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questões cinematográficas

Rinocerontes e comédias

Há dias queria escrever algo sobre o filme O amor chega tarde, de Jan Schütte, que estreou em São Paulo, em agosto. Mas, confesso que tive preguiça, as ideias não me pareciam suficientemente claras ou maduras, se é que em algum momento chegam a sê-lo.

| 02 set 2011_18h45
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Colaboradora periódica deste blog, Paola Prestes chega a perguntar no texto abaixo por que não é um rinoceronte, revelando sofrer, como eu, de sintonite – doença descrita no post anterior a este.

Há dias queria escrever algo sobre o filme , de Jan Schütte, que estreou em São Paulo, em agosto. Mas, confesso que tive preguiça, as ideias não me pareciam suficientemente claras ou maduras, se é que em algum momento chegam a sê-lo.

Durante essa minha abulia, lembrei-me do MIS (Museu da Imagem e do Som de São Paulo) que frequentei na adolescência, e onde vi, numa sala lotada – e por isso estirada aos pés da tela – Morte em Veneza, de Luchino Visconti, pela primeira vez. Naquela época, os ventos da abertura política começavam a soprar e, como se para compensar o tempo perdido com a estupidez da censura, donos de salas de cinema projetavam filmes incríveis. Assim, assisti ao desfile eclesiástico de Fellini em Roma; sucumbi ao encanto meridional do metalúrgico Mimi, de Lina Wertmüller, com Giancarlo Giannini; sem saber que havia um velho cinema alemão, fui apresentada ao novo cinema alemão pela atormentada Maria Braun de Rainer Werner Fassbinder, e penetrei com Aguirre na selva gótica e sem volta de Werner Herzog.

Também nessa época descobri e me apaixonei pelo cinema brasileiro por meio da figura luminosa de Chica da Silva, vivida por Zezé Motta no filme de Cacá Diegues. Macunaíma, de Joaquim Pedro de Andrade, me virou do avesso. Deve ter virado Werner Herzog do avesso também, pois foi depois de assistir ao filme de Andrade que resolveu dar o subtítulo Cada um por si e Deus contra todos ao filme O enigma de Kaspar Hauser. Era também o início da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, de Leon Cakoff, a quem todos cinéfilos paulistanos tanto devem. E quantas tardes passadas no escuro do Cine Palmela, onde passava Zabriskie Point, de Antonioni e Apocalypse Now, de Coppola. Hoje, o Cine Palmela virou uma igreja evangélica onde devem tentar diuturnamente fazer o “descarrego” do espírito do Coronel Walter E. Kurz. Em vão, espero.

Não sei onde foram parar os donos de cinema de antanho. Só sei que, hoje, a grande maioria das estreias parecem direcionadas à criaturas que não habitam o mesmo eco-sistema a que pertenço. Como o Bérenger de Ionesco, em momentos de perplexidade, chego a me perguntar porque não sou rinoceronte nesse alegre e colorido safári de estreias cinematográficas. Assim, quando estreou , filme baseado na obra de Isaac Bashevis Singer, levei a coisa para o lado pessoal e, com um sentimento de gratidão, fui correndo ver na sala filha única de mãe solteira onde estreou, no Reserva Cultural.

Gosto de I. B. Singer desde antes de fazerem filmes baseados em seus escritos. Dediquei alguns anos à leitura quase que exclusiva de sua obra, a qual ia lendo cada vez mais devagar à medida que os livros que sobravam iam escasseando. Mas, voltando ao meu ímpeto grafomaníaco (para usar uma expressão singeriana) desta manhã: se resolvi me manifestar a respeito o filme , não foi tanto pelo filme em si, mas pela discussão que tinge colunas de jornal voltadas à crítica de cinema. Trata-se das várias estreias nacionais, todas elas de comédias como Cilada.com, de José Alvarenga Jr., Onde está a Felicidade, de Carlos Alberto Riccelli e O Homem do Futuro, de Cláudio Torres. E parece que há outra leva de filmes desta mesma linhagem prestes a estrear. Eis alguns títulos, para fruição: Cócegas, Casais inteligentes enriquecem juntos, e E aí, comeu?

A discussão é sobre esse novo cinema de comédia que tem alcançado cifras superiores a dois milhões de ingressos vendidos, em princípio, algo bom para o cinema brasileiro. Em princípio, pois aparentemente, essas cifras assumiram a tóxica função de dispensar toda e qualquer responsabilidade com relação à qualidade da produção cinematográfica nacional. Há matérias escritas por mais de um crítico, com citações de vários realizadores, mas não vou me ater a nenhuma delas em particular. Não é minha intenção duelar a respeito de filmes que não pretendo ver. Um debate que inclui o termo “neopornochanchada”, rebatido por “bundas-moles”, e discute a substituição no roteiro da expressão “filho da puta” por “canalha”, já assinala com um estandarte escarlate que não teria muito o que fazer, nem no debate, nem na plateia de nenhum desses filmes. Não porque não fale palavrão ou não goste de comédias, mas porque a qualidade geral dos discursos é um péssimo prenúncio do filme e mais, denuncia a atual falta de proposta do cinema brasileiro.

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Também denota insipidez e falta de maturidade no e do meio a respeito daquilo que deveria realmente estar em questão, sempre, sobretudo no caso de um cinema que se faz com dinheiro público: a qualidade do conteúdo dos filmes produzidos no Brasil, sejam eles comédia, tragédia, comercial, experimental ou o que for. Ou seja, é uma discussão sobre a falta de assunto de gente que se acha mais interessante do que de fato é. Prefiro ruminar ideias (aquelas mesmas supracitadas), modestamente. Ou talvez não passe tudo de uma grande desculpa para falar sobre I. B. Singer. Portanto, por falar em humor, digamos que as estreias nacionais me deram vontade de me debruçar um pouco sobre a obra desse autor no cinema.

A primeira a levar Singer para o cinema, em 1983, foi a funny girl Barbra Streisand, cujo teor de comicidade é um tanto questionável, Omar Sharif que o diga. A história escolhida foi Yentl, sobre uma moça que se faz passar por um rapaz para poder estudar numa yeshiva, local de estudos da Torah e do Talmud até recentemente vetado a membros do sexo feminino. Não contente em escrever o roteiro adaptado, produzir, dirigir e atuar, Streisand ainda encontrou forças para cantar a plenos pulmões entre um kaddish e uma ablução. Mas, talvez, uma vez o personagem de Singer tendo sido pasteurizado a ponto de perder o fundo de humor e ironia subjacente em sua obra, reste mesmo do filme a trilha musical de Michel Legrand, premiado com três Oscars, juntamente com os letristas Alan e Marilyn Bergman.

O filme é tecnicamente bom e o roteiro bem estruturado. A presença no elenco da monoexpressiva Amy Irving é compensada por Mandy Patinkin, um animal de palco que já deu à Broadway performances antológicas. O problema do filme está em outro lugar, no assassinato sumário do humor muito particular (evitemos o reducionista “humor judaico”) de Singer pelo viés maniqueísta da diretora. E isto não é pouca coisa, na medida em que o humor é a alma da escrita de Singer.

É sabido o desafio que representa adaptar um romance para o cinema. Diante da impossibilidade de se transpor a totalidade do conteúdo de um bom livro para um roteiro cinematográfico, para depois filmá-lo, é preciso compreender onde se aloja a essência da história e, tarefa complicadíssima, capturá-la para reconstruí-la de maneira sintética – porém sensível –, por meio de imagens e de sons. Apesar dos vínculos importantes entre as duas obras (livro-filme), o processo de adaptação implica em criar uma obra totalmente nova a partir de outra, já existente. O processo parece conter um paradoxo, e contém. E aí reside a beleza da transcriação. E afinal, não é toda obra de arte um forma de transcriação?

Singer escreveu histórias polonesas e americanas, todas com grande potencial audiovisual. As polonesas se passam frequentemente no perímetro da rua de sua infância, a rua Krochmalna, em Varsóvia, e são um retrato poderoso do mundo e da natureza humana. As histórias americanas tem um sabor mais contemporâneo. No entanto, se os personagens de Singer, já na velha Polônia natal eram sujeitos às mais diversas idiossincrasias e atravessavam as vicissitudes da vida como folhas secas numa tempestade, na América – e tendo passado pela experiência do holocausto –, perderam definitivamente toda e qualquer chance de fit in, ou de se encaixarem num contexto, por mais acolhedor e seguro que ele seja. O conforto da vida americana só faz ressaltar o desconforto pessoal, ou a inadequação do personagem nesse cenário do Novo Mundo.

Em 1989, Paul Mazursky adaptou para o cinema Inimigos, uma história de amor, um dos romances “americanos” de Singer. Herman Broder – vegetariano pois relaciona matadouros a campos de concentração –, é um de meus personagens favoritos na obra de Singer. Mesmo já tendo construído uma imagem mental da narrativa, pude enxergar no filme de Mazursky a história que tinha lido. No ótimo elenco, Ron Silver é Herman Broder e toreia três belas e poderosas mulheres: Margaret Sophie Stein, vive a esposa polonesa, Wadjiga; Lena Olin, ex-Miss Escandinávia 1975, prova que sua vocação era mesmo atuar e não desfilar de maiô ao fazer a incandescente Masha. Mas, o melhor da festa é Anjelica Huston, como Tamara, a esposa dada como morta e que reaparece um dia.

A direção respeita a imanência cômica – mas não necessariamente alegre – de Singer, que sabe tecer elementos trágicos e cômicos com fineza, revelando os meandros da natureza humana, não sem tolerância, por piores ou mais incoerentes que sejam. E o elenco não perde o passo. Nada mais engraçado que Anjelica Huston dizendo “Não estou morta, e não estou viva”, com uma expressão que mistura uma conveniente impotência e um certo sadismo vingativo diante da estupefação do marido e sua nova mulher. Herman Broder é trígamo, mas como bom personagem singeriano, é trígamo sem querer. Não sabe direito como isso foi acontecer, e muito menos como resolver a situação. Aliás, nem passa ao leitor/espectador a certeza de que realmente esteja interessado em resolvê-la.

Singer, que apesar do físico franzino e branquelo foi um grande sedutor, aludiu mais de uma vez ao número três em sua obra ao referir-se a imbróglios amorosos. Não saberia dizer se tem alguma coisa a ver com a Cabala ou com simples gulodice sexual, mas o filme também traz esse número na sua estrutura narrativa e na quantidade de mulheres na vida de um homem. O título do filme enganou o jovem casal que sentou ao meu lado, que deve ter pensado que ia ver um filme sobre os vampiros adolescentes de Crepúsculo chegando para um encontro ao luar da meia-noite. Meio surpresos, meio enojados com possibilidade de pessoas de mais de vinte e oito anos terem interesses românticos e carnais, a bela atuação do octagenário Otto Tausig conseguiu arrancar alguns “Que bonitinho”, e “Tadinho”, da moça, mas isto só até seu personagem, Max Kohn, abrir a braguilha e pular na cama com a botocada Barbara Hershey.

Schütte construiu o filme a partir de três contos de Singer, A maleta, Sozinho e Amor antigo. E se permitiu fazer algumas graças por conta própria: Sozinho e Amor antigo são contos dentro de outro conto, A maleta, que no filme assume a dimensão “real” da história. Portanto, é Max Kohn quem narra os dois outros contos. Talvez Schütte não tivesse precisado achatar os personagens como fez, tornando-os por demais esquemáticos, se tivesse escolhido apenas um conto ou, no máximo dois. Tive a sensação que o diretor – que também assina o roteiro – optou por uma estrutura narrativa que se quer dinâmica às custas da estrutura interna dos personagens, sempre o grande trunfo de Singer. Por exemplo, a personagem Reizl vivida por Rhea Perlman em A Maleta, não passa de uma mulher ciumenta enquanto no conto, seu ciúme releva de algo maior, uma angústia cozida em fogo brando ao longo de uma vida de sofrimento. E isto é essencial em Singer: os vínculos dos quais os personagens não conseguem se livrar, as marcas, as correntes subterrâneas.

Schütte também se permite transformar a corcunda da Cubana Esperanza de Sozinho em cicatriz. Jamais entenderei a razão: cicatriz, muita gente tem. Corcunda, não. Se Singer optou pela corcunda, é porque procurava uma qualidade insólita e fantasmagórica que é muito clara no conto e se perde no filme. A Esperanza de Schütte é uma mulher meio louca, meio tarada. A Esperanza de Singer é um ser aterrorizado e aterrorizante, deformado no corpo e na alma, que se transforma em monstro na imaginação alucinada de Max Kohn. Mais uma vez, a carga histórica que os personagens carregam é mais pesada que o momento em si. Tovah Feldshuh faz a comovente Ethel em sua derradeira tentativa de recuperar o irrecuperável, a vida com o adorado e falecido marido. Estão presentes nela todas as camadas de conflito singeriano, a angústia, a dor, a ternura e uma fugidia, sempre inútil esperança.

O amor chega tarde já saiu de cartaz. Terá ficado uma semana, talvez dez dias. Não fez dois milhões de espectadores. É mais provável que tenha feito dois mil*. Por causa da minha parcialidade em relação à obra de Singer, eu talvez tenha sido um pouco dura com o filme, mas verdade seja dita, é um bom filme que merece ser visto. No entanto, nenhum filme substitui a leitura de I. B. Singer, nem mesmo os filmes baseados em sua obra. Não conhecia o conto Amor Antigo antes de ver o filme de Schütte. Descobri por esse viés que havia mais um livro de Singer para ler. Portanto, não terei mesmo tempo de ver as novas comédias brasileiras que estão estreando, e cá entre nós, acho que sobreviverei, amparada pela eterna, cálida e genuína graça de Isaac Bashevis Singer. [Paola Prestes]

*Na verdade, o filme chegou a ser exibido durante dez semanas, não apenas em São Paulo, e vendeu 11.763 ingressos. EE]