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    CRÉDITO: Andrés Sandoval

vultos do trânsito

Rosa-chiclete no asfalto

Uma cooperativa de táxi feminina faz sucesso nas ruas do Rio de Janeiro

Manuela Menezes | 05 jan 2025_10h39
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Um grupo de 23 mulheres vestindo camisetas da cor rosa-chiclete domina um ponto de táxi na Rua das Laranjeiras, principal via do bairro homônimo na Zona Sul do Rio de Janeiro. Para quem é das redondezas, o tom vívido do uniforme com o Cristo Redentor e os morros do Pão de Açúcar e da Urca bordados no peito, assim como a presença massiva de mulheres no ponto, já não são uma surpresa. O local, inclusive, foi apelidado como Ponto das Penélopes por uma das taxistas.

O nome, em referência à personagem Penélope Charmosa e seu Carrinho Para Frente, é uma brincadeira com o fato de que boa parte da frota ali é composta por mulheres que trabalham na Táxi Rio Laranjeiras, mais conhecida como Táxi das Meninas. A cooperativa é quase 100% feminina. Os únicos três homens autorizados a frequentar o ponto são familiares das taxistas. Eles ficam responsáveis pelas corridas noturnas por uma “questão de segurança”. Não importa para qual delas se pergunte, a resposta é geralmente a mesma: dirigir à noite? Perigoso.

A ideia de criar uma cooperativa totalmente feminina surgiu em uma conversa de WhatsApp. Há anos as taxistas se organizam em grupos na internet, mas sempre tiveram vontade de ter um lugar físico só delas. Foi então que as quatro coordenadoras do Táxi das Meninas – Patrícia Missiba, Elvira Maria Ivo, Lilian Gomes e Sidneia Bastos – deram entrada com a papelada na Secretaria Municipal de Transportes. Era dia 10 de novembro de 2020 quando a autorização do ponto saiu, em plena pandemia. 

Com pouco movimento nas ruas, as penélopes foram crescendo devagar, divulgando seu trabalho a cada corrida. “Nos fortalecemos depois de um ano, quando ficamos conhecidas como as meninas de Laranjeiras”, relembra Patrícia, que dirige um Virtus, o sedan premium da Volkswagen. Desde o início, a ideia da cooperativa era passar segurança aos clientes, sobretudo às mulheres. “Nós temos o cuidado de aguardar o passageiro entrar em casa, de descer do carro para ajudar um idoso”, exemplifica. O foco era fidelizar fregueses da região, para que elas também não precisassem atender a tantos desconhecidos na rua ou distante do ponto onde estão estabelecidas. “É uma dinâmica de trabalho que pensa no melhor para os passageiros e para as motoristas.”

Cada penélope faz seu horário e circula nos dias da semana que prefere. “Também trabalhamos em casa, cuidamos dos filhos e dos maridos. Cada uma tem uma meta e consegue tirar seu dinheirinho para pagar as contas”, afirma Patrícia. Inicialmente independentes, as taxistas perceberam que precisavam do apoio masculino, fosse para ajudar em alguns reparos no ponto ou para fazer corridas de madrugada. “Já entendemos que o problema não é o sexo, é a credibilidade, e nós passamos isso.” Nos dias em que a demanda é maior, a cooperativa conta com outros quatro motoristas de confiança para atender aos clientes (eles se somam aos outros três homens que atuam de maneira fixa). Diante do sucesso em Laranjeiras, elas pensam em se estabelecer em outros bairros, como Copacabana, também na Zona Sul, ou na Tijuca, na Zona Norte. 

O Sindicato dos Taxistas Autônomos do Município do Rio de Janeiro estima que existam 35 mil taxistas na cidade – além dos cerca de 16 mil auxiliares (profissionais que trabalham com o carro e a permissão de taxista de outro motorista). A entidade, no entanto, não soube informar à piauí quantas taxistas femininas estão em atividade. Por mais que não haja dados transparentes sobre o recorte de gênero, não é preciso ir muito longe para entender que a Táxi das Meninas é uma exceção. A menos de 2 km dali, a cooperativa Glicério Táxi é composta por cerca de 55 motoristas homens e apenas uma mulher. Nos outros pontos da cidade, a história não é muito diferente.

 

Uma das integrantes do Táxi das Meninas é Lilian da Silva Franco, uma paulista de 46 anos que ostenta longos cabelos pretos. Sua experiência automotiva é antiga – ela gerenciou uma cooperativa de ônibus herdada do pai e um lava-jato, ambos em São Paulo, sempre cercada por homens. Formada em odontologia, mudou-se para o Rio há seis anos, onde começou a trabalhar em um consultório particular. A chegada da pandemia mudou o rumo de sua vida. “Sem paciente, sem dinheiro”, diz ela, que se viu aflita com as consultas – e o salário – minguando. Mesmo nunca tendo pensado em trabalhar como taxista, ela adquiriu um alvará em 2021 como alternativa para complementar a renda.

No ano seguinte, começou a atender no Norte Shopping, no bairro do Cachambi, Zona Norte do Rio. O ponto tinha outras sete mulheres e 150 homens, todos vinculados a uma cooperativa, a CoopNorte Táxi. Certo dia, enquanto esperava sua vez para pegar um passageiro, ouviu um de seus colegas balbuciar: “Você deve ser uma merda de dentista para ter que estar no táxi hoje.” Ela respondeu: “Você é auxiliar, não é? A merda da dentista comprou o carro à vista. Eles acham que a gente é besta, sabe? Que não tem capacidade”, afirma Lilian. 

A jornada no Norte Shopping, que começava às 11 horas, passava das 22 horas com frequência. Insatisfeita, ela se sentia “exposta ao risco” por trabalhar até tarde e entrar em comunidades constantemente. Depois de um ano, preferiu abdicar do vínculo com a cooperativa e trabalhar por conta própria, sem um ponto fixo. Após a indicação de uma amiga, conheceu a Táxi das Meninas, onde está há oito meses e dirige o carro de número 10. Ali, a maior parte das motoristas do ponto são herdeiras do táxi, em que pelo menos um homem da família já trabalhava no ramo antes delas. Algumas receberam o alvará depois da morte de um parente, outras compraram a licença por conta própria, e algumas trabalham como auxiliar.

Lilian nunca foi fã de taxistas, sobretudo os do Rio. Certa vez, chegando no Aeroporto Santos Dumont, colocou as bagagens no porta-malas de um amarelinho e iniciou a corrida. Quando disse que ia para a Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), no Maracanã, perto da comunidade da Mangueira, na Zona Norte do Rio, sentiu o carro frear. “Eu não vou para comunidade”, disse o homem, que a deixou no meio da rua. A aversão à categoria arrefeceu quando ela conheceu seu marido, Cleber, com quem está casada há seis anos. Advogado, trabalhou por três décadas como taxista. Hoje, os dois juntos gerenciam quatro táxis, um deles sendo o Cobalt de Lilian vinculado ao Táxi das Meninas. Os outros três estão alugados. 

Dirigindo das 9h30 às 19 horas e com uma média de quinze corridas por dia que lhe garantem cerca de 500 reais, Lilian já ouviu muitos comentários de homens. Não deixa nenhum sem resposta: “Quando o passageiro começa a passar do limite, já mando assim: ‘Meu marido também acha’”, artifício que encerra qualquer gracejo fora do tom. Por parte dos companheiros de profissão, Lilian percebe um ressentimento direcionado às motoristas. “Eles devem achar que a gente está tirando o lugar deles, mas tem passageiros para todo mundo.” 

Ela ouve velhos xingamentos, alguns a mandando voltar para a cozinha, mas não se abala. “No sinal, quando paro ao lado de um daqueles taxistas mais cascudos, e eles veem que é uma mulher, chegam a rosnar. Fazem cara feia. Respondo, bem debochada: ‘tudo bom, colega, beleza?’” Mas também há momentos de alegria. “As passageiras se sentem mais à vontade com uma mulher, ficam todas empolgadas”, comenta.

Lilian não abandonou completamente a odontologia. Ela reserva seis dias de cada mês para atendimentos na sala que aluga em um consultório em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense. Ali encontra um machismo diferente daquele que recebe nas ruas: a ideia de que a mulher deve ganhar menos do que o homem. “E às vezes ela faz um serviço melhor, mais humano.” Suas considerações feministas são interrompidas após ela ser chamada para mais uma corrida. Então, ela alinha a camisa rosa-chiclete por dentro da calça, ajeita os longos cabelos pretos, entra em seu carro e sai pelas ruas de Laranjeiras. 

 


Texto selecionado no concurso Uma história na minha esquina, promovido pela piauí e destinado a estudantes de jornalismo. Os vencedores podem ser conhecidos aqui. Uma outra versão foi publicada no site ecoufrj.com.br

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