Excursões no cemitério da Consolação reúne curiosos pela história da cidade e arte tumular Divulgação
Só não vai quem já morreu
Arte, história e muitas baratas nos passeios noturnos em cemitérios guiados por um compositor de samba
Com um megafone, o anfitrião da noite tentava organizar o público que se juntava em frente à capela do Cemitério da Consolação, no Centro de São Paulo, por volta das 19h30 de uma sexta-feira abafada de maio. Um dos primeiros avisos era para que os convidados tentassem manter a calma diante da presença incontornável de baratas durante o trajeto que se iniciaria em breve – no escuro e sobre o calçamento irregular, qualquer movimento mais brusco poderia causar um acidente, até mesmo uma queda dentro de um dos muitos jazigos abertos ou com tampa quebrada.
Em torno de 120 pessoas, entre grupos de amigos, casais e até famílias com crianças, estavam reunidas naquela noite para um passeio liderado por Thiago de Souza, 45 anos, advogado de formação, sambista, roteirista e idealizador do projeto “O Que Te Assombra”, que divulga a cultura cemiterial e histórias que envolvem os mistérios do além. O itinerário específico daquela noite, chamado “Consolação e suas Vozes”, apresentava relatos e interpretações de Thiago sobre a origem do cemitério e sua relação com a formação de São Paulo, mortos célebres sepultados no local, milagreiros que atraem devotos e, claro, pitadas de assombração, embora ele se defina como uma pessoa cética. “Não acredito em quase nada, mas de vez em quando o ‘quase’ me prega umas peças”, observa.
As inscrições para a atividade naquele e em outros cemitérios da Capital e do interior paulista promovidos por Thiago, divulgados mensalmente no Instagram do projeto, costumam esgotar em pouco tempo – as agendas no Cemitério da Consolação encerram em menos de 15 minutos. Os eventos são sempre gratuitos, mas desde meados de maio ele sugeria aos participantes uma doação às vítimas da tragédia das chuvas no Rio Grande do Sul. Naquela sexta-feira, porém, Thiago e a pequena equipe que o auxiliava – a historiadora Viviane Comunale e o turismólogo Augusto Azanha, de uma agência parceira – se surpreenderam com o afluxo de pessoas atraídas por uma breve menção à caminhada no telejornal SP1, da TV Globo. Todos foram acomodados com serenidade.
Um casal de namorados – ele com uma camiseta do filme O Exorcista, ela com uma estampa da banda Iron Maiden e maquiagem gótica – fazia parte do público atraído pela tevê. “Minha mãe viu e me ligou para avisar”, disse Lua Capellari, 20 anos, estudante de artes visuais. “Ela sabe que eu tenho um gosto meio mórbido, faço umas artes sangrentas.” O namorado dela, o produtor de eventos Pedro Luiz Pereira Junior, 32 anos, também é um entusiasta de cemitérios, embora nunca tivesse entrado no da Consolação. “Sempre passei em frente, mas nunca tinha parado para entrar.”
De fato, passando pela Rua da Consolação – onde se localiza a entrada principal, um pórtico projetado pelo arquiteto Ramos de Azevedo –, pouco se vê atrás dos muros altos e descascados da necrópole. No meio do caminho entre a Praça da República e a Avenida Paulista, com fundos para o bairro de Higienópolis, o Cemitério da Consolação é testemunha da época em que aquela região era considerada periférica, no sentido espacial do termo. Hoje abrigo eterno de alguns membros da elite paulista, o espaço começou a receber mortos em 1858, meio às pressas, para dar conta das vítimas da epidemia de varíola. O debate em torno da construção de um cemitério afastado dos pontos importantes da cidade já era alvo de discussões desde 1825, quando o imperador dom Pedro I mandou publicar uma portaria proibindo, no Rio de Janeiro, o enterro de mortos nos terrenos das igrejas e arredores, como era o costume. A partir daí, a demanda se nacionalizou.
Assim como outros cemitérios centenários pelo mundo, o então Cemitério Municipal, nome original do Cemitério da Consolação, foi instalado em um terreno mais alto em relação ao Centro paulistano – uma precaução para que os “miasmas” emanados pelos corpos em putrefação não contaminassem o ar, transmitindo doenças à população. Ainda estava em voga a chamada “teoria miasmática”, que caiu em desuso a partir da aceitação mais ou menos geral no fim do século XIX de que as doenças são causadas por micróbios.
Quando o tour efetivamente começa a adentrar a escuridão das ruas do cemitério, a primeira parada é em um sepulcro simbólico: sob uma estrutura quadrangular de mármore, por sua vez encimada por um anjinho de aspecto bonachão, jazem os restos mortais de Domitila de Castro Canto e Melo, a Marquesa de Santos, falecida em novembro de 1867. Conhecida dos livros de história por sua relação amorosa com dom Pedro I, ela teve papel proeminente na construção do cemitério, com a doação de um valor considerável de 2 contos de réis para a edificação da primeira capela do local, que não existe mais. Também mandou enterrar ali sua mãe, Escolástica Bonifácia de Oliveira Toledo Ribas, em um ato que serviria de exemplo para outros nobres de São Paulo que ainda torciam o nariz para a necrópole recém-inaugurada.
Iluminado pelas lanternas de celular, Thiago passa a discorrer sobre um lado menos conhecido da Marquesa. Esfaqueada pelo primeiro marido, abandonada grávida pelo amante imperador, foi de certa forma redimida nas questões do coração após casar-se com o rico e influente brigadeiro Rafael Tobias de Aguiar (o mesmo que batiza o batalhão da Polícia Militar de São Paulo que abriga a Rota). Muitos anos depois de sua morte, aquilo que a Marquesa de Santos representa ganhou outros significados: seu jazigo tornou-se um ponto de oração para mulheres que desejavam um bom casamento e, a partir de uma interpretação estendida de sua vida, recebeu a outorga de “padroeira das prostitutas”. Mas não acaba por aí. “Para fechar o ‘case’, ela também é um fantasma”, afirma Thiago.
Diversos relatos dão conta de que Domitila e o esposo militar frequentam, de forma espectral, o Solar da Marquesa de Santos, sua antiga residência no Centro de São Paulo. Thiago, inclusive, conta que algumas pessoas já parabenizaram a administração do local por contratar atores tão fidedignos para acompanhar os visitantes nos cômodos da casa – ainda que não haja registros de que alguma vez atores tenham sido contratados para animar qualquer visitação ao local.
Essa mistura entre história, sociologia e fantasia costurados dentro de um storytelling bem-humorado é a marca do trabalho de Thiago. Tudo sem perder de vista seu grande personagem: o cemitério. A caminhada de maio era parte da programação da 22ª Semana Nacional de Museus, mas ele faz questão de ressaltar que o cemitério não é exatamente um museu. “Tem uma frase que eu detesto: ‘o cemitério é um museu a céu aberto.’ Parece que é preciso passar esse verniz para justificar a importância do cemitério. Claro que tem um valor museológico, mas o cemitério por si só tem sua importância”, diz.
O entusiasmo de Thiago de Souza pela cultura cemiterial hoje rende a ele cerca de 150 mil seguidores entre Instagram e TikTok, assim como convites para participar de podcasts, documentários e reportagens. Pai de duas filhas, de 5 e 11 anos, ele mora em Campinas, mas passa a semana em São Paulo, onde trabalha em uma fundação do governo estadual cuidando do setor de licitações. O conhecimento sobre jazigos e milagreiros, porém, não é a primeira expertise que lhe garante relativa fama.
No auge da Operação Lava-Jato, Thiago compôs a marchinha “Japonês da Federal”, sucesso no Carnaval de 2016. A canção fazia referência ao policial federal Newton Ishii, então responsável por bater à porta de empresários e políticos pegos pela operação – a maré virou meses depois, e Ishii foi preso pelo crime de facilitação de contrabando. Thiago e seus amigos do grupo “Os Marcheiros” especialistas em paródias políticas, tiveram de mudar a letra da música. “Esse foi um marco terrível na minha vida de compositor. A música de um meme acabou batizando um personagem tão estranho, tão ambíguo”, reflete Thiago, que também integra a ala de compositores da Estação Primeira da Mangueira e é autor dos últimos três sambas-enredos da Dragões da Real, de São Paulo.
A guinada do reino de Momo para o de Tânatos (na mitologia grega, as personificações do Carnaval e da Morte, respectivamente) aconteceu em 2018, ano em que a sogra dele foi acometida por um câncer de pulmão agressivo e precisou passar por cuidados paliativos. Durante as visitas ao hospital da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Thiago passou a se interessar pelo tema e a conversar com médicos e estudantes sobre o que significavam esses cuidados, o que o levou a dirigir um documentário sobre o assunto. “Vi crianças com síndromes que iam viver em cuidado paliativo a vida toda. Isso desmistificou um pouco aquela ideia de que cuidado paliativo era só para a doença terminal”, lembra.
A morte da sogra, rodeada pelo carinho da família, foi um momento “sublime”, nas palavras dele. A chegada da Covid, porém, mostrou um outro lado das cerimônias fúnebres. Em 2021, Thiago perdeu uma tia para a doença, e a mãe de um amigo foi enterrada sem roupa em um saco preto após uma despedida breve. “Foi meio apavorante perceber como a nossa existência, dentro desse horizonte novo, era apagada”, conta.
As sensações conflitantes diante da morte ganharam novo significado quando ele leu Assombrações do Recife Velho, reunião de contos do sociólogo Gilberto Freyre sobre histórias sobrenaturais ambientadas em sua cidade natal. A leitura o inspirou a pesquisar e publicar na internet relatos semelhantes ocorridos em Campinas, além de promover atividades pelos cemitérios da cidade. “Não existe lugar que explique melhor a cidade que o cemitério. Minha proposta para vencer a morte não é espiritual, é a partir da memória”, avalia Thiago. Não que o interesse pelos mistérios de uma necrópole seja uma novidade, longe disso, mas a abordagem que ele propõe, com certa leveza, acaba por despertar uma sensação de pertencimento e de reconhecimento, no outro, das próprias angústias em relação à finitude.
Entre vivos e mortos naquela noite no Cemitério da Consolação, as baratas estão por toda a parte: pernejando pelo chão, escalando jazigos, ao redor dos bueiros, voando entre as lápides. Basta iluminar que elas estarão lá, em tamanha quantidade que às vezes é possível pensar que se trata de alguma engenhosa pegadinha. São elas as responsáveis pelos gritinhos de terror que são ouvidos aqui e ali. O passeio segue pelos túmulos dos modernistas de São Paulo e os visitantes são informados de que Oswald de Andrade e Patrícia Galvão, a Pagu, casaram-se no local, em uma cerimônia excêntrica que pode parecer um acerto de contas com o sentimento de culpa que o escritor carregava: também lá está enterrada uma antiga namorada de Oswald, Daisy, morta aos 19 anos em decorrência de uma tentativa de aborto do filho que seria dele (Oswald e Daisy chegaram a celebrar um casamento in extremis, no hospital). A pintora Tarsila do Amaral, também ex-esposa de Oswald, está sepultada em um jazigo na mesma necrópole.
A jornada prossegue em direção ao tema que mais empolga Thiago: os chamados milagreiros de cemitério, uma categoria que reúne pessoas falecidas, de diferentes idades e origens, que por motivos diversos atraem devotos aos seus túmulos em busca de milagres, bênçãos ou ajuda para obter conquistas mais mundanas. Não são como os santos populares e nem sempre têm algum reconhecimento da Igreja Católica, mas de alguma maneira caíram nas graças dos devotos. Um destaque local é o monumento a Antoninho da Rocha Marmo, menino muito católico a quem se atribuía dons premonitórios – inclusive a data da própria morte, aos 12 anos, em 1930. Sob a estátua do menino segurando uma Bíblia junto ao peito espalham-se diversas placas de agradecimento por graças alcançadas – os chamados ex-votos. Hoje seus restos mortais estão em São José dos Campos, onde ele dá nome a um hospital.
Os caminhos para que um milagreiro de cemitério se estabeleça nem sempre são claros. Um dos túmulos mais visitados é o de Maria Judith de Barros, morta em 1938 vítima de um caso bárbaro de violência doméstica. Sua história como milagreira remonta a outra mulher, que teria parado diante do túmulo e rezado baixinho para que parasse de sofrer agressões do marido. De alguma maneira, a violência cessou, e a fama de Maria Judith ganhou terreno. No início dos anos 2000, o túmulo de Maria Judith foi visitado por vestibulandos de um colégio próximo. A lenda diz que toda a turma foi aprovada e, desde então, seu sepulcro tornou-se local de devoção para quem busca uma vaga na universidade, passar num bom concurso ou obter aprovação no exame da OAB. As placas de agradecimento colocam uma pulga atrás da orelha dos visitantes mais incrédulos. “Não existe milagreiro sem devoto”, ressalta Thiago.
Enquanto Thiago explica a história do cemitério e seus “habitantes”, a historiadora Viviane Comunale é a responsável pelas informações artísticas do local. Mestre em arte tumular e membro da Associação Brasileira de Estudos Cemiteriais (Abec), ela afirma que os passeios coletivos são uma oportunidade de divulgar obras e autores de um campo do conhecimento que parece estar morto e enterrado. “A arte tumular não existe mais desde a década de 1950, e a tendência é de que os túmulos sejam cada vez mais simples”, diz.
O Cemitério da Consolação abriga peças que vão de uma escultura de Victor Brecheret a um dos jazigos mais imponentes da América Latina, o da família Matarazzo, um portento de 20 metros de altura construído com mármore italiano e adornado por figuras de bronze. Há um mausoléu gótico, similar à Catedral de Milão, pertencente a família Siniscalchi, e uma composição art nouveau para a família Jafet cujas formas esculpidas em bronze pelo artista italiano Materno Giribaldi lembram o barco de Caronte, o personagem da mitologia grega que atravessava as almas pelas águas até o reino de Hades, o mundo dos mortos – com uma piscadela pagã para uma família extremamente católica. “As ninfas têm uma expressão faceira, como se estivessem ‘fazendo arte’. Tem algo de profano ali”, diz Viviane.
Desde março de 2023, a administração dos 22 cemitérios públicos de São Paulo e do crematório da Vila Alpina está nas mãos da iniciativa privada. As quatro concessionárias passaram a ter direito de explorar comercialmente todos os serviços fúnebres e outros serviços adicionais, como venda de flores, estacionamento e lanchonetes. O da Consolação está sob responsabilidade da Consolare, que afirma ter como prioridade a preservação dos espaços comuns, além do restauro do cemitério, que é tombado. “Há um plano para o restauro dos muros, pórticos, administração e capela, que será iniciado após a autorização”, informa a empresa. A responsabilidade da manutenção dos jazigos é das famílias, mas no caso de túmulos tombados, a Consolare diz colaborar na conservação em conjunto com os responsáveis identificados por meio dos dados cadastrais – que estão em boa parte desatualizados.
Atualmente, de acordo com a Consolare, o Cemitério da Consolação recebe cerca de quinhentos visitantes por mês nesses tours, seja com o projeto “O Que Te Assombra” ou com as visitas mediadas conduzidas todas as segundas-feiras pelo ex-coveiro Francivaldo Gomes, o Popó, hoje o decano informal do necroturismo paulista. Seria muito injusto comparar esse número com o Cemitério do Père-Lachaise em Paris, que recebe 3 milhões de turistas anualmente, e abriga mortos célebres que vão do escritor Honoré de Balzac ao cantor Jim Morrison, ou mesmo com o da Recoleta, em Buenos Aires, que desde 2022 passou a cobrar ingresso dos visitantes e chega a receber 3 mil pessoas aos fins de semana.
São quase 22h30 da noite quando o tour no Cemitério da Consolação chega ao final. Os visitantes seguem para a Rua da Consolação pela penumbra da alameda principal, observados de longe pelo segurança terceirizado. Ainda há tempo de Thiago reunir uma rodinha em torno do seu celular para mostrar imagens de vultos e formas humanas em meio aos túmulos, inexplicavelmente capturadas por visitantes em outras ocasiões. No dia seguinte, às 10 horas, ele e Viviane seriam os guias de uma turma do outro lado da cidade, dessa vez para contar as histórias do Cemitério de Santo Amaro.
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