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    Gabi Amarantos em cena em Serial Kelly - Foto: Divulgação

questões cinematográficas

Sexta-feira deprimente

Derrota da seleção, filme fraco e indefinição sobre o futuro do cinema brasileiro são ingredientes que estragam o dia de qualquer um

Eduardo Escorel | 07 dez 2022_08h00
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Ter assistido a Serial Kelly, de René Guerra, na sexta-feira passada (2/12), logo depois de Camarões ganhar do Brasil, pode ter influenciado minha reação desfavorável ao filme, apresentado no release da assessoria de imprensa como uma comédia politicamente incorreta e eletrizante. “Politicamente incorreto”, Serial Kelly sem dúvida nenhuma é. Quanto a ser uma comédia eletrizante, porém, confesso não ter percebido, talvez por efeito do um a zero.

Mais trágico do que cômico, a meu ver, Serial Kelly sofre de certas inconsistências narrativas originadas, ao que parece, na inexperiência de Guerra, diretor estreante em longa-metragem, ou talvez no roteiro que ele escreveu em parceria com Marcelo Caetano. Qual seria o motivo ou benefício, por exemplo, de dividir o filme em três partes, nomeadas “Céu”, “Purgatório” e “Inferno”? Ademais, o elenco, em parte claudicante ou mal dirigido, também prejudica Serial Kelly, excetuada a atuação da cantora Gaby Amarantos como Kelly, a protagonista – presença dominante que sustenta o relato junto com as locações em Alagoas e as contribuições criativas da fotografia (Pedro Urano), direção de arte (Karen Araujo) e figurinos (Kika Lopes).

A letra da música que Kelly canta na sequência de abertura e próximo ao final – Me Usa, de Jotinha e Gino Liver – revela que a dublê de cantora de forró e serial killer, cindida entre submissão e revolta, parece fadada a um desfecho trágico: “Momentos de amor quero com você/ Momentos eternos pra nunca esquecer/ Se você me ama, me leva pra cama/ Acende essa chama de amor e querer/ Só nós dois em nosso ninho/ Testemunhas para quê?/ Nossos corpos coladinhos/ Suadinhos de prazer/ Amor, me leva, faz de mim o que quiser/ Me usa, me abusa, pois o meu maior prazer/É ser tua mulher.”

Ao interpretar a canção sussurrando, Amarantos dificulta a compreensão da letra. Prejudica, desse modo, a possibilidade de o espectador entender melhor as motivações contraditórias de Kelly, inclusive suas várias irrupções de violência extremada ao longo do filme. Ela parece se considerar uma justiceira feminista com o direito de cometer atos brutais e capacidade, ao mesmo tempo, de se reconciliar com Tempero (Igor de Araújo), deixando-se trair por ele. No final, ela apela para a solidariedade da delegada que a confronta apontando uma arma: “Doutora, sabia que tem um lugar guardadinho no inferno para mulher que não ajuda a outra?” A pergunta fica no ar quando Serial Kelly termina com Kelly parecendo ter sido morta, mas “ainda com sinais vitais”.

Em entrevista ao canal Cinema&Companhia do portal ArteCult, publicada em 29 de novembro, Guerra situa Serial Kelly no “limiar entre a tragédia e a comédia”, o que é bem diferente de pretender que seja uma “comédia… eletrizante”. Para ele, Kelly “ama comer, transar e matar. Mas nem tudo está na superfície”.

Ao fazer a pesquisa no interior de Alagoas para escrever o argumento, Guerra encontrou dois sertões diferentes. “Em 2010, era um sertão extremamente voltado para o consumo e na segunda vez já estava completamente… era uma guerra santa. Era uma antevisão do que viria a acontecer com este país.” Serial Kelly, para ele, “traz uma leveza para um tipo de discussão. Eu acho que a mensagem do filme é muito mais simples… Eu só quero contar uma história. Uma história que possa representar esse espelho de quem nós somos…” (Entrevista completa disponível aqui).

Lançado em 24 de novembro, em 25 cinemas de diversas cidades Brasil afora, após os primeiros e decisivos quatro dias em exibição, Serial Killer apareceu em 20º lugar na tabela do portal Filme B de maiores rendas do chamado fim de semana de 24 a 27/11.

Pantera Negra – Wakanda Para Sempre, produzido pelos Estúdios Marvel por 250 milhões de dólares e distribuído aqui pela Disney Brasil, na terceira semana em cartaz, obteve a maior renda no mesmo período em 747 salas, com média de público por cinema de 588 espectadores. Enquanto isso, a média de público de Serial Killer foi de 37 espectadores por sala. Por outro lado, Pantera Negra já acumulou, no Brasil, público superior a 4,8 milhões de pessoas, e rendeu mais de 700 milhões de dólares no mercado mundial – números que expressam de modo eloquente o impasse econômico e comercial do cinema brasileiro, de cuja superação depende a possibilidade de a atividade se tornar autossustentável no país.

Conforme é notório e já escrevi aqui algumas vezes, nosso mercado exibidor está voltado para atender as grandes distribuidoras estrangeiras e seus blockbusters, tornando o filme nacional de qualidade um produto bizarro, incômodo, inadequado para o mercado interno e com pouco acesso ao mercado externo, lançado aqui em condições e datas inadequadas, como durante a Copa do Mundo.

Na mesma sexta-feira em que o Brasil perdeu de Camarões (2/12), outro fato pouco animador foi o artigo “O cinema e o futuro do Brasil”, de Juca Ferreira, publicado no Segundo Caderno de O Globo. Ex-ministro de Estado da Cultura, ex-secretário de Cultura do Município de São Paulo e ex-presidente da Fundação Municipal de Cultura de Belo Horizonte, Ferreira integra a equipe de transição do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva na área da cultura. Segundo o ex-ministro, reconstruir o que foi destruído seria a principal missão do ministério a ser recriado, uma vez que o cinema e o audiovisual brasileiros teriam vivido um período áureo durante os governos Lula e Dilma Rousseff, de 2003 a agosto de 2016.

Há, sem dúvida, uma grandiosa obra de reconstrução a ser feita no setor cultural do governo federal. Mas, rearrumar a casa é muito pouco e não parece ser o mais importante, nem a prioridade, neste momento. Mesmo se o rearranjo for bem-sucedido, resultará decepcionante se o novo governo não tiver, desde já, o propósito estratégico de lidar com a crise estrutural histórica do nosso cinema. Para isso, é necessário, em primeiro lugar, ter visão clara dos impasses econômicos e políticos que impedem a atividade cinematográfica no país de se tornar mais autônoma em relação ao Estado. E, de imediato, ter como objetivo enfrentar esses dilemas.

P.S. Na segunda-feira (5/12), os quatro gols feitos no primeiro tempo do jogo contra a Coreia do Sul foram um alento.

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Destaque (XX): “Portanto, se a maioria dos espectadores é iludida, poucos sabem disso e muitos preferem não saber e continuar confundindo, como dizia Barthes, realidade e representação… Como não gostar de ser iludido? O cinema joga com o falso para alcançar o verdadeiro.” Jean-Louis Comolli, Une certaine tendance du cinéma documentaire. Lagrasse, Éditions Verdier, 2021, p.9.

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