Ilustração: Carvall
Sem teto, sem chão
Zerar o déficit habitacional é desafio central no terceiro mandato presidencial de Lula
Os números não deixam dúvidas: ter um teto é o sonho de 87% dos brasileiros, segundo uma pesquisa Datafolha divulgada em fevereiro deste ano. A aspiração foi considerada mais importante do que alcançar a estabilidade financeira, contar com um plano de saúde ou mesmo gerar filhos. Só empata com ela o anseio de ter uma profissão. Segundo dados divulgados em 2021 pela Fundação João Pinheiro, referência nacional em relação à metodologia para esse tipo de levantamento, o déficit habitacional em 2019 no país era de 5.876.698 unidades, distribuídas em três categorias: habitação precária (1.482.585), coabitação (1.358.374) e ônus excessivo com aluguel (3.035.739). São quase 6 milhões de famílias que não têm onde viver, moram de favor ou depositam boa parte dos seus ganhos em troca de alguns cômodos que lhes garanta o mínimo de dignidade.
Alguma dúvida de que se esteja falando de um dos mais impressionantes desafios que se coloca para o presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, e todos os chefes dos executivos estaduais nos próximos quatro anos?
Diante desse cenário, é indispensável a elaboração de um marco regulatório robusto, que envolva grande parcela da população na discussão da busca de soluções. O principal documento regulatório da política urbana em termos nacionais é o Estatuto da Cidade (2001), que define parâmetros, instrumentos e exigências mínimas nesse campo, atribuição constitucional dos municípios. Em relação à política de moradia, o principal referencial legal é a lei 11.124/2005, que estabelece as diretrizes gerais para a implantação de Habitação de Interesse Social – HIS (unidade habitacional tendo no máximo um sanitário e uma vaga de garagem, destinada ao atendimento de famílias de baixa renda), criando um fundo específico para o seu financiamento e mecanismos de governança.
Ainda em relação à política específica de moradia também é preciso mencionar as leis que criaram o Programa Casa Verde Amarela (2021) e os dispositivos restantes do Programa Minha Casa Minha Vida (2009). A nova lei da regularização fundiária (2017) é, igualmente, um importante marco regulatório, embora alguns dos seus instrumentos dependam de regulamentação a nível municipal, como o Plano Diretor, a Lei de Uso e Ocupação do Solo, a legislação edilícia e outros instrumentos. Adicionalmente, em algumas regiões metropolitanas vigora também o Plano de Desenvolvimento Urbano Integrado, criado pelo Estatuto da Metrópole (2015).
Para estancar a sangria da falta de moradia no país, não existe “bala de prata” nem “canetada” que solucione de uma vez por todas a equação. É fundamental atentar para alguns pontos cruciais que necessitam de reavaliação no conjunto de propostas oferecidas.
Precisamos ter uma compreensão mais ampla da concepção moderna de direito à moradia e direito à cidade como algo que ultrapasse a mera infraestrutura primária e as condições da habitação.
Apesar da existência de várias políticas setoriais, inclusive com bons resultados, não há mecanismo eficiente de articulação entre elas e, sobretudo, entre aquelas de infraestrutura primária e as políticas urbanas em si. Essa ausência reflete-se nas três esferas de governo, assim como nas relações interfederativas, gerando superposição ou mesmo conflito de diretrizes, uso pouco eficaz de recursos e de gestão que poderiam ser compartilhados. Falta sincronia entre ações que poderiam ter melhor sinergia.
A concepção do grande conjunto habitacional, distante das centralidades existentes e com limitações para criar a sua própria, está definitivamente ultrapassada. É necessário que os programas de regularização e reurbanização não apenas levem em conta o espaço para usos terciários – com prioridade para os negócios lá estabelecidos antes da regularização/ reurbanização – como também permitam que os novos empreendimentos possam ter condições de induzir a geração de emprego e de renda endógenos.
É incontornável avançar em direção a um equilíbrio melhor entre as dimensões do socialmente justo e do economicamente viável, sem deixar de lado o ecologicamente correto, essencial às questões da política urbana. É preciso considerar ainda a plena utilização dos recursos disponíveis aos municípios por meio da Outorga Onerosa do Direito de Construir e da venda de Certificados de Potencial Adicional de Construção, gerados por Operações Urbanas Consorciadas.
Em especial, é necessário, de algum modo, estabelecer uma métrica suficiente para equilibrar o atendimento ao déficit nas áreas metropolitanas e cidades de maior porte, nas quais os problemas resultantes do adensamento periférico e os custos de produção são sempre muito diversos.
Não se pode almejar resolver o grave problema da moradia no Brasil sem considerar que a saída passa, inevitavelmente, pela regularização e a reurbanização, com a qualificação dos técnicos municipais; pela assistência técnica a prefeituras e entidades da sociedade civil na área urbanística, legal, social e econômica; pela priorização de programas de alocação de recursos e financiamento para municípios que atualizem seu marco regulatório quanto à regularização fundiária e outras fontes de recursos; e pela atenção absoluta para a realocação de famílias em áreas de risco ou a eliminação de riscos com reurbanização.
Fora isso, é indispensável oferecer estímulos à adoção, pelos municípios, de instrumentos de controle da função social da propriedade e de transferência do direito de construir para fins habitacionais. Essa medida tem importância fundamental, uma vez que coloca pressão negativa sobre o valor da terra infraestruturada, estimulando sua venda e a produção de novas unidades habitacionais e edifícios comerciais em áreas melhor localizadas.
Existe um significativo volume de imóveis bem localizados, inclusive em áreas centrais, cuja alteração de padrões de uso, desindustrialização, mudança das centralidades ou outros elementos acabaram fazendo com que se tornassem inutilizados. Em muitos casos, o reaproveitamento desses imóveis, mesmo quando não destinados originalmente à moradia, representa uma alternativa de custo mais baixo do que sua demolição e reconstrução.
Outras providências importantes são a concessão de coeficientes adicionais a projetos que contemplem a demanda por Habitação de Interesse Social (HIS); a possibilidade de pagamento de outorga por meio da produção de unidades de HIS no mesmo território; o estímulo ao uso misto e à mescla de classes sociais em um mesmo empreendimento, bem como o estímulo à produção em áreas de centralidade infraestruturada pela elevação de coeficientes de aproveitamento de edificações que contemplem os públicos nas faixas de renda em que se concentra o déficit local. Além disso, a ampliação da oferta levaria à tendência declinante do déficit gerado pelo ônus excessivo no pagamento do aluguel.
Em muitos casos, o atendimento ao direito à moradia em áreas infraestruturadas e com oferta de empregos só será possível por meio de programas de locação. Essa também é praticamente a única maneira possível de atender, por exemplo, à crescente população com idade superior a 60 anos, para a qual os cálculos atuariais inviabilizariam os financiamentos habitacionais. É, ainda, um instrumento relevante no sentido de poder atender a cada família nas suas necessidades específicas, que variam ao longo da vida. Acrescente-se que a adoção em escala mais ampla da locação permitiria maior accountability no que se refere aos subsídios.
Zerar o déficit habitacional no país é urgente, urgentíssimo – e deve ser uma política pública prioritária – e não nos esqueçamos de comprometer nesse processo também os prefeitos, ora em meio de mandato. Oferecer moradia digna abre a porta para outros direitos sociais previstos na Carta Magna brasileira – fazendo valer, de fato, a classificação que a tornou conhecida: “Constituição Cidadã.”
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