O Muro Escultórico, de Athos Bulcão, sendo remontado depois dos ataques de 8 de janeiro Foto: Bruno Spada/Câmara dos Deputados
Remontando Athos Bulcão
Um mês depois da invasão golpista, restauradores ainda trabalham para recuperar as obras do artista que marcou a paisagem de Brasília
Marcelo Sá de Sousa, chefe do Museu da Câmara dos Deputados, foi um dos primeiros a pisar no Congresso depois da invasão bolsonarista de 8 de janeiro. Chegou ao Salão Verde às oito da noite, uma hora depois de os vândalos terem sido expulsos. O ambiente estava devastado. Um grupo de peritos vasculhava cada canto do salão e colhia impressões digitais. Sousa, aflito, queria recolher os pedaços de obras de arte destruídas, mas não podia tocar em nada enquanto a perícia não fosse concluída, o que só aconteceu de madrugada. Ele aguardou pacientemente, enquanto circulava pelo salão observando o estrago. Quando os policiais foram embora, Sousa pôs a mão na massa.
“Comecei a juntar os cacos, literalmente. Peguei umas bandejas que a segurança do Congresso usa no raio X, sentei no chão e fui juntando tudo o que conseguia identificar”, ele relembra. O piso estava encharcado – alguns bolsonaristas usaram mangueiras de incêndio na invasão – e tomado por cacos de vidro. Móveis haviam sido revirados, extintores de incêndio foram largados no chão. Das 46 peças que ficavam em exposição no Salão Verde, entre obras de arte e presentes de delegações de outros países, 29 sobreviveram intactas, doze foram depredadas, três foram totalmente destruídas e duas foram roubadas. Com o nascer do Sol, outros servidores chegaram ao Congresso e formaram um mutirão de limpeza. “Isso me deu mais ânimo para continuar, apesar da noite em claro”, diz Sousa.
O estrago foi menor do que ele imaginava. O painel Araguaia, feito em vidro temperado pela artista Marianne Peretti, em 1977, estava intacto, assim como o quadro Candangos, de Di Cavalcanti. Mas outras duas peças icônicas foram depredadas: o painel de azulejos azul e branco que cobre uma das paredes do Salão – apelidado informalmente de Ventania – e um painel de madeira verde-escuro, conhecido como Muro Escultórico, situado ao lado da galeria de fotos dos ex-presidentes da Câmara. Ambos são obra de Athos Bulcão.
No painel de azulejos, várias peças foram riscadas e quebradas porque parte dos invasores desceu pelo teto do jardim de inverno – que se conecta com a cúpula do Congresso – até o Salão Verde. Retiraram a grade de ferro que protegia o jardim e usaram-na como escada, arranhando a cerâmica. Já o Muro Escultórico – um painel comprido que se assemelha a um quebra-cabeças – foi danificado em três dos seus 36 blocos de madeira. Um deles foi atingido por um objeto duro, provavelmente um pontalete de ferro, que o perfurou, abrindo um buraco de cerca de 12 cm.
As duas obras datam dos anos 1970, quando o Palácio do Congresso Nacional foi ampliado para se adequar melhor às atividades parlamentares. Oscar Niemeyer, que idealizou o prédio e ficou responsável também pela ampliação, queria delimitar espaços sem prejudicar a livre circulação no Salão Verde, atenuando a sensação de isolamento daquele ambiente fechado. Para a missão, ele chamou o amigo Athos Bulcão, com quem já trabalhara durante a construção de Brasília. Bulcão ofereceu duas soluções: montou o mosaico do jardim de inverno, que causa sensação de movimento, e o painel de madeira laqueada, que delimita uma área dentro do Salão Verde, mas não a isola completamente dos outros ambientes.
“Quando você olha para o Muro Escultórico, dá para ver que ele existe para separar dois ambientes, mas ele é vazado exatamente para que não seja uma parede. Os vazios permitem enxergar o outro lado. Você vê o painel de azulejos e as pessoas que estão passando lá atrás. Ele não lhe impede, ele só embeleza”, explica Valéria Cabral, secretária executiva da Fundação Athos Bulcão, que administra a obra do artista carioca, morto em 2008. “Essa é uma característica das principais obras de Athos: integrar o ambiente arquitetônico. Ele era, acima de tudo, um embelezador de obras de Oscar Niemeyer.”
Cabral teve uma longa relação de amizade com Bulcão e trabalha há 26 anos na fundação. Durante esse tempo, colheu muitas histórias da parceria dele com Niemeyer. Ela conta que, depois de concluídas as obras do Palácio do Congresso, o arquiteto precisou de Bulcão para resolver um problema: ele achava que o pé-direito do Salão Negro do Congresso havia ficado muito baixo. “Ele foi pedir socorro, então o Athos criou um painel de mármore branco e granito preto com peças desencontradas. Isso deu ao espaço uma sensação de movimento e profundidade que não existe”, diz Cabral, sem esconder a admiração.
Athos Bulcão nasceu em julho de 1918 no bairro do Catete, no Rio de Janeiro. Perdeu a mãe ainda quando criança e foi criado pelo pai, Furtunato Bulcão, junto com os irmãos Jaime, Mariazinha e Dalila. Quando jovem, amava música e frequentava salões de arte, teatros e espetáculos de ópera, mas, para agradar o pai, acabou se matriculando num curso de medicina, em 1936. A única aula de que gostava era a de anatomia, em que podia desenhar e colorir. Ao perceber que não tinha futuro como médico, abandonou a faculdade no terceiro ano e passou a se dedicar integralmente às artes. Emplacou sua primeira exposição no ano seguinte, em 1941, no Salão Nacional de Belas Artes.
Bulcão sempre viveu rodeado de artistas. Era amigo de importantes nomes do modernismo brasileiro, como Carlos Scliar, Burle Marx, Vinicius de Moraes, Fernando Sabino e Paulo Mendes Campos. Por intermédio deles, conheceu, aos 21 anos, aquele que seria seu maior professor no uso de cores e desenhos: Candido Portinari. Os dois se tornaram próximos a ponto de Bulcão morar por alguns meses na casa do amigo, no Rio de Janeiro. Portinari o convidou a ajudá-lo na criação do mural de São Francisco de Assis da Igreja da Pampulha, em Belo Horizonte. Por volta dessa época, Bulcão conheceu o arquiteto Oscar Niemeyer, que projetou a igreja. Os dois se deram bem.
Em 1958, Niemeyer o convidou para ajudá-lo nos retoques finais da construção de Brasília, que seria inaugurada dali a dois anos. Bulcão topou o convite e se mudou para a nova capital. Passou a trabalhar diretamente com o arquiteto, integrando arte aos prédios públicos da cidade. Nas palavras de Vera Pugliese, professora da Universidade de Brasília e presidente do Comitê Brasileiro de História da Arte, o trabalho de Bulcão trouxe para Brasília “a ideia da arte sem molduras, integrada à vida cotidiana. São obras interligadas com a cidade. Elas desencastelam a arte e a colocam no dia a dia das pessoas”.
Entre as peças mais famosas que ele espalhou pela capital estão os azulejos da Igrejinha Nossa Senhora de Fátima, na Asa Sul, e os blocos de concreto do Teatro Nacional. Mas as obras de Bulcão são tão disseminadas que quem mora ou visita Brasília acaba se deparando com seu trabalho a todo momento. São mais de 260 painéis e quadros espalhados em repartições, creches, escolas, aeroportos, universidades e hospitais.
No Congresso, há quinze obras do artista. Três foram depredadas no dia da invasão golpista, em 8 de janeiro – além do mosaico de azulejos e do Muro Escultórico, um painel vermelho que vai do chão ao teto do Museu do Senado foi atingido por estilhaços de vidro e bolas de gude. A restauração desse painel ainda não tem data para acontecer. Isso porque é uma operação complexa: devido ao tamanho da obra, os restauradores primeiro terão de ser treinados dentro de uma norma técnica (a N35) que estabelece cuidados para trabalhos em altura, que requerem o uso de algum tipo de plataforma apoiada sobre o chão.
Athos Bulcão também aparece no plenário do Supremo Tribunal Federal. Atrás da cadeira de presidente do STF, há um painel do artista, feito em relevo numa peça de mármore bege. A obra sofreu pequenos arranhões no dia da invasão, mas já foi recuperada.
Depois da limpeza do Salão Verde, teve início a restauração das obras. O Muro Escultórico foi logo desmontado e retirado dali, já que o carpete encharcado poderia estufar a madeira. Os três blocos atingidos pelos bolsonaristas foram levados para o Departamento de Restauração e Conservação da Câmara, onde uma equipe de profissionais estudou as peças e desenhou um plano de restauro. Foi realizada uma reunião com representantes da Fundação Athos Bulcão, que ajudaram os restauradores a identificar o tipo de material usado nas obras e o contexto histórico por trás delas. O planejamento é minucioso. Deve-se levar em conta que técnica de restauro é mais adequada para cada peça. As escolhas visam garantir que haja o mínimo de intervenção possível nas obras.
“A gente precisou consultar o projeto original de Athos Bulcão para desmontar as peças, mas lá não tinha a descrição dos materiais usados. Fomos atrás de descobrir qual era o tipo de madeira, o acabamento e a tinta usada”, explica Gilcy Rodrigues Azevedo, chefe do serviço de preservação da Câmara. “Muitos dos materiais originais não são mais fabricados, e as pessoas envolvidas na elaboração da obra não estão vivas. Então foi preciso fazer testes de cor e de textura para adaptar os materiais de reparos às peças danificadas.”
No Muro Escultórico, a peça que deu mais trabalho para os restauradores foi a que sofreu uma perfuração de 12 cm. Para cobrir o buraco, a equipe precisou retirar os pedaços de madeira afundados e lixar as partes ásperas. Depois foi colocada uma placa com cola e pó de madeira que serviu como base para o enxerto. Antes de ser pintado, o buraco recebeu mais uma camada de preenchimento e uma base preparatória para a tinta. Apesar de toda a complexidade, a operação foi ágil. Entre o momento em que a obra foi retirada do Salão Verde e a conclusão do restauro, passaram-se apenas duas semanas.
Tamanha rapidez se deve à especialização da equipe da Câmara, acostumada a restaurar itens do seu acervo – ainda que nunca em circunstâncias como essa. Até agora, mais de 70% dos itens depredados pelos bolsonaristas já foram higienizados e recuperados. O custo total só será divulgado ao final dos trabalhos, mas Azevedo acredita que a cifra não será assustadora. “A gente tinha a equipe e a expertise necessárias para a recuperação desses itens, o que facilitou muito o trabalho. Se a Câmara tivesse que fazer contratos especiais para lidar com essa situação, com certeza o custo ficaria na casa dos milhões.”
Na última quarta-feira (1º), quando os deputados e senadores eleitos em 2022 foram empossados no Congresso, o Muro Escultórico de Athos Bulcão já estava de volta ao Salão Verde, sem sinal de danos. Ele foi remontado no dia 30 de janeiro. O mosaico azul e branco ainda aguarda restauração. O reparo, nesse caso, precisa de uma autorização do Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), que ainda não foi concedida. Além disso, como será preciso isolar a área, há uma preocupação de que o restauro prejudique os trabalhos da Câmara. Até o momento, não foi tomada uma decisão a esse respeito.
A maioria das obras depredadas no Congresso já foram recolocadas em seus devidos lugares. Até mesmo uma bola de futebol autografada por Neymar, que estava em exibição no Salão Verde e foi roubada durante a invasão, está de volta. O homem que a furtou decidiu devolvê-la no final de janeiro, depois de ter confessado o crime à polícia.
“Estamos muito felizes. Não queríamos que o Salão Verde fosse reaberto com uma lacuna”, diz Azevedo, da equipe de preservação da Câmara. “Athos Bulcão faz parte da minha memória, assim como de todo brasiliense como eu. Foi uma honra muito grande colocar o Muro de volta no lugar dele. Fazer isso é trabalhar pela memória do artista.”
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