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San Vicente e a América Latina de Milton e Brant

O Questões Musicais abre espaço para o texto preciso de Leandro Aguiar, jornalista e mestrando em Comunicação na Universidade Federal Fluminense, sobre uma canção de Milton Nascimento e Fernando Brant. Boa leitura!

Leandro Aguiar | 02 set 2015_16h17
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Límpida e etérea, a voz de Milton é acompanhada já na primeira sílaba de San Vicente por um violão dedilhado e algo ibérico. Graças a recursos de estúdio o canto ecoa, remetendo a um tempo turvo e esfumaçado. A letra confirma de saída a proposta onírica da música: “coração americano, acordei de um sonho estranho”. Delicada, ela traz a tona impressões traumáticas onde o “vidro” e o “corte”, “vida” e “morte” se estabelecem “no corpo e na cidade”. Ao fim da primeira seção, o canto é interrompido pelo violão, agora tocado de maneira rasgueada, à espanhola, tendo o tempo marcado pelas palmas assimétricas de Milton – em contraponto ao clima instituído no começo, a música passa a soar festiva e convida à dança.

San Vicente faz parte do antológico álbum Clube da Esquina, lançado em 1972, e se insere num cenário em que o Brasil, e de forma particular a juventude brasileira à qual se dirigia e da qual faziam parte os membros do Clube da Esquina, vivia um momento incerto. Acirravam-se os ânimos tanto por parte da ditadura civil-militar quanto de seus opositores, falava-se em modernização do país, em comunismo, industrialização e “americanização”, de rock, revolução, sequestros e tortura; músicos eram exilados por suas posições políticas, as grandes gravadoras se firmavam cada vez mais e as ideias de “identidade nacional” e “música popular brasileira”, entre outras, estavam em jogo. Ao mesmo tempo, países como Argentina, Chile e Uruguai passavam por situações semelhantes, conduzindo o foco para as ideias amplas de “América Latina” e “Terceiro Mundo”.

“Na busca por sua expressão”, postula o Manifesto del Movimiento del Nuevo Cancioneiro, “o artista popular adotou e recriou ritmos e melodias que, por seu conteúdo e forma, se adaptam mais totalmente aos sentimentos e ao gosto do povo”. Publicado em 1963 em Mendoza, Argentina, e assinado, entre outros, por Mercedes Sosa, aclamada por fãs e críticos como “a voz da América Latina”, o Manifesto apresenta os propósitos estético-musicais de deferência aos ritmos folclóricos hispano-americanos e de abertura às influências externas – Bob Dylan e Joan Baez, por exemplo – mas, sobretudo, trata da “necessidade” do engajamento político dos artistas frente ao cenário latino-americano. Embora nunca tenha aderido formalmente ao manifesto, Milton Nascimento vincula-se à chamada nueva canción, e talvez não seja um exagero dizer que San Vicente representa sua carta de intenções para ingressar no movimento.

As aproximações com uma estética e atmosfera hispano-americanas estão claras no título e na temática da canção – Fernando Brant, que divide a autoria da música com Milton, já afirmou que San Vicente é uma cidade imaginária “onde acontece um golpe militar”; sua intenção, diz, era “fazer uma síntese do sentimento passando pela América Latina inteira”. O modo como o violão é tocado e a marcação assimétrica do tempo também remetem a uma sonoridade francamente latina. A alusão a esta estética popular ancestral parecia guardar, como lembra Ciro Canton em sua dissertação de mestrado sobre o Clube da Esquina, as “exaltações piedosas” e o “entusiasmo cavalheiresco” pré-capitalista aos quais se refere o Manifesto Comunista de Marx. O desejo cosmopolita de ingressar em certa modernidade musical e o repúdio engajado às ditaduras que então vigoravam no continente aproximam Milton e Brant da nueva cancion. Tal como Mercedes Sosa, os compositores mineiros cultivavam uma ideia de América Latina que mais valoriza as semelhanças entre os países que suas diferenças.

É pela associação entre o violão ibérico, o carrilhão, a guitarra elétrica, a percussão andina e a voz de Milton que essa ideia de uma América Latina unificada se deixa entrever. Foram estes os conectores tanto da sonoridade latina de San Vicente quanto de sua proposta.

Na terceira e derradeira estrofe, o canto se aproxima de um grito. Bateria, percussão, badalos de sinos, outras vozes, guitarra, carrilhão, baixo e piano preenchem a canção, que se resolve no êxtase final da voz de Milton: funcionando como um instrumento, articulada em falsete, ela alcança as notas mais agudas. Tão logo atinge o auge, a canção vai desaparecendo, restando só os sinos, que continuam soando, sozinhos, até o fim de San Vicente.

Leandro Aguiar é jornalista e estudante de mestrado em Comunicação na Universidade Federal Fluminense

 

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