Ilustração: Caio Borges
Sem perícia e sem conclusão
Oito meses depois do assassinato brutal da menina Sophia, de 2 anos, a investigação esbarra na incapacidade da polícia de acessar um celular bloqueado
Sophia Ocampo Jesus morreu de maneira brutal, em janeiro deste ano. Tinha 2 anos e 7 meses quando foi levada para uma Unidade de Pronto Atendimento, em Campo Grande, Mato Grosso do Sul. Havia hematomas em diversas partes de seu corpo. Os médicos, ao analisá-la, constataram que a criança estava morta havia pelo menos quatro horas. Não havia explicação plausível, que não um espancamento, para uma quantidade tão grande de lesões. Descobriu-se, mais tarde, que Sophia tinha sofrido um traumatismo grave na coluna cervical e seu hímen fora rompido. A mãe foi presa na UPA. O padrasto foi detido em flagrante logo depois, em casa.
O crime brutal aconteceu não por falta de avisos. O pai de Sophia, Jean Carlos Ocampo, tinha notado marcas de agressão na filha meses antes do assassinato. Procurou a Secretaria de Assistência Social, a Defensoria Pública e a Polícia Civil. Registrou dois boletins de ocorrência. Acionou o Conselho Tutelar. Nada foi feito. A criança, nesse período, foi levada doze vezes a uma UPA de Campo Grande, onde, apesar dos sinais de repetida violência – entre eles uma perna quebrada –, não foram incluídos possíveis maus-tratos em seu prontuário. Sophia morreu por uma série de omissões do Estado.
Stephanie de Jesus da Silva, a mãe, e Christian Campoçano Leitheim, o padrasto, estão presos preventivamente em penitenciárias diferentes. Ela é suspeita de omissão. Ele, de estupro de vulnerável. E ambos são suspeitos de homicídio qualificado por motivo fútil. As prisões são preventivas porque ainda não houve condenação na Justiça. As investigações estão em curso. Mas descobre-se agora que o poder público, que se mostrou incapaz de proteger Sophia, esbarrou até aqui em problemas básicos na tentativa de desvendar o caso.
O enrosco se deu em torno do celular de Leitheim, um modelo LG K52 que pode ser crucial para esclarecer o que aconteceu em 26 de janeiro, dia em que Sophia foi morta. O padrasto da criança entregou o aparelho à polícia no mesmo dia em que foi preso. O celular estava bloqueado, e Leitheim não forneceu a senha. Era o que se esperava: na condição de investigado, ele não tem obrigação de produzir provas contra si mesmo. No entanto, passados oito meses do crime, a Polícia Civil de Mato Grosso do Sul não apenas não conseguiu desbloquear o celular como, ao não encontrar soluções, descartou a hipótese de analisar o aparelho.
Um despacho assinado pelos peritos criminais Douglas Pires Ineia e Leonardo Gonçalves Cardoso no dia 28 de março, que só agora veio à tona, explica a incapacidade da polícia de periciar o celular. “A ferramenta forense Ufed não foi capaz de desbloquear o aparelho ou extrair os dados armazenados na memória interna do aparelho com bloqueio de senha ativo, uma vez que não possui suporte para o modelo [de celular] em análise”, diz o documento interno da polícia. Ufed é o nome de um software utilizado para extrair dados de aparelhos celulares.
Constatando essa dificuldade, a polícia recorreu a uma estratégia no mínimo amadora: tentou desbloquear o celular usando senhas aleatórias. Como, naturalmente, os policiais não foram capazes de acertar a senha dentre as milhares de combinações possíveis, a situação se complicou ainda mais. Dizem os peritos, naquele mesmo documento: “Mesmo com essas limitações iniciais, foram realizadas diversas tentativas de desbloqueio com senhas aleatórias, entretanto tornou-se inviável continuar, visto que o tempo solicitado pelo aparelho para aguardar entre uma tentativa e outra aumentou de maneira considerável.”
Ocampo, pai de Sophia, que tentou – em vão – impedir que algo grave acontecesse com sua filha, hoje só dorme com ajuda de remédios. Faz tratamento psiquiátrico e acompanha de perto as investigações, para tentar entender o que aconteceu naquele dia. Ao saber da dificuldade da polícia para periciar um celular, ficou incrédulo. “Minha filha foi assassinada após uma sucessão de omissões e negligências do Estado. Mesmo agora, depois da morte, ela continua sendo tratada sem nenhum respeito”, disse à piauí.
No dia 22 de agosto, a advogada Janice Andrade, que representa o pai de Sophia, enviou um ofício à 1ª Vara do Tribunal do Júri de Campo Grande pedindo que o celular de Christian Leitheim fosse enviado à Polícia Federal. Ela argumenta que a PF pode ter softwares mais avançados, capazes de acessar o conteúdo de um celular bloqueado. No dia 4 de setembro, o juiz Aluízio Pereira dos Santos rejeitou o pedido. “Já foi dito da impossibilidade de extração de dados etc. por estarem corrompidos e ademais não é da atribuição dos referidos peritos federais atuar em crimes estaduais”, escreveu o magistrado.
A piauí falou com Santos por telefone. O juiz, logo no início da conversa, defendeu o trabalho da Polícia Civil. “Ela fez as perícias que são possíveis de fazer”, afirmou. Em seguida, justificou o fato de não ter enviado o celular à PF: segundo ele, o crime não teve repercussão nacional e, portanto, não caberia tomar uma medida dessa importância. O magistrado disse, por fim, que o celular será periciado pela Polícia Civil do Paraná, e não mais de Mato Grosso do Sul. Essa informação não consta no processo judicial, e, ao menos até a semana passada, o celular ainda não tinha sido enviado para o Paraná. Sabe-se disso porque um relatório dos objetos apreendidos na investigação atestou, dias atrás, que o aparelho continuava armazenado no depósito do Fórum da 2ª Vara de Campo Grande.
“Saber o conteúdo do celular do padrasto é fundamental”, diz a advogada Janice Andrade, que representa Ocampo. Os exames feitos depois da morte de Sophia comprovaram a ruptura do hímen, mas não encontraram material genético do padrasto no corpo da criança. “Ou seja, a Sophia foi estuprada, mas ainda precisamos saber por quem e em qual situação. A pessoa usou os dedos ou preservativo? Foi alguém que sequer apareceu ainda no inquérito?”, questiona Andrade. Na noite anterior à morte de Sophia, sua mãe e padrasto receberam amigos em casa. A festa foi madrugada adentro, com consumo de bebidas alcoólicas e cocaína. As investigações ainda não apontaram relação entre a festa e a morte da criança.
Nessa segunda-feira (18), depois de a piauí ter entrado em contato com o Tribunal do Júri, o escritório de advocacia Buarque Gusmão enviou um ofício para o juiz Aluízio Santos informando a senha do celular de Leitheim, seu cliente. O advogado pediu que o material extraído do aparelho seja compartilhado com a defesa, para que o padrasto de Sophia “tenha conhecimento de tudo que venha a depor contra ele, ou não, homenageando o princípio do contraditório e ampla defesa.” A polícia, agora, com atraso de oito meses, poderá analisar o conteúdo do celular cedido voluntariamente pelo investigado.
Depois que Sophia morreu, a Secretaria de Saúde de Campo Grande abriu uma sindicância interna para avaliar possíveis omissões de sua equipe, já que a criança foi atendida na mesma UPA uma dezena de vezes sem que o caso fosse relatado à polícia. A piauí entrou em contato com a Secretaria para saber se a sindicância já tinha chegado a uma conclusão. A resposta veio por meio de nota: “A sindicância instaurada pela pasta não tem como objetivo a punição dos servidores da rede, e sim investigar os protocolos adotados pelas equipes com a finalidade de atualizá-los e melhorá-los. Desta forma, todos os resultados encontrados, que têm a finalidade administrativa, estão sendo estudados e os resultados foram encaminhados para os órgãos competentes.” Ainda não consta, nos autos do processo, o resultado da sindicância.
Questionada pela piauí sobre a dificuldade de periciar o celular de Leitheim e a demora que isso acarretou para as investigações, a Secretaria de Justiça e Segurança Pública de Mato Grosso do Sul não respondeu até o fechamento desta reportagem.
Stephanie e Leitheim, caso sejam considerados culpados pela Justiça, podem ser condenados a mais de 40 e 45 anos de prisão, respectivamente. Na semana passada, o pai de Sophia, Jean Carlos, e seu companheiro, Igor de Andrade Silva Trindade, fizeram uma live pelo Instagram para cobrar comprometimento das autoridades envolvidas no caso.
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