma marcha triunfal em festivais mundo afora, com novas premiações. Lançado em 717 cinemas no Brasil, O Agente Secreto ocupou cerca de 20% das salas existentes, foi visto por 285.064 espectadores de 6 a 9 de novembro e alcançou a maior média de público por cinema, acima de Predador: Terras Selvagens, O Telefone Preto 2 e outros dezessete filmes, alguns considerados, em princípio, mais comerciais (dados do portal Filme B).
Assisti a O Agente Secreto pela primeira vez no início de outubro, em sessão matutina para a imprensa. Admirei em especial, na ocasião, os oito minutos da segunda sequência que se passa em um posto de gasolina isolado, na beira de uma estrada, e acima de tudo as atuações de Wagner Moura e Tânia Maria durante todo o filme. Fora isso, além de ter me parecido difícil de entender, achei passada da conta a duração de 158 minutos de O Agente Secreto, contendo algumas sequências que não me parecem imprescindíveis e outras bizarras.
Revi O Agente Secreto um mês depois no meu monitor doméstico. Dessa vez, passei um fim de semana assistindo ao filme e consegui compreender uma parte do que antes não havia entendido, mas não tudo. Conforme Arthur Nestrovski escreveu em seu comentário elogioso publicado no Instagram, há detalhes em O Agente Secreto “que só capta quem viveu no Recife há cinquenta anos”.
Como nunca vivi no Recife, o filme continuou meio enigmático para mim, além de recheado de situações excêntricas. Entre elas a da Perna Cabeluda, da qual nunca ouvira falar. Quem me esclareceu a respeito foi minha amiga e colega Laís Lifschitz. Ela sabia da lenda e da música de Chico Science em que a Perna Cabeluda é mencionada. Na versão de Mendonça Filho, trata-se de uma perna moralista que ataca homens e mulheres que mantêm relações sexuais à noite no Parque 13 de Maio, no Centro do Recife. A notícia a respeito disso, publicada no jornal e lida por uma personagem com “sotaque angolano”, é recebida com risadas.
Para minha surpresa, encontrei aqui mesmo, no site da piauí, uma explicação completa sobre a Perna Cabeluda, em reportagem de Felipe Fernandes publicada em 31 de outubro. Fernandes relata ademais que o protótipo de silicone da Perna Cabeluda foi um dos grandes atrativos da primeira sessão pública de O Agente Secreto, no Recife, em 10 de setembro. O adereço circulava, em tamanho real, no saguão do Cinema São Luiz e esteve também com o elenco do filme no Festival do Rio, após ter “interagido” com o público nas ruas e praias de Cannes – prova de que a Perna Cabeluda pode ser estranha para alguns, mas foi usada com o propósito de cativar recifenses, cariocas e cannois, além de frequentadores, em geral, do festival de cinema da cidade.
Na cena de abertura de O Agente Secreto, sucedem-se fotografias em preto e branco de astros e estrelas da televisão e do cinema, ao som de Uma noite no Arpège, sucesso de Luis Bandeira e Waldir Calmon da década de 1950. A sequência seguinte tem lugar no posto de gasolina São Luiz, na beira da estrada ladeada pelo canavial e começa com a legenda “Nossa história se passa no Brasil de 1977, uma época cheia de pirraça…” – modo inusitado de definir o período em que a ditadura militar persistia, apesar de estar em curso a chamada “abertura lenta, gradual e segura”. A cena na qual Marcelo (Wagner Moura) chega ao posto dirigindo seu fusca amarelo é um primor de laconismo. Nada é explícito, tudo é insinuado. São oito minutos opostos ao restante de quase todo o filme, no qual prevalecem situações explicadas por meio de diálogos informativos.
A diferença entre o estilo da sequência no posto São Luiz e o que predomina em seguida prejudica a compreensão e o impacto do momento inesperado em que o desfecho do protagonista não é encenado, mas mostrado apenas de forma indireta, adiante, através de uma fotografia.
Nestrovski assinala, com generosidade a meu ver, que em O Agente Secreto “a violência e o abuso estão por todos os lados, são o próprio ar que se respira. Em alguns momentos, ganham jeito de Grand Guignol, com maior ou menor sucesso. Mas um traço crucial do filme é que as piores violências, no contexto da narrativa, não são mostradas. Só reportadas, de modo quase neutro”.
O domínio da linguagem implícita, demonstrado em uma sequência por Mendonça Filho, deixa claro que a sua opção por privilegiar uma narrativa com raras ambiguidades é proposital, embora deixe pelo caminho vertentes do enredo menos bem resolvidas.
Estela Neves, amiga da minha irmã Sarah Escorel, escreveu, em 26 de outubro, em um grupo do qual ambas participam: “Meninas, bom dia! Ontem fui ver O Agente Secreto. Descorçoada pela força com que fala do Brasil. Dormi pensando nele, acordei pensando nele, só sosseguei depois de escrever, pros amigos com quem fui, sobre o que estava sentindo. Esperando com enorme interesse os comentários de Eduardo Escorel.”
Fui, primeiro, ao Houaiss conferir o sentido de “descorçoado” e aprendi ser sinônimo de “desacorçoado” e “desacoroçoado: 1 que ou o que perdeu o alento, a determinação; desmotivado; desanimado… 3 que ou aquele que se desapontou, decepcionado; 4 que ou quem se encontra falto de esperança; desiludido…”.
Estela teria, então, perdido o alento, estaria desapontada, decepcionada, sem esperança, desiludida pela força com que O Agente Secreto “fala do Brasil”. Concordando ou não, é difícil imaginar elogio maior do que esse. Diria apenas que, a meu ver, o exotismo predominante na visão do país, dada pelo filme, reduz sua contundência.
Com outra perspectiva, o jornalista e escritor Fernando Molica publicou nas redes, em 11 de novembro, um longo comentário mordaz do qual reproduzo dois trechos:
Alguém, irônico, comentou por aqui na rede que O Agente Secreto seria ótimo, caso tivesse roteiro. Discordo: o filme tem vários roteiros, o problema é que todos correm de forma paralela. Diferentes blocos fazem um carnaval, nem sempre articulam um filme.
A questão não é um suposto excesso de ideias; é a falta de ligação entre elas, são muitas as pontas que, como serpentinas, caem no chão – voos que, solitários, até produzem beleza, mas não ajudam a fazer o baile…
… saí do cinema lembrando dos meus tempos de universitário (e isso faz tempo). Aquele tempo em que a gente ia ao cinema não para ver um filme, mas para tentar entendê-lo. Aquela parada de descobrir o que o diretor tentou dizer. Pelo jeito, não entendi O Agente Secreto – e, enfim, não tenho culpa dessa minha limitação.
Por fim, nesta tentativa de dar um panorama resumido da recepção a O Agente Secreto, resta comentar o artigo de Pablo Ortellado, O Agente Secreto é equívoco político, publicado no jornal O Globo em 14 de novembro, do qual reproduzo trechos dos dois parágrafos finais.
Para Ortellado, “não se trata apenas de erro em relação ao contexto histórico da política econômica”. Henrique Castro Girotti (Luciano Chirolli), membro do Conselho da Eletrobras, ligada ao Ministério de Minas e Energia do governo Geisel, e empresário que encomenda o assassinato do professor Marcelo/Armando (Wagner Moura),
é um vilão esquemático, sem qualquer densidade psicológica. Não é um apoiador do regime com medo da tirania comunista ou um empreendedor orgulhoso daquilo que construiu. É apenas um cafajeste que defende, sem qualquer elaboração, injustiças flagrantes e privilégios. Esse empobrecimento do personagem não compromete apenas a inteligência política do filme, mas também sua capacidade de construir conflito dramático… O filme aponta para questões relevantes, mas as trata de modo esquemático, ora celebrando o que critica, ora simplificando o que deveria tornar complexo.
Na segunda semana em cartaz, exibido em 708 cinemas, O Agente Secreto continuou ocupando cerca de 20% das salas do país e acumulou 643.843 espectadores. De 13 a 16 de novembro, foi visto por 170.568 pessoas, o que representa queda de 39% em relação à semana anterior. Deixou de ter a maior média de público por cinema, passando a ocupar o terceiro lugar, depois de Truque de mestre: 3º ato e a reprise de Harry Potter e o cálice de fogo (dados do portal Filme B).
Tamanho sucesso de público e crítica não deve ser desconsiderado. Por outro lado, embora prêmios, participação em festivais e êxito comercial tenham alto valor mercadológico, nem sempre são parâmetros seguros para identificar a qualidade artística de um filme.
Quanto a saber qual é o personagem a quem o título se refere, todos já devem estar informados de que o único agente secreto no filme de Mendonça Filho é Jean-Paul Belmondo na comédia de ação Le Magnifique (O Magnífico, 1973, de Philippe de Broca), cujo trailer, projetado por um instante na tela do cinema São Luiz em O Agente Secreto, é visto por Marcelo da cabine de projeção.
Leia Mais
Assine nossa newsletter
E-mail inválido!
Toda sexta-feira enviaremos uma seleção de conteúdos em destaque na piauí
