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    Técnico trabalha na retirada de peças dos escombros do Museu - Foto: Diogo Vasconcellos/Museu Nacional

questões científicas

Resgate entre as cinzas

Exposição vai reunir neste ano o que restou do Museu Nacional; diretor critica partidarização do tema e diz que anulou voto no segundo turno de 2018

Filipe Vilicic | 29 jan 2021_14h36
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O incêndio do Museu Nacional, em 2 de setembro de 2018, foi uma tragédia para a ciência brasileira – e a reconstrução do prédio pode se transformar em um novelão. O resgate dos poucos itens do acervo que sobreviveram deveria ter terminado em meados de 2020, mas a falta de mão de obra e as medidas de segurança adotadas durante a pandemia levaram à diminuição do ritmo de trabalho. O prazo final para recuperação dos objetos foi esticado até dezembro do ano passado – e, depois, até março deste ano. Estima-se que, entre setembro de 2018 e junho de 2019, período que é considerado o pico do esforço de resgate das peças, 56 profissionais dedicaram 1.200 dias nessa atividade, somado o tempo de trabalho de todos eles. Parece pouco, mas os acadêmicos dizem que é muito, em vista da disponibilidade deles, pois também precisam dar aulas e fazer pesquisa, entre outras tarefas. 

“O medo do vírus tem prejudicado o andamento. Tivemos de parar o resgate por um tempo e nos adaptar às medidas sanitárias”, justificou o diretor do Museu Nacional, o paleontólogo Alexander Kellner, enquanto caminhava pelos destroços do Palácio de São Cristóvão, na Quinta da Boa Vista, no Rio de Janeiro. “Atrasamos, mas agora não podemos passar de março para iniciarmos a reforma do palácio. Ou não cumpriremos a meta de reabrir em 2022.”

O tamanho da destruição provocada pelo incêndio ainda está sendo quantificado, mas calcula-se que, do acervo de 20 milhões de peças, 80% foram perdidas ou severamente danificadas. Os ossos do primeiro dinossauro de grande porte montado no Brasil, o Maxakalisaurus topai, de 13 metros de comprimento, viraram cinza. As raríssimas múmias de nativos da Amazônia também. Assim como coleções botânicas de dom Pedro II e 98% do acervo de insetos do Departamento de Entomologia, o mais afetado.

Algumas poucas preciosidades resistiram, como o crânio de Luzia, o esqueleto mais antigo já descoberto nas Américas, de cerca de 13 mil anos. E a múmia da sacerdotisa-cantora egípcia Sha-Amun-em-Su, de 750 a.C., cujo sarcófago jamais havia sido aberto, nem mesmo por dom Pedro II, que o ganhou de presente durante uma viagem ao Egito na década de 1870. O fogo rompeu o sarcófago, revelando o conteúdo nunca antes visto, com vários objetos, entre eles um amuleto em formato de besouro.

“O incêndio atingiu uma quantidade ainda incalculável de materiais que estavam em estudo. Muitos fósseis não tinham sido catalogados e foram perdidos. São relíquias de um tempo sobre o qual nunca mais saberemos detalhes”, disse o paleontólogo Helder de Paula Silva. Enquanto falava, ele exibia enormes ossos, visivelmente fragilizados pelo incêndio. O cientista explicou que se tratava de fósseis de um dinossauro achado em Mato Grosso e ainda pouco estudado. Os ossos estavam no chão de uma das salas destruídas, todas elas agora abertas ao relento, já que os pavimentos e as paredes cederam por completo. Restos carbonizados de invertebrados jaziam espremidos entre gavetas de armários deformados pelo fogo. Rochas de vigas e pisos do palácio se mesclavam a fósseis de milhões de anos.

Segundo cálculos dos técnicos, já foram encontrados 85% dos itens que resistiram às chamas – ou seja, em torno de 4.500 “lotes” (como são chamados os objetos), que estão armazenados em 36 contêineres dispostos nos arredores do museu. A expectativa é que o primeiro contato do público com as relíquias sobreviventes ocorra até o fim deste ano, em uma exposição à qual apenas estudantes terão acesso.

Armário destruído pelo fogo (acima) e peças de cerâmica resgatadas das cinzas (abaixo); técnicos do Museu calculam que, dos 20 milhões de itens do acervo, 80% foram perdidos ou severamente danificados – Fotos: Núcleo de Resgate Museu Nacional

Kellner diz que faltam 700 mil reais para realizar a mostra – e que não pode alocar, para este fim, os recursos destinados à restauração do museu. Mas o local onde ocorrerá a exibição já está definido: será numa das sete construções térreas erguidas num terreno próximo da Quinta da Boa Vista, na Avenida Bartolomeu de Gusmão, entre os números 873 e 1035.

Essas construções provisórias, feitas de materiais parecidos ao usado em casas pré-construídas, formam o improvisado Campus de Pesquisa e Ensino do Museu Nacional. Ali se alojaram os pesquisadores da instituição cujos postos de trabalho foram destruídos. Após o incêndio, ressuscitou-se um plano concebido em 1995 de transferir os departamentos de estudos, os laboratórios e muitas coleções para outros edifícios, reservando o Palácio de São Cristóvão apenas para exposições.  No lugar das atuais construções provisórias prevê-se a construção de prédios definitivos, de três pavimentos cada, que terão como objetivo abrigar grande parte do acervo e os laboratórios de pesquisa. Mas isso não deverá ocorrer antes de 2030.

O museu consumido pelo fogo (Foto: Fernando Souza/Adufrj) e os escombros (Foto: Núcleo de Resgate Museu Nacional)

 

Para a reconstrução do Museu Nacional foram captados 244,9 milhões de reais – sendo 56,3 milhões provenientes de emendas aprovadas pelo Congresso, 50 milhões da Vale, 50 milhões do Bradesco, 50 milhões do BNDES, 20 milhões da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, 16 milhões do Ministério da Educação. Houve, ainda, mais 2,6 milhões do mesmo ministério, mas repassados por intermédio da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), à qual o Museu Nacional está vinculado. Também chegaram contribuições do exterior: cerca de 4 milhões de reais do governo da Alemanha, 268 mil reais da Inglaterra, 127 mil reais da França e 97 mil reais de Portugal.

A Associação Amigos do Museu Nacional também coleta doações e há planos de realizar campanhas de captação estreladas por artistas (dentre os confirmados, o cantor baiano Tom Zé). Em dezembro de 2019, virou notícia os 53 mil reais doados por Caetano Veloso e a empresária Paula Lavigne, companheira do compositor. 

Segundo Kellner, a verba disponível até agora é suficiente apenas para completar 65% da restauração do Palácio de São Cristóvão, que no século XIX foi residência da família imperial. “Isso para reiniciar de maneira honrosa em 2022, ano do bicentenário da Independência do Brasil e de eleições presidenciais. Senão, passaremos um vexame internacional ainda maior.” A previsão é que o prédio esteja em grande parte restaurado até o ano que vem e o museu abra as portas, mas apenas com uma ala de exposição. Um dos planos é preservar os escombros do auditório Roquette Pinto, onde o fogo começou, possivelmente devido a uma falha no ar-condicionado. O local deverá ser um memorial.

A recuperação total do prédio e a abertura integral do museu estão previstas para 2025. Kellner calcula que, para tanto, serão precisos mais 170 milhões de reais, sem falar na verba necessária para completar o Campus de Pesquisa e Ensino.

A instituição também está contando com doações de peças, pois o que sobrou do acervo não será suficiente para preencher o museu. O Universalmuseum Joanneum, de Graz, na Áustria, cedeu 197 itens, incluindo ferramentas de indígenas do Alto Xingu, na Amazônia. Entidades europeias, principalmente da Alemanha, prometeram doações, que também têm sido feitas por brasileiros.

O compositor paulistano Nando Reis doou uma coleção de quinhentas conchas reunidas por seu pai, o engenheiro José Carlos Gomes de Reis, que morreu no ano passado, aos 89 anos. Gomes de Reis colecionou as conchas durante cinquenta anos e era membro amador da Sociedade Brasileira de Malacologia (dedicada ao estudo dos moluscos), à qual também Nando Reis esteve ligado, pois cultivou a mesma atividade do pai, em paralelo à carreira musical. “Falta também entender que essa instituição é do povo, promove ciência em prol dos brasileiros”, disse o cantor, que contou nunca ter visitado o museu no Rio. Outra doação digna de nota veio do médico brasiliense Luiz Cláudio Stawiarski, filho do biólogo Victor Stawiarski, que deu aulas no Museu Nacional entre as décadas de 1940 e 1970: 2 mil carcaças de insetos, como aranhas, borboletas e besouros. É uma adição valiosa ao acervo de entomologia, que contava antes do fogo com 5 milhões de exemplares e hoje tem apenas cerca de 42 mil.

Técnico trabalha na limpeza de itens recolhidos das cinzas – Foto: Diogo Vasconcellos/Museu Nacional

 

A pedra do Bendegó é a única peça do museu a perdurar totalmente intacta em meio às ruínas. O meteorito, descoberto em 1784 na Bahia e transportado de charrete para o Rio em 1888, tem 4,5 bilhões de anos, nas estimativas dos cientistas, e colidiu com a Terra em data desconhecida. Composto por ferro e níquel, saiu ileso das chamas. “Para ele, foi só um calorzinho”, brincou Kellner, que é austríaco de nascimento e naturalizado brasileiro.

Ele assumiu a direção do museu em fevereiro de 2018, mas está ligado desde 1997 à instituição, onde ocupou, entre outros, os cargos de chefe do Departamento de Geologia e Paleontologia e de coordenador da pós-graduação em zoologia. Ele soube do incêndio ao desembarcar, por volta das 21 horas, no aeroporto Santos Dumont, vindo de Porto Alegre. O filho mais velho, Alexander Leonard, foi quem deu a notícia. “Corremos para lá, e meu filho, que é advogado, me ajudou a explicar aos bombeiros que eu tinha o direito de entrar para verificar se algo valioso poderia ser resgatado imediatamente.” Acompanhados de um bombeiro, pai e filho usaram a entrada de serviço para alcançar o pátio interno, mas ao chegarem lá não puderam continuar, porque as chamas haviam se alastrado por toda parte. “Vi minha sala pegando fogo”, contou o diretor. O incêndio, que começara às 19h30, só foi controlado na madrugada de segunda-feira.

Quando os bombeiros permitiram o regresso de Kellner à sua sala, dias depois, ele achou ali uma preciosidade. Estava intocada uma lâmina com tecido mole de Pterossauro, a espécie alada que conviveu com dinossauros há 65 milhões de anos. O item sobrevivente mais estimado pelo diretor do museu, porém, é outro. “Quando me mandaram a foto do fóssil do Santanaraptor placidus, único exemplar conhecido dessa espécie, eu estava em Brasília, poucos meses após o desastre, conversando com parlamentares sobre a possibilidade de conseguir mais investimentos. Chorei de alegria”. O Santanaraptor placidus, um dinossauro de cerca de 1,6 metro, quase uma miniatura do famoso Tyrannossaurus rex, viveu há 110 milhões de anos e seus restos que estão no museu foram escavados em 1996, no Ceará, por uma equipe liderada por Kellner.

“O incêndio acabou com a minha carreira”, afirmou ele. “Deixei de ser conhecido como o renomado paleontólogo que já descreveu mais de quarenta espécies de répteis, entrou na Academia Brasileira de Ciências aos 34 anos, escavou na Antártica e no Irã. Agora sou o diretor do museu que pegou fogo.” Ele sonha em inverter o jogo e ser visto como o responsável pelo renascimento do Museu Nacional.

Até o final deste ano, pretende publicar um livro sobre os bastidores da crise na instituição, contando “fatos escandalosos”, disse ele. “A tragédia foi utilizada para uso político. Por todos os lados.” Na internet, espalhou-se a fake news de que Kellner seria filiado ao Psol. “Queriam associar o desastre à esquerda, mas não sou partidário, anulei meu voto no segundo turno das eleições presidenciais de 2018. Meu único partido é o do Museu Nacional.” O incêndio do Museu marcou a campanha de 2018, quando o então candidato Jair Bolsonaro desdenhou da tragédia: “Já está feito, já pegou fogo, quer que faça o quê? O meu nome é Messias, mas eu não tenho como fazer milagre”.

Também tentaram relacionar Kellner a esquemas de corrupção. “É típico do Brasil, mas só prejudica o museu.” Por ter medo de represálias que poderiam afetar os projetos do museu, ele pretende dar nomes fictícios aos políticos e autoridades reais que vai citar no livro. O diretor diz que expressa os sentimentos dos funcionários do museu ao manifestar sua decepção com a forma como os governos federais, “sem exceção”, teriam tratado a instituição. “Minha maior frustração foi com o Fernando Henrique Cardoso, porque sua esposa, a Ruth Cardoso, antropóloga, teve trabalhos ligados ao museu, sabia de nossa fragilidade, e ambos nada fizeram quando tinham o poder nas mãos”, afirmou o paleontólogo. 

 

Na caminhada entre os destroços, na última semana de outubro, Kellner entrou no que restava de sua antiga sala de pesquisas, uma área de 19 m2. “Em cima da porta de entrada, tinha um desenho do dinossauro Santanaraptor placidus feito pelo paleoartista Maurilio Oliveira”, descreveu. “Uma estante ia do início ao fim da sala, cheia de livros, incluindo raridades de mais de cem anos, como textos de pesquisadores que, como eu, estudaram os pterossauros. Tinha ainda um armário repleto de fósseis.” Seus olhos estavam cheios de lágrimas.

O aspecto atual do seu antigo local de trabalho mostra o desafio que representa a reconstrução do museu. Os dois andares superiores desabaram sobre a sala. Os setecentos itens da coleção egípcia em exposição no segundo pavimento vieram abaixo, misturando-se aos fósseis que ele guardava no escritório.

“Encontramos restos de tecidos de múmia misturados com ossos de dinossauros”, afirmou Helder de Paula Silva, que atua no museu desde 1997 e, antes do incêndio, trabalhava ao lado de Kellner. “Todo meu material de pesquisa foi resumido a uma pilha de 10 cm de altura de pó”, disse ele, apontando para um monte de cinzas no chão.

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