Elize Matsunaga durante as gravações da série - Foto: Divulgação/Netflix
Sangue e audiência
Plataformas de streaming apostam em crimes de repercussão nacional e, após sucesso de O Caso Evandro no Globoplay, Netflix responde com série documental sobre Elize Matsunaga
Uma loira abre o elevador na cobertura de um prédio de alto padrão em São Paulo. Trava a porta com uma mala e busca mais duas valises, todas pretas. Já dentro do elevador, segurando uma bolsa de mão e aparentando tranquilidade, aperta o botão para descer à garagem. Registrada pelas câmeras de segurança do prédio, a cena se desenrolou por volta das 11 horas do dia 20 de maio de 2012 e serviu de prova contra a enfermeira e advogada Elize Matsunaga. Ela foi condenada por matar o marido, Marcos Matsunaga, herdeiro da indústria alimentícia Yoki. Depois de assassiná-lo com um tiro na cabeça e esquartejá-lo, Elize colocou as partes do corpo em sacos plásticos e os jogou numa mata. À época, a Yoki estava sendo negociada por 2 bilhões de reais.
O homicídio, um dos mais famosos do Brasil, virou tema de um documentário com quatro episódios que a Netflix vai lançar mundialmente no dia 8 de julho. Elize Matsunaga – Era uma Vez um Crime consegue o que ninguém conseguiu fora do inquérito policial e do trâmite jurídico: escutar a versão da assassina. Até então, a enfermeira nunca havia concedido uma entrevista. “Não queremos defendê-la nem atacá-la, mas entender as razões que a levaram àquilo”, explica a diretora da série, Eliza Capai. A Boutique Filmes, de São Paulo, realizou o documentário para a gigante do streaming.
Uma das principais atrações brasileiras da Netflix em 2021, o programa faz parte de um nicho cada vez mais cobiçado dentro e fora do país: o das produções sobre grandes crimes, conhecidas como true crimes (crimes de verdade). O gênero normalmente custa menos que as ficções, por não gastar com atores, cenários e figurinos. Também costuma atingir bons índices de audiência e repercutir nas redes sociais. “Os crimes retratados são tão surreais que parecem invenção”, diz Nilson Xavier, crítico de televisão e autor do livro Almanaque da Telenovela Brasileira. Embora documentais, esses programas incorporam elementos de séries dramáticas. “Em geral, as narrativas se revelam instigantes, com ganchos entre os capítulos e algum plot twist no meio da trama”, prossegue Xavier, referindo-se às reviravoltas que fazem as histórias tomarem novos rumos.
Tais características aparecem, por exemplo, em O Caso Evandro, do Globoplay. A série, que está no ar desde maio, reconstitui o sequestro e o assassinato do menino Evandro Ramos Caetano em 1992, no Paraná. Foi baseada num podcast que o professor e jornalista Ivan Mizanzuk criou em 2018 e que já teve 9 milhões de downloads. Desde sua estreia, no dia 13 de maio, o documentário figura entre as dez séries mais vistas do Globoplay. Em paralelo, tornou-se um dos assuntos mais comentados no Twitter do Brasil. “Crimes de grande repercussão despertam um interesse especial do público e acabam gerando muita conversa. Nosso desafio em relação ao gênero é exibir produtos relevantes e de qualidade, com narrativas mais modernas, que acrescentem informações novas a acontecimentos já conhecidos”, afirma Ana Carolina Lima, diretora de conteúdo do Globoplay.
Na série sobre o caso Matsunaga, a cineasta Eliza Capai não apenas trata do homicídio como põe o machismo em discussão. Ela já assinou outros documentários que enfocam questões femininas, a exemplo de Severinas e O Jabuti e a Anta. Diante das câmeras, Elize Matsunaga não se faz de vítima e, como a diretora pretendia, conta em detalhes por que matou e esquartejou o marido. O crime ocorreu enquanto a enfermeira tinha um acesso de ciúmes em razão de um caso extraconjugal de Marcos, descoberto por um detetive particular. A própria Elize já havia sido amante da vítima nos tempos em que trabalhava como garota de programa.
A série ressalta que, quando um marido mata a mulher por ciúme, o assassinato dificilmente recebe muita atenção da mídia, em virtude do elevado número de feminicídios no Brasil. Entretanto, quando acontece o inverso e a mulher mata o parceiro, ela ganha notoriedade. O ponto alto do documentário é esmiuçar a vida íntima do casal. Marcos apresentou o mundo das armas à companheira. Os dois frequentavam clubes de tiro e viajavam para caçar grandes animais silvestres. Foi com Marcos que Elize aprendeu a atirar e a desossar um bicho. Ela fala do assunto com naturalidade, mas faz um mea-culpa sobre as armas. Reconhece que ter armamentos à mão – a residência do casal abrigava 33, incluindo a pistola .38, usada no crime – “pode ser ruim na hora de uma briga”.
Condenada a dezenove anos, onze meses e um dia de prisão, Elize cumpre pena na Penitenciária Feminina de Tremembé, no interior de São Paulo, desde 2012. A série a entrevistou durante 21 horas, distribuídas ao longo de duas “saidinhas”, ocasiões em que a enfermeira pôde deixar a cadeia. No ano passado, a cineasta obteve autorização para gravar dentro da instituição. A pandemia, porém, inviabilizou o registro. “Tudo fechou justamente quando entraríamos lá, em março de 2020”, relembra Capai.
A Secretaria de Administração Penitenciária informa que, no presídio, Elize cultiva o hábito de ler e trabalha na oficina de costura. Sua conduta carcerária é classificada como ótima. A enfermeira mora num alojamento com capacidade para 87 sentenciadas e, quando sair da prisão em definitivo, pretende se reaproximar da filha de 10 anos, que está sob a guarda dos avós paternos.
No Globoplay, a joia da coroa entre as true crimes é Em Nome de Deus, sobre o médium João de Deus, condenado por estupro e assédio sexual. Lançada em junho de 2020 e dirigida por Gian Carlo Bellotti, Mônica Almeida e Ricardo Calil, a série se transformou num dos programas que mais atraíram novos assinantes para a plataforma. O Globoplay não fala de números abertamente, mas a piauí apurou que a empresa lucra cerca de três dólares para cada dólar investido em documentário. Não à toa, em 2020, o diretor de variedades da TV Globo, Mariano Boni, se reuniu com sua equipe e avisou: quem tiver uma ideia de série documental pode agendar uma apresentação.
O mercado nacional de streaming vem se movimentando cada vez mais para atender à demanda por true crimes. Recentemente, a WarnerMedia contratou Mônica Albuquerque, ex-diretora de programação da Globo, que será responsável também pelo recrutamento de profissionais para o gênero. Já a Amazon não está fazendo, no momento, nenhum documentário brasileiro sobre grandes crimes, mas lançou no começo deste mês a série de ficção Dom, dirigida por Breno Silveira e inspirada na história de Pedro Machado Lomba Neto, jovem carioca de classe média que integrou uma facção criminosa. Trata-se da primeira série nacional exibida pela Amazon Prime Video.
No Canal Brasil, Colônia estreia em 25 de junho. Com dez capítulos e gravada em preto e branco, a série ficional se baseia no livro-reportagem Holocausto Brasileiro, de Daniela Arbex, sobre o Hospital Colônia de Barbacena (MG). “Era uma instituição psiquiátrica para onde a sociedade mandava as pessoas com quem não queria conviver, como gays, alcoólatras, prostitutas e jovens solteiras que engravidaram”, resume o diretor André Ristum. A série também estará disponível no Globoplay.
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