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    Evelyn Jordão e a mãe, Vera, no Hospital das Clínicas - INTERVENÇÃO DE PAULA CARDOSO SOBRE FOTO DE MARCELO CHELLO

questões do envelhecimento

Sem saúde nem plano

Por que os planos de saúde privados se tornam inviáveis a partir dos 60 anos e como algumas operadoras conseguem cobrar menos

Josette Goulart | 16 ago 2019_08h54
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Às sete horas da manhã, os 10 graus marcados no termômetro de rua podiam ser sentidos como pelo menos cinco a menos para quem aguardava na fila a senha para fazer exame de sangue no Hospital das Clínicas, em São Paulo. Evelyn Jordão se protegia com uns pompons na orelha. Vera Jordão, sua mãe, se contentava com um casaco quente. Há quatro anos, desde que desistiu de ter plano de saúde por não poder mais pagar mensalidade, Vera enfrenta as filas. “Quem consegue pagar mil reais num plano de saúde?”, diz Evelyn sobre a situação de sua mãe, com 71 anos. “Agora estamos aqui, chegamos às seis e não vamos sair antes das onze. E pior: na semana que vem tem outro exame e ela terá que voltar sozinha porque é muito difícil conseguir marcar os exames todos no mesmo dia.”

Elas moram em Barueri, cidade da Grande São Paulo. Evelyn conseguiu emprego há um ano e tem o plano de saúde da empresa. Enquanto discorria sobre as diferenças gritantes entre a fila de um laboratório privado e os laboratórios do Hospital das Clínicas, Vera ouvia atentamente. De repente diz, tímida: mas eu não estou pagando pelos remédios. E no caso, remédios que lhe custariam 400 mil reais, pois fazem parte de um projeto experimental para tratamento de hepatite.

Na fila do Hospital das Clínicas, a vida é assim: os idosos tentam olhar para as vantagens do atendimento gratuito apesar das filas a céu aberto, sem cadeiras para sentar. Fica mais fácil de se conformar quando é um dia sem chuva. Ivone Souza, 69 anos, do outro lado da rua e também na fila para pegar senha do exame de sangue, completa: “Minha amiga disse que o plano de saúde tem fila igual, se não for pior.” Ela abandonou a Amil há alguns anos, quando se aposentou. 

Segundo o Ministério da Saúde, quase 80% dos idosos brasileiros não têm plano de saúde privado e se tratam no SUS. Vera e Ivone estão nesse grupo. Foram “expulsas” dos planos pelos preços altos. As grandes operadoras sequer aceitam planos individuais e só negociam com empresas. É a lei do mercado: quanto mais velho, mais o paciente precisa usar os serviços médicos e, portanto, paga mais por isso. Segundo dados da Agência Nacional de Saúde (ANS), dos 47 milhões de brasileiros que têm plano de saúde privado, 6,5 milhões têm acima de 60 anos. Desses, 17,7% recorrem aos planos de autogestão, como os que atendem funcionários de estatais (estão nesse grupo os planos do Banco do Brasil e da Petrobras).

A Unidas, que reúne os planos de autogestão, afirma que nesse tipo de plano os valores costumam ser mais baixos porque todos pagam a mesma coisa. Um bebê paga o mesmo que o idoso, dividindo o custo ao longo do tempo. Isso só é possível porque o paciente se mantém por décadas no mesmo plano. Para a outra parte dos idosos, os preços são altos, os planos exigem carência de dois anos para iniciar alguns atendimentos, como de pressão alta ou diabetes, para citar os mais comuns. Isso sem contar que muitos idosos são rejeitados por serem considerados pelos planos “doentes demais”. Segundo dados da Unidas, um idoso custa quinze vezes mais para um plano de saúde do que uma pessoa de 20, 30 anos.

Quando o cidadão completa 60 anos ainda vem mais um item da lista: reajustes que podem inviabilizar a permanência no plano. E a Justiça, já em última instância, considerou legal o reajuste em planos individuais desde que siga as regras da ANS.  “Se estiver em contrato, pode. Não é considerado abusivo”, afirma o advogado Everaldo Restanho, que atua no setor.

A regra da ANS diz que, quando o cliente chega aos 59 anos, o reajuste na mudança de faixa etária não pode ser superior a seis vezes o valor da primeira faixa (de 0 a 18 anos). Ou seja, se o plano cobra 300 reais para o plano de um bebê, quando ele chegar a 59 o plano não pode cobrar mais do que 1 800 reais. Mas este valor não considera os reajustes anuais. 

Mesmo quem tem dinheiro para pagar um plano precisa se adaptar, porque os reajustes anuais permitidos pela ANS sobem muito acima da inflação e consomem a aposentadoria ao longo dos anos. 

O sociólogo José Luiz Nadai, 67 anos, é um exemplo. Toda a aposentadoria de sua mulher e metade da dele são gastos para pagar o plano de saúde da SulAmérica. Eles fazem questão do plano, que custa aos dois 5 900 reais por mês, porque inclui o Hospital do Coração. Mas, só conseguem pagar porque continuam trabalhando. Nadai administra um condomínio em São Sebastião, litoral de São Paulo.

Há três anos, no entanto, ele tentou mudar de operadora, quando a conta ficou 30% mais cara. Além do reajuste anual, houve o reajuste da mudança de idade de sua esposa. 

Na Bradesco Seguros encontraram um preço melhor. Foram aceitos, mas quando iam assinar o contrato veio o susto: a carência. “Era carência para problema de coração, de respiração, de rins. Sem brincadeira, só sobrava a ortopedia. E se a gente tivesse um AVC nestes dois anos?”, se pergunta Nadai. Resultado: rebaixaram o tipo de plano que tinham na SulAmérica.

A situação para quem paga um plano de saúde particular se deteriora ao longo dos anos porque os reajustes promovidos com autorização da Agência Nacional da Saúde sempre são mais elevados do que os da aposentadoria do INSS. No ano passado, chegou a ser cinco vezes maior. A piauí fez as contas. Nos últimos dez anos, os reajustes dos planos de saúde (sem mudança de faixa etária) ficaram por volta de 140%. O reajuste do INSS foi de 68%. Supondo que um aposentado gastasse mil reais em 2010 e tivesse um salário de 3 mil reais, o seu salário estaria hoje em torno de 5 mil reais e o custo do plano seria de 2,4 mil reais. Seu salário real, descontando os gastos com o plano, teria sido de apenas 32,5%.  E claro, sem contar todo o resto das contas, água, luz, telefone, condomínio, que também são reajustadas. 

“A reforma da Previdência vai reduzir ainda mais a condição de pagamento dos idosos”, diz o presidente da Unidas, Anderson Mendes, referindo-se às mudanças nas regras que preveem tempo maior de serviço e idade mínima, sem garantir pagamento integral do teto da aposentadoria.

A professora da UFRJ Ligia Bahia, especialista em saúde coletiva, lembra que a maioria dos idosos não tem outra fonte de renda, então chega um momento que praticamente tudo o que a pessoa recebe de aposentadoria gasta no plano de saúde. Em vez de viajar ou pagar um sorvete na praça ou ir ao cinema, paga o plano de saúde. “E os planos fazem de tudo para expulsar os idosos”, diz Ligia. 

A ANS defende as operadoras e diz que o IPCA é insuficiente para medir a variação das despesas ocorridas na saúde suplementar. Em nota, afirma que a regulação do setor de planos de saúde proíbe as operadoras de desestimular, impedir ou dificultar o ingresso de beneficiário em razão da idade, condição de saúde ou por deficiência. “Os consumidores que tiverem dificuldades de acesso, outras reclamações ou quaisquer dúvidas sobre planos de saúde podem entrar em contato com a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) por meio dos canais de atendimento da reguladora.” 

Algumas operadoras conseguem oferecer a idosos um atendimento de qualidade, com preços razoáveis. Ignez Almeida, 80 anos, não poderia estar mais satisfeita com a Prevent Senior. Ela paga 700 reais por mês, metade do que pagava na Unimed e diz que nunca foi tão bem atendida. Fila? Tem, mas não leva nem meia hora.

Qual o segredo? Um deles é que a operadora, com 420 mil clientes, tem uma rede própria de 8 hospitais, 4 prontos-socorros e mais 32 núcleos de atendimento, entre clínicas especializadas e laboratórios para exames médicos no Estado de São Paulo. A ideia é evitar que o paciente tenha que passar por diferentes tipos de médicos. Assim, o geriatra ou o ginecologista concentram os exames e encaminham aos especialistas quando necessário. Por outro lado, isso dificulta a locomoção dos idosos, que precisam se deslocar pela cidade toda, já que as unidades são especializadas.

Um executivo do setor financeiro que tem na sua carteira de clientes as operadoras de saúde explica um ponto básico do funcionamento do negócio: os hospitais ganham mais do plano de saúde quanto mais cirurgia fizerem, então são mais propensos a internar. O hospital da operadora procura economizar ao máximo, para fazer a menor quantidade possível de cirurgias. Ou seja, o setor lida com um tremendo conflito de interesses. O hospital que não pertence à operadora mas atende o seu plano de saúde ganha mais quanto mais cirurgias e internações fizer. Já o hospital que é controlado pela operadora ganha mais quanto menos cirurgias fizer pois está buscando otimizar o resultado da operadora. Significa que não são responsáveis com a saúde do cliente? “Não, necessariamente”, diz o executivo, “apenas enxergam a saúde de forma diferente.” 

Mendes, presidente da Unidas, diz que, quanto mais serviço um hospital presta a uma operadora, mais ganha. Por isso estão surgindo novos modelos de pagamento em que as operadoras fecham um pacote com os hospitais, fixando um valor de pagamentos. E claro, há o modelo verticalizado, em que a própria operadora é dona de uma rede própria de hospitais e clínicas, mas que é difícil manter. Segundo Mendes, o custo fixo de um hospital é muito elevado e portanto precisa de um fluxo de pacientes muito grande para compensar. 

Em um modelo ou no outro, as reclamações mais frequentes dos usuários de planos particulares no Reclame Aqui, na Justiça ou na ANS se devem a mau atendimento, dificuldade de marcar exames ou a negativa do plano de pagar determinado tratamento. 

Ignez Almeida tem artrose por ter jogado muito tênis quando era mais jovem e por isso convive com a dor. Quando chegou à Prevent Senior, os médicos fizeram uma análise e decidiram que seria melhor não operar, pois teriam que colocar uma prótese no ombro – segundo explicaram a ela, a prótese de ombro ainda não tem a mesma eficiência comprovada como as próteses de joelho, e ela poderia ficar sem mobilidade no ombro. Assim, recomendaram fisioterapia, que ela faz toda semana com tudo pago pelo plano. 

Há dois anos, foi detectada uma alteração no pâncreas, também tratada sem cirurgia. O médico optou por um acompanhamento anual. “O médico deu a requisição do exame na consulta para dali um ano, já ficou marcado o exame e a consulta. Voltei na consulta com o mesmo médico”, conta Almeida. “Eles te dão muita segurança.”

Ignez Almeida, de 80 anos, paga mensalidade de 700 reais – Foto de Marcelo Chello

 

Com isso, os planos de saúde na faixa etária de Almeida acabam saindo mais baratos na Prevent. Em alguns casos, um quinto do preço dos demais. Procurada, a Prevent, um dos poucos casos no Brasil de operadora focada nos clientes idosos, não prestou qualquer informação para esta reportagem, nem mesmo com as informações básicas sobre a empresa. De início, a assessoria de imprensa afirmou que o CEO da empresa estava em viagem; posteriormente, que sua agenda estava indisponível. A SulAmérica Seguros e a Bradesco Seguros informaram que atendem apenas planos empresariais e seguem as regras da ANS para reajustes. 

Enquanto isso, na fila do Hospital das Clínicas, pergunto a Sebastiana Ferreira da Silva se ela não pensa em fazer um plano privado dos mais baratos. Ela diz que não quer, que não tem 700 reais para pagar por mês. O máximo que se sujeitou a pagar foi por um plano de saúde com mensalidade de 25 reais, mas não usa porque é longe demais da sua casa. Mora em Diadema, Grande São Paulo, e está na fila acompanhando sua nora: “Esta sim fica doente sempre.” Silva ajuda o filho a cuidar de um boteco na periferia de Diadema e nos fins de semana vai para a casa do namorado, de 78 anos, em Santo André. Diz que tem a saúde impecável e que pouco vai ao médico: “Sou a paciente dos sonhos dos planos de saúde.”

 

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