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questões cinematográficas

Sabedoria de mestre

Em declarações publicadas no mesmo dia (O Globo, 29/8/2012), um suposto brasilianista aposentado, correspondente fictício de Roberto DaMatta, e o diretor do Festival de Veneza, que chega ao fim no sábado, afirmam que não sabemos fazer cinema. Entre nós, há discordâncias – um venerando cineasta concorda, embora atribua essa incapacidade a razões diferentes dos gringos. Já o diretor-presidente da RioFilme não só discorda como vislumbra futuro róseo para o cinema brasileiro.

| 06 set 2012_14h40
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Em declarações publicadas no mesmo dia (, 29/8/2012), um suposto brasilianista aposentado, correspondente fictício de Roberto DaMatta, e o diretor do Festival de Veneza, que chega ao fim no sábado, afirmam que não sabemos fazer cinema. Entre nós, há discordâncias – um venerando cineasta concorda, embora atribua essa incapacidade a razões diferentes dos gringos. Já o diretor-presidente da RioFilme não só discorda como vislumbra futuro róseo para o cinema brasileiro.

A tese do americano e do italiano, mesmo divergindo quanto às causas, remete à versão consagrada da frase de Rui Barbosa, incluída em seu discurso de posse como ministro da Fazenda, em 1889: “Se o Brasil é um país essencialmente agrícola, por isso mesmo cumpre que seja um país ativamente industrial.” Omitida a segunda parte, a frase virou uma proclamação fatalista da nossa vocação agrícola.

O resultado negativo da indústria brasileira no segundo trimestre deste ano, também divulgado na semana passada, veio ao encontro dos decretos de nossa incompetência cinematográfica baixados pelos dois alienígenas, realçando a lembrança da versão corriqueira da frase de Rui Barbosa. Enquanto a produção industrial diminuiu 2.5%, foi a agropecuária, de fato, graças ao café, milho e algodão, que cresceu, ainda assim garantindo aumento modesto de 0,4% do Produto Interno Bruto (PIB), nos últimos meses.

O correspondente imaginário de Roberto DaMatta atribui o fato de, nos seus termos, fazermos cinema tão mal ou tão raramente produzirmos um cinema de primeira qualidade, ao fato da Justiça, no nosso “país patrimonialista e democrático”, ser como a novela: “o caso demora décadas para entrar em julgamento e, quando entra em cena, sofre um atraso de uma gestação para ser resolvido”. Para o brasilianista, “uma Justiça democrática é como um filme – depois de hora e meia a narrativa invariavelmente termina”.

Convém desconfiar de palpites desse quilate, apesar do entusiasmo que provocaram no meu amigo Nilton. Brasilianistas costumam ser excelentes pesquisadores, mas muitas vezes são analistas sofríveis. No caso, a tese, além de escalafobética, desconsidera a conveniência, para a democracia, da lentidão – na Justiça e no cinema. Como Beatriz Sarlo indicou, o questionamento da “insuportável lentidão” dos procedimentos judiciais deve ser relativizado (“Violência nas cidades”, em Tempo presente – notas sobre a mudança de uma cultura). Sarlo comenta o interesse das vítimas em um “castigo direto e sumário”. Mas, “a pior Justiça, a mais lenta e mais torpe, é preferível a um veredito populista, no qual a dramatização demagógica do crime resulta em uma ausência total de garantias”. Compreensível quando feito pelas vítimas, esse julgamento adquire sentido “não-republicano”, diz Sarlo,  quando feito pelos meios audiovisuais (e impressos, acrescentaria).

Além da rotina ter seus encantos, a lentidão possui seus méritos, o que parece estar além da capacidade de compreensão do missivista americano de DaMatta.

Alberto Barbera, novo diretor do Festival de Veneza, por sua vez, considera que a qualidade dos filmes brasileiros vistos durante o processo de seleção para a mostra “não estava à altura da competição de um festival internacional” – julgamento pessoal legítimo que não cabe questionar. Claudicante, porém, é o paternalismo condescendente da explicação dele para essa deficiência. Segundo Barbera, “existem muitos novos diretores, alguns muito talentosos, mas que ainda precisam amadurecer”.

Quem já foi a um festival internacional sabe que a seleção dos concorrentes nem sempre obedece a critérios de qualidade. O prestígio do diretor, a relevância do país produtor no contexto internacional, conveniências políticas, interesses pessoais etc. têm peso decisivo. Filmes de um país irrelevante no mercado mundial de cinema, como o Brasil, sempre terão dificuldade na competição feroz da qual resulta a escolha de apenas 0.5% dos inscritos.

A visão sombria do brasilianista imaginário e do diretor do Festival de Veneza, caso confirmada, poria em questão o triunfalismo de Sérgio Sá Leitão, em artigo publicado no mesmo jornal, 3 dias depois do duplo anúncio do apocalipse (, 1/9/2012). Se não sabemos fazer cinema, essa incapacidade, somada ao recuo do setor industrial, com queda acumulada no ano de 1,2%, não nos condenaria a sermos “um país essencialmente agrícola”? Nesse caso, seríamos capazes de atender, com filmes de mérito artístico e cultural, a demanda a ser criada pela lei 12.485, que estabelece uma cota na TV paga para a produção brasileira?

Até os defensores empedernidos de cotas reconhecem, graças à experiência acumulada em décadas passadas, que formas variadas de reserva de mercado não asseguram, por si só, o dinamismo e a sustentabilidade de nenhuma atividade econômica. Além de regulação e investimento, um ambiente propício à criatividade e à inovação é condição sine qua non.

Engessado pela burocracia, o cinema brasileiro atual evoca a anotação feita por Dziga Vertov, em seu diário, na primavera de 1926: “[…] Intervalo longo demais entre ideia, concepção e realização. Se não nos permitem implementar nossas inovações logo, podemos estar correndo perigo de inventar continuamente e nunca realizarmos nossas invenções na prática.”

Será preciso mencionar que a União Soviética estava prestes a comemorar 10 anos da revolução de outubro, e Stálin a consolidar seu poder absoluto à frente do Estado, do qual a derrocada do cinema soviético seria decorrência?

Talvez nem fosse o caso de levar a sério o brasilianista aposentado e o diretor do Festival de Veneza. Mas além de Rui Barbosa, outro brasileiro ilustre recomenda manter alerta o senso crítico. Após longos estudos, durante os quais consultou documentos na seção de obras raras da Biblioteca do Congresso Americano, em Washington, e de reflexão profunda em prolongados retiros, Eduardo Coutinho concluiu que o fracasso irremediável do cinema brasileiro se deve a dois fatores.

Primeiro, a inexistência de estações do ano bem delimitadas na maior parte do território brasileiro. Sem a demarcação do clima, característica das grandes potências políticas, militares e cinematográficas, diz Coutinho, tudo é sempre igual. E sem a percepção nítida da passagem do tempo, não se pode fazer cinema.

Para agravar o quadro, diz ele, foi eliminado o transporte ferroviário de passageiros, no Brasil, a partir da década de 1950. E sem estações de trem, tornou-se impossível filmar chegadas e despedidas na plataforma, essenciais para o cinema. Esse foi, segundo Coutinho, o golpe de misericórdia na pretensão de fazer cinema neste país.

Diante de tamanha demonstração de sabedoria do mestre, o melhor a fazer é mudar de assunto.

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