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    Intervenção de Paula Cardoso sobre fotos de Rogério Cassimiro/Folhapress e Lalo de Almeida/Folhapress

questões ambientais

Sem chance para o verde

Como São Félix do Xingu, no Pará, conseguiu combater o desmatamento no início da década, e por que o avanço da pecuária fez o problema voltar a crescer na cidade

Luigi Mazza | 18 dez 2019_13h42
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Até maio deste ano, a Fazenda Ouro Verde, situada numa área de conservação ambiental em São Félix do Xingu, no sudoeste do Pará, era coberta de floresta nativa. Em julho, o terreno já tinha se transformado em um grande polígono marrom e árido. Num espaço de três meses, foram varridos do mapa 5,6 mil hectares de Floresta Amazônica, uma área equivalente a 35 parques do Ibirapuera, em extensão. Os proprietários da fazenda, dois irmãos apontados pela Polícia Civil como mandantes do crime, tiveram a prisão decretada pelo Tribunal de Justiça do Pará. Um deles chegou a ser preso em Goiás, no fim de agosto, mas pouco depois a Justiça permitiu que eles respondessem ao processo em liberdade. A defesa de ambos nega as acusações.

“Eu acompanho isso há mais de dez anos, mas nunca tinha visto um desmatamento dessa dimensão. Foi um mundo”, conta Mauro Lúcio Costa, pecuarista e ex-presidente do Sindicato dos Produtores Rurais de Paragominas, cidade situada próxima à fronteira entre Pará e Maranhão. Entre os ruralistas, Costa é uma das poucas vozes ativas contra o desmatamento. Presta consultoria a outros fazendeiros sobre como aumentar a produtividade no campo sem prejudicar o meio ambiente. Por causa do trabalho, costuma viajar com frequência até São Félix do Xingu.

“É um negócio profissional. Os criminosos só foram encontrados porque tentaram uma área grande demais. Se tivessem desmatado um terço disso, talvez não tivessem sido pegos”, afirma Costa, explicando seu ceticismo. “Só vê essa atividade quem mora na região ou convive com as pessoas de lá. Estou lá todo mês, então vejo isso acontecendo.”

O desmatamento em São Félix do Xingu cresce hoje em ritmo acelerado, sobretudo dentro da Área de Proteção Ambiental (APA) Triunfo do Xingu. A reserva, que também se estende em menor proporção pelo município vizinho de Altamira, lidera há anos o ranking de unidades de proteção mais desmatadas. Mas a distância em relação às outras ficou maior nos últimos tempos. Entre 2017 e 2019, a área desmatada dentro do Triunfo do Xingu mais que dobrou de tamanho, passando de 210 km² para 436 km², segundo os dados do Prodes, sistema de monitoramento por satélite do Inpe, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais. Nos doze meses entre agosto de 2018 e julho de 2019, a reserva respondeu por quase metade do que foi desmatado nas mais de 350 unidades de conservação existentes no país.

A derrubada de árvores dentro do Triunfo do Xingu fez com que São Félix fosse o segundo município com maior incremento de desmate entre 2018 e 2019. Ao todo, foram 544 km² de Floresta Amazônica devastados. A cidade só ficou atrás de Altamira, que também vem numa linha acentuada de piora nos índices. De 2017 para cá, mais que dobrou sua área desmatada, em proporção similar a São Félix, chegando a 575 km² no último ano.

Mas o que torna São Félix do Xingu um caso notável é a curva histórica de sua devastação depois de um período de preservação: o desmatamento cresce, agora, de forma tão aguda como decresceu dez anos atrás. A cidade é um microcosmo que permite entender como as políticas públicas adotadas no início da década conseguiram reduzir os índices de desmatamento no chamado “arco do fogo” da Amazônia – e por que, em dado momento, elas deixaram de funcionar.

 

 

 

Em junho de 2008, o Ibama deflagrou a Operação Boi Pirata. Numa ação de grande escala, que mobilizou também outros órgãos do governo federal e forças policiais, foram confiscadas mais de 3 mil cabeças de gado criadas ilegalmente na Estação Ecológica Terra do Meio, em Altamira. O pecuarista Lourival dos Santos – dono dos bois e proprietário da Fazenda Lourilândia, onde eles pastavam – foi multado em quase 6 milhões de reais, em valores atualizados. Depois de confiscados, os animais foram levados a leilão pelo Ministério do Meio Ambiente. “Acabou a moleza. Boi Pirata vai virar churrasco do Fome Zero”, anunciou na época o então ministro Carlos Minc.

Embora a fazenda ficasse em Altamira, sua localização era mais próxima do Centro de São Félix do que da própria cidade. É uma configuração comum na região, já que os dois municípios são vastos – ocupam, respectivamente, o primeiro e o sexto lugar no ranking de maiores cidades brasileiras em extensão. Em geral, as atividades desenvolvidas na Terra do Meio têm vínculo maior com São Félix, e, portanto, uma parte relevante do desmatamento que acontece ao Sul de Altamira é provocado por fazendeiros de São Félix.

A operação do Ibama se tornou um marco do combate ao desmatamento nessa região da Amazônia. Não houvera, até então, uma ação com impacto econômico dessa escala. “A fiscalização ambiental era muito ineficaz naquela época, embora já tivesse começando a endurecer. Mas a Boi Pirata foi uma aplicação muito rápida de uma penalidade. Isso teve um resultado muito claro”, explica Paulo Barreto, engenheiro florestal e pesquisador sênior do Imazon, ONG voltada para o desenvolvimento sustentável da Amazônia.

Pouco depois da operação do Ibama, em 2008, Barreto esteve em São Félix do Xingu. Segundo ele, o confisco das cabeças de gado acendeu um sinal de alerta entre os pecuaristas e comerciantes locais. São Félix vive da pecuária e é a cidade que tem o maior rebanho bovino do país, com 2,3 milhões de cabeças de gado. Como a população humana é de 128 mil pessoas, isso dá uma proporção de dezoito bois por habitante.

Embora tenha tido um salto em 2008, a política de fiscalização e punição vinha dando frutos desde o início do primeiro governo Lula. Em 2005, São Félix do Xingu derrubou 1.405 km² de floresta – na época, era de longe a cidade do Brasil que mais desmatava. Três anos depois, época em que foi deflagrada a Operação Boi Pirata, a taxa anual foi de 760 km² desmatados. A partir dali, o índice caiu ainda mais e se estabilizou. Em 2011, o município atingiu o patamar mais baixo de desmatamento dos seus últimos vinte anos, com 139 km² devastados. A taxa teve pequenas oscilações até 2016. Mais recentemente, voltou a decolar, chegando a 544 km² em 2019.

 

No final dos anos 2000, por conta da taxa elevadíssima de desflorestamento, São Félix do Xingu se tornou alvo prioritário do Ministério do Meio Ambiente. Em janeiro de 2008, entrou para a lista de cidades que mais desmatavam, o que implicou sanções econômicas por parte do governo federal. Em 2011, o Ministério firmou um acordo de cooperação com a União Europeia e a Organização das Nações Unidas (ONU) por meio do qual foram destinados aproximadamente 7 milhões de euros para políticas ambientais em São Félix. O projeto, chamado Pacto Xingu, treinou produtores rurais e criou o Observatório Ambiental Municipal, equipado com tecnologias que permitiam monitorar o desmatamento dentro do município.

Pouco depois, em 2012, São Félix aderiu ao Programa Municípios Verdes, coordenado pelo governo do Pará para o combater o desmate em áreas críticas do estado. No final de 2013, a cidade atingiu o patamar de 83% de suas terras cadastráveis inscrita no Cadastro Ambiental Rural (CAR) – dispositivo que ajuda a regularizar a situação fundiária e, com isso, tem o efeito comprovado de reduzir o desmatamento. Feito o cadastro de terras, São Félix atingiu uma das metas estabelecidas pelo Ministério do Meio Ambiente para que a cidade deixasse a lista de municípios desmatadores. A outra meta mais importante – reduzir o desmatamento a uma taxa anual de menos de 40 km² – jamais foi alcançada. Mesmo a taxa mais baixa de desmatamento, em 2011, ainda era o triplo disso. 

“Eles queriam fazer de São Félix do Xingu um caso de sucesso. A cidade reunia – e reúne – todos os problemas clássicos do desmatamento: é muito grande, tem áreas de difícil acesso, intensa atividade especulativa, grilagem, garimpo, mineração”, diz Estela Neves, professora e pesquisadora especializada em governança e políticas ambientais. Em 2013, Neves conduziu um estudo sobre o desmatamento em São Félix e outras quatro cidades do Pará encomendado pela Climate and Land Use Alliance (Clua), instituição filantrópica que atua na frente ambientalista.

Dos cinco municípios estudados por Neves naquela ocasião, São Félix do Xingu foi o único que não deixou a lista do Ministério do Meio Ambiente. “A gente considera São Félix um grande fracasso. Foi o nosso bad boy. Investiram muito dinheiro, mas a coisa não andou, porque simplesmente não existe Estado ali. A desordem fundiária é imensa, não tem segurança jurídica, e a especulação imobiliária é barra pesada”, afirma a pesquisadora.

Um outro problema para o combate ao desmatamento na cidade é a limitação do poder de atuação da prefeitura. Mais de 70% da extensão do município está em área de proteção ambiental, e uma boa parte dessas áreas está sob controle de outras instâncias de governo. É o caso das terras indígenas, administradas pela Funai, e das unidades de proteção integral, submetidas ao governo federal. O mesmo acontece ainda com os assentamentos da reforma agrária cujas terras pertencem à União ou ao governo do estado. “É um problema histórico dessa região”, diz Neves. “O Pará é expropriado de seu próprio território.”

O estudo coordenado por Neves já sinalizava, em 2013, o enfraquecimento das políticas de fiscalização tocadas pelo poder público. Embora a administração municipal de São Félix do Xingu agora estivesse municiada de ferramentas para monitorar o desmatamento, havia pouca clareza sobre quais instâncias deveriam ir a campo coibir a derrubada da mata. A pesquisadora cita, no trabalho, uma apresentação feita naquele ano pela Secretaria Municipal de Meio Ambiente que terminava com a palavra “desmotivação”, sintetizando as mazelas que haviam sido apresentadas. Dentre elas, a ausência de investimentos em infraestrutura, a falta de incentivo técnico aos produtores e pouco diálogo sobre ações preventivas e repressivas.

Na avaliação de Neves, embora tenham tido impacto relevante sobre as taxas anuais de desmatamento em São Félix, as políticas tocadas pelo governo federal não cortaram as raízes do problema. O aumento das multas e dos embargos de terras por parte do Ibama atingiram principalmente os pequenos produtores, afirma a pesquisadora, e com o passar dos anos a fiscalização se afrouxou. “Os grandes desmatadores nunca participaram do Pacto Xingu.”

 

Com o crescimento expressivo do desmatamento entre agosto de 2018 e julho de 2019, São Félix do Xingu atingiu o patamar mais alto de desflorestamento desde 2008. É um movimento que tende a se agravar, a julgar pelos dados produzidos pelo Deter, o sistema de detecção em tempo real usado pelo Inpe para orientar ações de fiscalização. Desde janeiro deste ano, São Félix é a cidade brasileira que mais acumula avisos de áreas desmatadas. Foram 2,3 mil alertas até dezembro. Em segundo lugar vem Altamira, com 1,8 mil avisos.

Além de ter clima e solo propícios para a pecuária, São Félix é localizada numa região estratégica para a cadeia de produção de carne. Situada no Sul do Pará, não tão distante do eixo centro-sul do país, a cidade proporciona uma economia para empresas que queiram transportar carne para outras regiões do país, seja para a venda em mercados ou para a exportação. Grandes frigoríficos, como a Frigol, têm fábricas na cidade.

Não por acaso, o avanço da pecuária tem laços diretos com o avanço do desmatamento na região. Cada vez mais, os pastos caminham a Oeste sobre unidades de conservação como a Terra do Meio, que ainda conta com grande cobertura de floresta nativa. Historicamente, segundo Paulo Barreto, do Imazon, 80% das áreas desmatadas nessa fronteira amazônica vira capim – planta que impede a regeneração das árvores derrubadas. Junto com o capim vem o boi, seja para a pecuária intensiva ou para a simples ocupação de terras, já que o gado muitas vezes é usado para dar função a terrenos destinados à especulação imobiliária.

“Esse aumento recente das taxas de desmatamento da Amazônia tem se dado em grandes porções de terra. É muito caro fazer grandes desmatamentos, então, em geral, quem está por trás disso é gente capitalizada”, afirma Barreto. A descrição se aplica ao episódio da Fazenda Ouro Verde, que em três meses devastou 5,6 mil hectares de floresta na área de preservação Triunfo do Xingu. Como são pontos muito isolados, distante de centros urbanos, é necessária a construção de estradas e a contratação de muitos trabalhadores. “É um indicador de que as pessoas estão voltando a ficar confiantes de que podem fazer isso sem riscos.”

Em sua experiência de muitos anos trabalhando na região, o pecuarista Mauro Lúcio Costa corrobora a leitura de Barreto. “Antes, quando havia mais punições, os fazendeiros ficavam assombrados com a possibilidade de perder o gado ou sofrer embargo. Mas isso se perdeu com o tempo. Ninguém mais tem medo de embargo”, afirma Costa. “Hoje essas pessoas se ajudam, ensinam umas às outras como botar o terreno em nome de laranjas e a quem dar dinheiro para burlar a fiscalização. Estão fazendo uma universidade do desmatamento.”

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