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Sem saber lidar com a epidemia global

Filme premiado em Tiradentes é tributo a vítimas da Aids — mas dialoga com momento atual

Eduardo Escorel | 02 fev 2022_06h00
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Longe de mim pretender avaliar a 25ª Mostra de Cinema de Tiradentes, realizada online, com programação gratuita, de 21 a 29 de janeiro. Para fazer isso teria sido necessário dispor do tempo para assistir senão a todos, ao menos a um conjunto maior dos filmes exibidos e ter podido acompanhar debates e algumas atividades promovidas.

A Mostra de Tiradentes é um evento singular em que a convivência dos participantes na pequena cidade histórica sempre foi fator decisivo para seu sucesso. Ainda assim, ter sido realizada mesmo sem participação presencial, além de uma medida prudente, foi um feito dos organizadores e de toda a equipe, em defesa de um cinema brasileiro “em transição”, entendido como sendo aquele que valoriza “filmes dirigidos por pessoas negras, trans e indígenas, a proliferação de coletivos criativos vindos de outras áreas artísticas para além do cinema, e a experimentação de formatos, linguagens e espaços de exibição”, conforme declara o texto de apresentação no site da Mostra.

Entre os poucos títulos a que pude assistir, destaco Os Primeiros Soldados (2021), contundente demonstração de talento do diretor Rodrigo de Oliveira, autor também do roteiro e montador. O filme, com duração de 1h47min, chegou a Tiradentes com fama de “obra-prima do cinema nacional” e “joia de empatia”, após ter estreado no 70º Festival Internacional de Cinema de Mannheim-Heidelberg, em novembro de 2021, onde recebeu os prêmios de Melhor Filme do Público e do Júri Jovem. Participou pouco depois, em Goa, do 52º Festival Internacional de Cinema da Índia, que homenageou a atriz Renata Carvalho com o Prêmio Especial do Júri, e foi exibido, em dezembro, na mostra “Première Brasil – NOVOS RUMOS” do 23º Festival do Rio, onde Renata Carvalho voltou a receber o Prêmio Especial do Júri.

Renata Carvalho em Cena de ‘Os Primeiros Soldados’ — Foto: Felipe Amarelo/Divulgação

Um dos méritos de Os Primeiros Soldados é resistir com brio à síndrome de envelhecimento precoce que acomete muitos filmes brasileiros concebidos e gravados, como é seu caso, antes de a pandemia de Covid-19 ser decretada, em março de 2020. Ao serem vistos só agora no país, em plena disseminação da variante Ômicron e com a média móvel de mortes e contaminados em alta, algumas dessas produções parecem ter perdido a razão de ser. Os Primeiros Soldados, pelo contrário, não corre esse risco – além de vigoroso, revela-se atualíssimo, mesmo tratando de personagens que, em 1983, no Espírito Santo, lidam com a primeira onda da epidemia global de HIV/Aids, então ainda pouco conhecida, e dizem que irão “morrer sabendo o máximo” que puderem sobre a doença. Guardadas as diferenças, não há como assistir ao filme sem pensar na tragédia humanitária causada pela Covid-19 que estamos vivendo.

Oliveira foi claro, nesse sentido, ao dizer no Festival da Índia que Os Primeiros Soldados “é um tributo aos meus ancestrais que pertenceram à comunidade LGBTQIA+ e que foram vítimas da primeira onda de Aids no Brasil […] O filme é uma tentativa de mostrar ao mundo as histórias não contadas do sofrimento e da discriminação de minorias sexuais no Brasil dos anos 1980. Este é o retrato de um passado distante, mas é também muito atual […] Se nós não documentarmos a história de nosso sofrimento, ninguém o fará”.

O enredo de Os Primeiros Soldados transcorre durante o período de um ano, dividido em três partes. A primeira e mais longa se passa durante o dia e a noite de Réveillon, em 31 de dezembro de 1982. Situado oito meses mais tarde, o segundo segmento é o de maior impacto. A terceira e mais curta das três divisões transcorre em 1º de janeiro de 1984.

Os cerca de 48’ iniciais são dedicados a apresentar os personagens e suas inter-relações, duração excessiva para cumprir a função básica de situar a trama, ao longo dos quais o filme e o elenco nem sempre parecem ter encontrado o tom adequado. É depois dessa apresentação que Os Primeiros Soldados decola, tornando-se perturbador e capaz de comover quando Suzano (Johnny Massaro), Rose (Renata Carvalho) e Humberto (Vitor Camilo) declaram estar juntos, “mas está todo mundo sozinho”. Diante da provável iminência da morte eles se dedicam a gravar em vídeo seu testemunho, que Suzano define como “a história de um homem obcecado por uma imagem de infância”.

Mas é Rose quem encara a câmera em uma dessas gravações e nos diz com firmeza: “Vocês acham que isso é uma coincidência? Iam inventar uma doença… Eu acho que eles inventaram, mas enfim. Iam inventar uma doença que só mata puta, veado e drogado, sem querer? Menino… Eles tentam nos matar desde que o mundo é mundo, é isso que eles fazem. E o que a gente faz é sobreviver sendo linda. E está tudo certo. Eu sei que vocês estão com medo. Eu também estou… Mas se for isso mesmo que vai matar a gente, pronto, matou, acabou! Daqui a pouco vem mais gente como a gente…”

A força dessas palavras vem do desespero que refletem. Da incompreensão que deixam transparecer.

Havia escrito até aqui quando recebi a notícia de que Os Primeiros Soldados fora premiado na Mostra de Tiradentes. Soube depois que recebeu o Troféu Carlos Reichenbach, dado ao melhor longa-metragem da Mostra Olhos Livres pelo Júri Jovem, formado por cinco estudantes universitários de cinema de diferentes estados do país. O prêmio me parece merecido, sem demérito para os demais concorrentes aos quais não assisti.

Assim, a 25ª Mostra de Cinema de Tiradentes chegou ao fim, tendo apresentado 169 filmes (64 longas, 3 médias e 102 curtas-metragens), oriundos de vinte estados brasileiros e do Distrito Federal. Palmas para a própria Mostra, portanto.

*

O programa #DomingoAoVivo do canal de YouTube 3 Em Cena recebeu domingo passado (30/1) Rodrigo de Oliveira, Johnny Massaro e Renata Carvalho. Lamento não ter podido participar da gravação, que está disponível em https://www.youtube.com/watch?v=oyrdbE4VGI0 .

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