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    Em uma audiência no Senado, em maio, Soraya Thronicke exibiu vapes de todo tipo para argumentar que a proibição do produto não funciona na prática. Cinco dias depois, embarcou para a Itália numa viagem custeada pela Philip Morris, gigante do tabaco Foto: Waldemir Barreto/Agência Senado

almanaque do lobby

Uma senadora nas asas do vape

Autora do projeto de lei que legaliza o cigarro eletrônico, Soraya Thronicke viajou à Itália com despesas pagas por empresa de tabaco

Camille Lichotti, de Brasília | 12 dez 2024_08h30
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Quando fala sobre os cigarros eletrônicos, a senadora Soraya Thronicke (Podemos-MS) costuma contar uma história que lhe ocorreu em maio. Estava em Bolonha, na Itália, fazendo um tour pelas instalações da Philip Morris, a gigante do tabaco. A certa altura da visita, perguntou para o seu guia: onde fica o setor que fabrica os cigarros tradicionais de tabaco? O funcionário não soube responder. Desinteressado, disse apenas: “Mas isso é passado.”

Thronicke acha que o episódio é uma ilustração adequada sobre o caráter visionário e inovador dos cigarros eletrônicos: eles são o futuro. O futuro do emprego, o futuro dos investimentos e, acredita ela, até o futuro de uma população de fumantes mais saudável. A senadora concorda com a maior bandeira da propaganda dos fabricantes: que os cigarros eletrônicos – também chamados de vaporizadores, ou apenas vapes – são uma alternativa menos prejudicial ao organismo do que os cigarros tradicionais. Por isso apresentou no ano passado um projeto de lei que regulamenta os vapes, atualmente proibidos no Brasil.

A senadora, porém, não costuma divulgar um outro aspecto da história: sua viagem a Bolonha foi toda custeada pela Philip Morris, empresa que tem interesse na aprovação do projeto de lei, conforme revela uma reportagem publicada na edição deste mês da piauí. Thronicke visitou a fábrica no dia 29 de maio deste ano, acompanhada por dois senadores do PSD, Sérgio Petecão e Irajá. No gigantesco complexo da empresa, o grupo conheceu todas as etapas da produção do cigarro eletrônico, da trituração das folhas de tabaco – importadas do Sul do Brasil – ao empacotamento nas caixinhas da Philip Morris. Thronicke diz ter ficado impressionada com o que viu. “Não se investe mais em cigarro comum. Só países de Terceiro Mundo, subdesenvolvidos, incluindo o Brasil”, comentou mais tarde.

A viagem é tratada com enorme discrição. A piauí perguntou à Philip Morris sobre o patrocínio da visita, mas a empresa, em nota, limitou-se a dizer que “a viagem foi organizada pela Câmara de Comércio Italiana de São Paulo (Italcam)”. O vice-diretor geral da Italcam, Alfredo Pretto, disse que não comentaria o patrocínio, por se tratar de “informações organizativas internas”, e que o responsável pela visita foi o ex-senador paraibano Cássio Cunha Lima. Procurado, Cunha Linha, dono de uma consultoria que faz lobby para a Philip Morris em Brasília, não quis falar sobre o assunto devido a “restrições contratuais”. Recomendou à piauí que procurasse a Philip Morris – fechando, assim, o círculo do silêncio.

O cigarro eletrônico está proibido no Brasil desde 2009, depois que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) o considerou um produto altamente nocivo à saúde pública e que causa dependência. Desde então, numerosos estudos científicos e fatos médicos vieram corroborar essa avaliação. A indústria tabagista, porém, continua a propalar as vantagens dos vapes e não tem medido esforços para convencer políticos brasileiros.

Num primeiro momento, as empresas de cigarro apostaram as fichas numa possível mudança de entendimento da Anvisa. As discussões técnicas tramitaram na agência durante anos. Em 2023, quando ficou claro que a proibição seria mantida (o que de fato aconteceu, este ano), a indústria do tabaco começou a se mexer para o que chamava internamente de “solução legislativa”. Ou seja: virou seus canhões para o Congresso. Foi quando as fabricantes bateram na porta de Soraya Thronicke.

A senadora agiu rápido: em setembro de 2023, convocou uma audiência pública para discutir o cigarro eletrônico. Assim que a audiência acabou, ainda no corredor do plenário, ela anunciou à imprensa que faria um projeto de lei propondo a legalização do produto. A Associação Brasileira da Indústria do Fumo (Abifumo), que congrega as gigantes do setor em atuação no Brasil – Philip Morris, BAT e, até maio deste ano, Japan Tobacco International –, logo enviou ao gabinete da senadora exemplos de regulamentação em diferentes países, para embasar seu projeto. Em outubro de 2023, a proposta já estava pronta e publicada no sistema do Senado. Atualmente, aguarda votação pela Comissão de Assuntos Econômicos.

Thronicke conta que decidiu propor a lei por causa da derrota na Anvisa. “Nós conversamos antes de eu entrar com esse projeto”, diz ela. “Como eles só se furtavam, só proibiam, nós tomamos uma atitude.” A senadora repete, um por um, os argumentos da indústria do tabaco. Diz que o setor está entregue ao contrabando, que é impossível saber a procedência das substâncias e que só a legalização pode garantir a “qualidade” do vape. Indagada sobre por que Thronicke omitiu o patrocínio da Philip Morris à viagem a Bolonha, sua assessoria disse que, na sua visão, basta informar que a visita ocorreu a convite da câmara de comércio.

O lobby, porém, não se restringe ao Congresso. A indústria tabagista vem emplacando seus argumentos na imprensa e até no Ministério da Fazenda, que pode se beneficiar com a arrecadação de impostos caso o vape seja legalizado. Assinantes da piauí podem ler aqui a reportagem na íntegra.

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