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    Embarcação da Polícia Federal às margens do Rio Negro, por onde passam toneladas de cocaína traficadas por colombianos e brasileiros Foto: Marizilda Cruppe

narco files

A rota do crime que liga o PCC às Farc

Investigação aponta que a facção brasileira se uniu a ex-guerrilheiros para traficar drogas pelo Rio Negro, na Amazônia

Allan de Abreu, Eduardo Goulart e Vinicius Madureira | 06 nov 2023_10h00
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Esta reportagem faz parte do #NarcoFiles: A Nova Ordem do Crime, uma investigação jornalística transfronteiriça sobre o crime organizado global, suas novas estratégias, suas ramificações e aqueles que o combatem. O projeto, liderado pelo Organized Crime and Corruption Reporting Project (OCCRP) em parceria com o Centro Latinoamericano de Investigación Periodística (CLIP), começou com o vazamento de e-mails do Ministério Público da Colômbia que foram compartilhados com a piauí e outros veículos de mídia ao redor do mundo. Jornalistas examinaram e confirmaram as informações juntamente com centenas de outros documentos, bancos de dados e entrevistas.

 

O Vaupés, também conhecido como Uaupés, é um rio de águas escuras e caudalosas que nasce na Colômbia, serpenteia a Amazônia e deságua no Rio Negro, em território brasileiro. Ao longo de suas margens, 24 etnias indígenas, entre elas os karapanãs e os makunas, convivem com traficantes de cocaína, em sua maioria dissidentes das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc). A fronteira com o Brasil faz parte de uma rota lucrativa do tráfico internacional de drogas. O esquema foi objeto de uma investigação sigilosa do governo dos Estados Unidos e do Exército da Colômbia que detalhou, pela primeira vez, como um desses grupos criminosos trabalha para abastecer o PCC (Primeiro Comando da Capital) com toneladas de cocaína por via aérea e pelo Vaupés.

A piauí e o UOL tiveram acesso com exclusividade a relatórios de inteligência repassados ao Ministério Público da Colômbia e obtidos pelo consórcio de jornalismo investigativo OCCRP (Organized Crime and Corruption Reporting Project). Os documentos mostram o caminho percorrido pela cocaína que sai da Colômbia, passa por Manaus, pelo Caribe e termina nas mãos de consumidores na Europa.

A investigação teve início em 2020, a partir de informações repassadas ao Exército colombiano e à Polícia Federal brasileira pela Drugs Enforcement Administration (DEA), polícia norte-americana especializada no combate ao narcotráfico. Os americanos chamaram atenção para um esquema de compra e venda de cocaína na região conhecida como “cabeça do cachorro”, no extremo noroeste do Brasil, onde o país faz fronteira com Colômbia e Venezuela (o lugar ganhou esse apelido porque, nos mapas, seu formato se assemelha a um cachorro de boca aberta).

Segundo as informações preliminares repassadas pelos americanos, quem fazia a ponte entre os dissidentes das Farc e os criminosos do PCC era um colombiano chamado Nelson Jaramillo Quiceño, mais conhecido como Calidad (qualidade, em espanhol). Cabia a ele garantir que os criminosos colombianos, estabelecidos nos departamentos de Guaviare e Vaupés, conseguissem repassar os lotes de cocaína para os criminosos brasileiros, radicados em Manaus e São Gabriel da Cachoeira.

Nascido em San Jose del Guaviare, distante 400 km da capital Bogotá, Calidad fez parte de um grupo de paramilitares conhecido como “autodefesas de Yarí”, que atuava no Sul da Colômbia no começo dos anos 2000. Eram milícias que combatiam os guerrilheiros das Farc na selva. Em 2003, Calidad foi investigado por envolvimento no assassinato de quatro pessoas, entre elas um adolescente, mas acabou inocentado por falta de provas. Seis anos mais tarde, foi preso em flagrante pelo Exército brasileiro enquanto levava 4 toneladas de cimento a bordo de um barco no Rio Vaupés, na altura de Iauaretê, povoado amazonense próximo à fronteira com a Colômbia. A venda de cimento é controlada no Brasil, já que o produto pode ser usado na transformação de folha de coca em pasta base. Por isso, é preciso autorização da PF para exportá-lo. Calidad não tinha a papelada e foi detido pelos militares. Dias depois, deixou a prisão graças a um habeas corpus.

Por causa das toneladas de cimento, Calidad foi denunciado pelo Ministério Público Federal por contrabando. O processo tramita na Justiça brasileira e ainda não resultou em sentença. Em janeiro de 2015, o colombiano foi preso novamente em flagrante, dessa vez por crime contra a ordem tributária no estado do Amazonas. A reportagem não obteve detalhes do caso, que tramita em segredo de Justiça.

Desde aquela época, Calidad ora vivia em São Gabriel, onde possui uma barbearia e um restaurante, ora em Yavaraté, vilarejo colombiano na fronteira com o Brasil. Segundo os investigadores, ele se aproximou do principal grupo de dissidentes das Farc. Depois do acordo de paz entre o governo colombiano e os guerrilheiros, em 2016, as Farc viraram um partido político, mas alguns de seus integrantes optaram por continuar na selva, praticando sequestros e tráfico de drogas e armas. 

Essas dissidências, chamadas pelo Exército da Colômbia de “grupos armados organizados residuais”, se dividem em várias frentes, classificadas por números. A de número 1, com a qual Calidad se amigou, é composta por cerca de quatrocentos homens, que por muito tempo foram liderados por Miguel Botache Santillana, o Gentil Duarte, e Géner García Molina, conhecido como Jhon 40. 

Gentil Duarte foi morto na Venezuela em maio de 2022. Seu comparsa, Jhon 40, é um criminoso de renome. Seguindo a moda dos “corridos”, como são chamadas as canções populares que exaltam narcotraficantes, Jhon gravou duas músicas contando a própria trajetória. Chamam-se Bandido gringo e Maldito gobierno. Essa história foi contada em uma reportagem do The New York Times que se debruçou sobre o gênero musical, já bem estabelecido na Colômbia e no México.

A frente número 1 controla a produção e o tráfico de cocaína nos departamentos de Meta, Guaviare e Vaupés, território que abarca 6,7 mil hectares plantados de folha de coca, segundo o relatório mais recente do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes (Unodc). De acordo com os informes de inteligência do Exército colombiano, a cocaína produzida pelo grupo era transportada em barcos por 520 km entre as cidades de Miraflores e Mitú, na Colômbia. De lá, a droga era enviada a Manaus por meio de aviões da Aerovías Regional del Oriente (ARO), uma empresa de táxi aéreo que tem uma frota de nove aeronaves. Os militares suspeitam que lotes menores eram levados por embarcações que percorriam os rios Vaupés e Negro até Manaus, ocultos em carregamentos de farinha, carne ou peixe. 

Em Manaus, ainda de acordo com o Exército da Colômbia, Calidad negociava a venda da cocaína com integrantes do PCC, que, por sua vez, despachavam a droga – possivelmente embarcada em aviões – para a República Dominicana e Porto Rico. De lá, a cocaína era traficada para portos europeus. Os documentos de inteligência não informam quais países recebiam a cocaína colombiana. Também não identificam os integrantes do PCC envolvidos nessa logística criminosa.

 

O Rio Solimões é a principal porta de entrada da cocaína que chega ao Brasil pela Amazônia, segundo a Polícia Federal. Nos últimos anos, essa rota tem sido dominada pelo Comando Vermelho, o que obrigou a facção rival PCC a buscar caminhos alternativos, como o Rio Negro. Esse trajeto traz algumas vantagens para os criminosos, como a menor presença policial (enquanto no Solimões existem ao menos cinco postos de fiscalização das polícias Civil e Federal, no Negro há somente dois), o baixo povoamento da região e a grande quantidade de ilhas, com destaque para o arquipélago de Anavilhanas, que dificulta o trabalho policial. Mesmo assim, em pouco mais de um ano, entre 2020 e 2021, foram apreendidas 3 toneladas de droga ao longo do rio, segundo os registros da PF.

Equipes do 30º Batalhão de Infantaria do Exército colombiano, com sede em Mitú, interceptaram conversas em espanhol de integrantes não identificados do esquema. “Tem 22 pacotes mas não consegui mover isso por aqui. Está complicado”, disse um interlocutor, em 17 de janeiro de 2021. Quatro dias depois, novo diálogo suspeito: “Ontem chegou o pessoal do chapéu e já estava tudo pronto, esses caras eles estão pedindo mais.” A última conversa transcrita pela inteligência militar é de 24 de janeiro daquele ano: “A comida foi enviada, mas não enviaram o dinheiro.”

Em paralelo, o esquema também foi investigado pelas autoridades brasileiras. Em julho de 2021, agentes da Delegacia de Repressão a Entorpecentes (DRE) da PF de Manaus foram enviados a São Gabriel para seguir Calidad. O colombiano, porém, estava passando uma temporada no país vizinho, e por isso a investigação não andou. O Exército da Colômbia, ao que tudo indica, foi mais bem-sucedido. 

Em setembro de 2021, os militares colombianos constataram que Calidad transportou combustível em um barco de São Gabriel até Yavaraté. Segundo os investigadores, ele pretendia abastecer o gerador do vilarejo na Colômbia e, com isso, possibilitar a comunicação, via WhatsApp, com ex-guerrilheiros das Farc e integrantes do PCC. O Exército colombiano também constatou que alguns aviões da ARO, a empresa de táxi aéreo, decolaram do aeroporto de Mitú sem levar passageiros nem carga. A suspeita é de que essas aeronaves pousassem em pistas clandestinas às margens do Rio Vaupés, onde eram carregadas com cocaína.

Meses depois das interceptações telefônicas, em agosto de 2021, Calidad se reuniu com o gerente da ARO, Camilo Esteban Avila Morales, e o então prefeito de Mitú, Carlos Enriques Peñagos Celis, sócio da mesma empresa. Os investigadores afirmam que o motivo do encontro era discutir um aporte de 130 milhões de pesos – cerca de 156 mil reais – do grupo criminoso na campanha de Morales a deputado federal. Ele foi eleito em março de 2022.

Outros indícios se somaram à investigação. Um informante afirmou aos militares que Morales e Celis, visivelmente embriagados em um bar, comemoraram o envio de um carregamento de cocaína ao Brasil. Na conversa, eles teriam falado do plano de comprar um novo avião com os lucros da viagem. “Às vezes, sob o estado de embriaguez, [Celis] diz que envia muitos carregamentos de cloridrato de cocaína para Manaus, Brasil, e que atualmente controla voos em parceria com Camilo Esteban Ávila Morales”, afirma um relatório do 30° Batalhão de Infantaria do Exército da Colômbia.

Segundo os militares, Calidad, Morales e Celis vinham adquirindo propriedades rurais na região de Mitú em nome de parentes, o que levantou a suspeita de que estivessem lavando dinheiro por meio de transações fundiárias. Em novembro de 2021, dizem os relatórios da investigação, Calidad se reuniu em Manaus com integrantes do PCC para negociar novos carregamentos de cocaína. Três meses depois, o Exército da Colômbia constatou que o grupo se articulava para transportar 560 kg de cocaína de Mitú até a fronteira com o Brasil, percorrendo o Vaupés.

Diante dessas evidências, o Ministério Público da Colômbia obteve, em janeiro de 2022, autorização judicial para monitorar um dos telefones de Calidad. O aparelho, no entanto, já não era mais usado pelo investigado, conforme constataram os promotores um mês depois. A apuração continua nas mãos do Ministério Público. A reportagem solicitou informações repetidas vezes sobre o andamento do processo, mas não houve resposta nem dos promotores nem do Exército colombiano. Como a investigação corre em sigilo, não se sabe se os suspeitos foram denunciados à Justiça nem se houve novas descobertas no caso. Não constam ações penais públicas contra Calidad, Morales e Celis por tráfico de drogas na Justiça da Colômbia.

A reportagem fez contatos por WhatsApp com Calidad desde o dia 12 de outubro, mas não obteve resposta até o fechamento desta reportagem. Não foi possível contatá-lo por outros meios. O prefeito Celis e o deputado Morales foram procurados por e-mail, mas também não responderam aos questionamentos, enviados repetidas vezes. O espaço segue aberto para eventuais manifestações.

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