Razões de sobra para chorar
Mortes inaceitáveis permanecem impunes; documentário lembra vítimas de Brumadinho
Todos têm motivo, recente ou antigo, para chorar. Quem não perdeu parentes ou amigos? Óbitos desnecessários causados pela pandemia continuam se acumulando, já tendo passado de 631 mil. Mas há também as mortes cotidianas resultantes da violência do nosso processo civilizatório. Iniciado com o massacre dos povos originários e a brutalidade da escravidão, na formação da sociedade brasileira foram perpetuados o racismo, a discriminação de gênero e a desigualdade social. E resta ainda a perda inaceitável de vidas pela incúria criminosa, que permanece impune, de homens, empresas e governos.
Deslizamentos de terra causaram, no início do ano, 34 óbitos em diversos municípios de São Paulo. No dia 24 de janeiro, Moïse Mugenyi Kabagambe, congolês de 24 anos, foi espancado até morrer no quiosque Tropicália, na orla da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro. Nove dias depois, no município de São Gonçalo, na Região Metropolitana do Rio, Durval Teófilo Filho, negro de 38 anos, empregado em um supermercado, foi morto a tiros por seu vizinho branco, sargento da Marinha.
Há quem vá às lágrimas ao saber dessas mortes. E há o pranto de viúvas e viúvos, filhas e filhos, avós, amigas e amigos. Passados os sumários rituais fúnebres, porém, a dor não encontra, muitas vezes, modo satisfatório de se expressar, fora manifestações de protesto e declarações à imprensa em alguns casos. A ferida causada por tantas perdas súbitas, antecipadas e imprevistas, é indelével, não tem como cicatrizar.
O documentário Ode Ao Choro (2021) é uma tentativa pessoal, idealizada por Cecilia Engels, de criar, nas suas palavras, “um sentido para a dor”. Exibido em janeiro na 4ª edição da Mostra Sesc de Cinema Paulista, após passar por festivais na Argentina, Costa Rica e Bolívia, o filme acompanha a trajetória de Cecilia para conseguir lidar com a morte de Camila (Tatá), sua amiga de infância, vítima do rompimento da barragem de rejeitos da mineradora Vale S.A., na mina Córrego do Feijão, no município de Brumadinho, Minas Gerais, em 25 de janeiro de 2019. Os membros da família de Camila que estavam com ela na região para visitar o museu de Inhotim também perderam a vida. Sobreviveram apenas a mãe e o padrasto que não foram na viagem. No desastre industrial morreram ao todo 272 pessoas, havendo ainda algumas desaparecidas.
Cecilia chora de modo contido ao longo de todo o documentário e se expõe por inteiro com destemor. Algumas das terapias às quais recorre parecerão estranhas a céticos empedernidos, mas a entrega total dela é convincente e sustenta o filme que, no fundo, é muito simples, além de conciso – dura 70 minutos. Começa por uma breve sequência de fotos do lamaçal deixado para trás pela onda de rejeitos, com informações em legendas sobre o rompimento da barragem e suas consequências. Segue-se, ainda no prólogo, um longo plano definido por Cecilia como uma “sobreposição temporal” do seu processo: são quase seis minutos durante os quais duas imagens de Cecilia são superpostas – uma dela lendo a carta póstuma que escreveu para a amiga na cerimônia em homenagem a Camila realizada após sua morte, outra assistindo em close à gravação nove meses depois: “… Você morreu e o meu sentimento é que a gente tinha muitas coisas para viver juntas. É inevitável que ao longo desse um mês eu já tenha me perguntado por quê. Por que agora, por que desse jeito, por que com a sua família. Já pensei em abandonar tudo, ir para o Tibet. Já pensei em parar tudo e ir para Brumadinho. Já pensei inúmeras vezes que iria enlouquecer, que a vida depois dessa tragédia criminosa não faz mais sentido e que a humanidade está doente e parece que ninguém percebeu, que a injustiça e indiferença estão espalhadas pela sociedade, que o mundo se tornou um lugar que dá desgosto de estar …”
Registre-se que isso foi escrito em fevereiro de 2019, antes da pandemia, antes dos deslizamentos de terra, antes dos assassinatos de Moïse Mugenyi Kabagambe e Durval Teófilo Filho, antes de…
O percurso terapêutico de Ode Ao Choro termina ao raiar o dia, diante de um horizonte montanhoso – serão as montanhas de Minas, túmulo de Camila? Com o sol pouco acima do horizonte iluminando seu rosto, Cecilia canta Oceano, de Bárbara Malavoglia, canção que a vimos ensaiar ao longo do filme:
“Vim chorar as lágrimas do mundo/numa concha nas minhas mãos/te oferecer minha oração/Ouço um caracol no mar profundo/ecoar uma vibração/me chamando para a escuridão/Venha, não tenha medo/tu já conheces esse segredo/Venha soltar as rédeas/vem desvendar as tuas trevas/Vem para dentro da morte/Vem decifrar a sua sorte/Me perdi no escuro do oceano/mergulhando sem direção/para tocar seu coração/Som desconhecido soberano/me envolve nessa emoção/no seu oculto rito de perdão…”
Segue-se a dedicatória feita em legendas: “Por respeito à vida, à morte e ao luto; à Camila, sua família e todas as vítimas da mineração.”
Ode ao choro participa da mostra competitiva da 12ª edição do Arraial Cine Fest, iniciada ontem (8/2) e que segue até sábado, 12 de fevereiro, de forma gratuita e online, podendo ser assistido através do link https://arraialcinefest.wixsite.com/online/hime.
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