Não se enganem: todos os países pós-comunistas terão que enfrentar isso. Por toda parte, na Rússia e na Tchecoslováquia, na Hungria e na Romênia, os fantasmas do passado despertam: movimentos que combinam populismo, xenofobia, cultos da personalidade e uma visão do mundo governada por uma conspiração de maçons e judeus. Um grande perigo para a ordem democrática vem dessa direção. (Adam Michnik, The New York Review, dezembro 1990)
Quem passeia pelas ruas de Gdánsk, na Polônia, não pode deixar de reparar num grande edifício no qual se encontra o Centro Europeu do Solidariedade, o primeiro sindicato livre do bloco comunista. O Centro, que hoje funciona como um museu da história do movimento e do sindicato, ecoa um passado de lutas políticas. Nos anos 1980, ao organizar greves, o Solidariedade virou uma força aglutinadora dos anseios democráticos poloneses. Em agosto de 1980, tornou-se o primeiro sindicato livre dos países integrantes do Pacto de Varsóvia – versão da OTAN, mas do bloco comunista – após acordo com o governo da URSS. Em entrevista a Daniel Cohn-Bendit no final dos anos 1980, o autor que serve à epígrafe deste artigo e estava nos bastidores do movimento “agradece” ter estado na prisão durante o grande acordo firmado; caso contrário, ele teria dissuadido uma tal iniciativa em prol da infiltração dos grevistas na burocracia comunista.
Em 1981, os comunistas voltaram atrás no acordo estabelecido e impuseram a lei marcial, comumente usada em tempos de guerra. O Solidariedade continuou suas atividades na clandestinidade. Em 1983, seu líder mais proeminente, Lech Wałęsa, ganhou o Nobel da Paz. Em 1989, ele foi crucial nas negociações pelo fim do domínio comunista; no ano seguinte, venceu as eleições semilivres e inaugurou o primeiro governo democrático do bloco comunista, em um cenário de declínio da URSS. À época, já enfrentava críticas internas ao Solidariedade, como de Michnik – que o acusou de oportunista e egocêntrico por personalizar o Solidariedade em seu nome e censurar companheiros por divergências. Desde então, Wałęsa também se engalfinhou com o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o que viria a se repetir nos anos 2000 e 2010.
Atualmente, os herdeiros do Solidariedade disputam seu legado e se alinham, ao menos em parte, à extrema direita. Jarosław Kaczyński, antes confidente próximo de Wałęsa no Solidariedade, é hoje seu arqui-inimigo e presidente do PiS (partido de extrema direita, que governa o país). Ainda na época da transição democrática, porém, ele já acusava Wałęsa de colaborar com o comunismo e aumentar a desigualdade no país. ²
Kaczyński vem tentando reescrever a história do Solidariedade para atribuir protagonismo ao seu falecido irmão, também chamado Lech, como reportou a jornalista e historiadora Anne Applebaum em 2017. Lech Kaczyński, que se elegeu presidente da Polônia em 2005, morreu em uma queda de avião na Rússia em 2010, junto com outras autoridades do país. A partir de então, Jarosław, bem como outras autoridades do PiS, criaram uma narrativa conspiratória sobre o chamado “desastre de Smolensk”. Conspiração é o mantra de Jarosław: sua palavra preferida, segundo um jornalista próximo. Comemorações mensais (“Smolensk mensiversaries”) são feitas desde então, embalando a narrativa de que o acidente significou o renascimento da nação polonesa, numa receita cara ao fascismo e ao autoritarismo renovado.
Em momentos de ruptura profunda, o pensamento mágico é cola potente para integrar sociedades picotadas. Lá atrás, eram os desafios da modernidade que se colocavam, em paralelo à formação de massas, ao aumento brutal do eleitorado e à disputa inédita de direitos sociais na arena legislativa. A isso o fascismo se apresentou como resposta. Hoje os desafios são outros, em meio a polarizações identitárias graves, conflitos étnico-religiosos e desigualdades aviltantes, crias de um neoliberalismo “zumbi“. A isso novos governos de extrema direita se apresentam como a solução – embora ainda não haja consenso terminológico de como batizá-los.
O Solidariedade era um movimento com tendências bastante heterogêneas. Anticomunistas, comunistas críticos à URSS, liberais, marxistas e outros tantos grupos se juntaram com o fim primeiro de pôr um ponto final ao domínio soviético. A igreja católica, nesse contexto, serviu como agregadora das oposições ao comunismo, como aponta a cientista política Jacqueline Hayden. Também a maior federação sindical norte-americana, AFL-CIO (American Federation of Labor and Congress of Industrial Organizations), deu fundos ao movimento, em apoio aos propósitos imperialistas do governo dos Estados Unidos. Essa mesma organização, aliás, financiou o regime militar brasileiro – tudo em prol do dito combate ao comunismo.
URSS abaixo, restava descobrir como conciliar todos os conflitos internos. De novo, a igreja teve papel fundamental, tentando expandir sua esfera de atuação para a positivação de valores na constituição polonesa de 1997. Os conflitos estouraram.
A direita gradualmente se dividiu em dois grandes partidos, e a esquerda foi marginalizada da cena política a partir de 2005. O PiS é um dos partidos de direita que surgiram. Liderado pelos irmãos Kaczyński, o partido defendeu uma plataforma anticomunista, anticorrupção e intervencionista e foi se radicalizando com o passar dos anos. Depois de vencer as eleições de 2005, ele tentou emplacar amplas reformas institucionais – até elaborar uma nova constituição –, mas não obteve sucesso. Em 2010, com a morte do então presidente Lech Kaczyński, seu irmão Jarosław ganhou maior visibilidade e apoio político, ficando em segundo lugar na nova corrida presidencial.
O Solidariedade, nesse meio tempo, passou por turbulências. De um envolvimento direto na política dos anos 1990 até 2001, ele passou a declarar distância da arena parlamentar. Mesmo assim, tanto em 2005 como em 2010 ele apoiou candidatos do PiS.
Em 2019, o periódico semanal do sindicato – que ainda existe, embora enfraquecido² – sugeriu que a população LGBT estaria atacando valores cristãos e poderia ser uma “ideologia neomarxista”. No mesmo ano, o líder do sindicato, Piotr Duda, criticou o Centro Europeu do Solidariedade por ceder uma sala de seu espaço para um grupo LGBT. Em seus termos, “o Solidariedade nasceu sob a cruz”. Esses ecos conservadores encontram amparo tanto na ideologia religiosa do PiS, que governa o país desde 2015, quanto na própria história do Solidariedade, que abrigou a igreja católica desde sua fundação.
Em 2020, o sindicato apoiou a reeleição do presidente Andrzej Duda. Até então, ele já havia apoiado outras políticas de seu governo, e, em 2019, o periódico vinculado a ele chegou a dar o prêmio de “Pessoa do Ano” ao presidente. Seu líder também fez declarações de que Duda seria um “bom homem”, teria feito boas políticas em seu primeiro mandato e faria, certamente, mais um bom governo.
Em agosto daquele ano, quando o Solidariedade completou 40 anos, dois eventos comemorativos do partido serviram de epítome à disputa pelo espólio do movimento. De um lado, Wałęsa e a oposição ao governo comemoraram a data pela manhã. De outro, Jarosław Kaczyński, o presidente Andrzej Duda (PiS) e outras autoridades comemoraram o aniversário à tarde.
Na ocasião, Wałęsa criticou o PiS e a escolha pelo populismo. Em suas palavras, “as pessoas hoje estão elegendo populistas e demagogos porque eles prometem mudanças. Eles corretamente diagnosticaram (problemas de hoje), mas sua cura está errada”. O líder sindical, porém, tem ele mesmo declarações recentes problemáticas. Em 2013, ele alegou que LGBTs da Polônia – e, no geral, minorias – deveriam sentar “atrás de um muro” no parlamento, afinal, eles não espelhariam a sociedade polonesa. A fala gerou onda de repercussão; alguns, inclusive, demandaram a abdicação ao prêmio Nobel da Paz, que ele ganhara em 1983. Em 2019, Wałęsa também afirmou que LGBTs não seriam normais e deveriam se submeter à maioria. Por outro lado, mantém críticas afiadas ao PiS, desde sua ascensão, e aos esforços do partido para minar a independência judicial.
Já Duda ressaltou, no evento, a importância do legado do Solidariedade. Para o presidente, o movimento teria sido crucial à queda do Muro de Berlim e ao fim da URSS. Segundo ele, os manifestantes de 1980 quiseram “normalidade e dignidade humana para todos” e seu legado deveria ser sempre lembrado: ele levou a transformações no mundo todo. O primeiro-ministro Mateusz Morawiecki, por sua vez, mencionou diversas figuras do sindicato, mas não Wałęsa.
Concepções diferentes de democracia foram colocadas em questão nesse intervalo de tempo. No final do século passado, primordialmente se formou uma aliança de ocasião em torno da transição de regime político, o que foi capaz de aliar ao movimento um balaio de aspirações políticas diversas e até conflitantes. Já nos últimos anos, uma concepção de democracia mais abrangente, pautada pela tolerância e respeito ao pluralismo de valores é o que entra em jogo – e daí a disputa pelo legado democrático do Solidariedade.
Em palavras curtas, no primeiro caso, lutava-se ainda por uma democracia magra – já que nem isso se tinha. Justamente por ser tão magra ela conseguiu abraçar um guarda-chuva tão amplo de posições. O acordo da luta, porém, não passou da segunda linha. No outro caso, em contrapartida, luta-se por uma democracia mais abrangente. Eleições livres e periódicas, embora pressuposto, não podem resumir toda a vivacidade da democracia que se propõe, em acolhimento às diferenças e aos direitos humanos. Nessa segunda concepção, não se aceita a ostracização de minorias e a institucionalização de sua discriminação, como se dá, por exemplo, com as inúmeras cidades polonesas que se declararam zonas livres da “ideologia LGBT” – em 2020, elas somavam uma área maior que o território húngaro.
Até a chegada ao poder do PiS, em 2015, a Polônia alcançou melhoras significativas para as minorias. Os direitos das mulheres, por exemplo, ganharam espaço sem precedentes. Entre 2009 e 2015, foram criados diversos fóruns consultivos e desenvolvidas cooperações entre o governo e organizações da sociedade civil. Agora, por outro lado, assiste-se à regressão da pauta de direitos reprodutivos e à proibição virtual do aborto no país, segundo decisão do tribunal constitucional em outubro de 2020. Em junho de 2022, o ministro da Saúde também introduziu um “registro de gravidez”, ordenando que o sistema de saúde do país colete informações sobre o estado gestacional de mulheres que realizem tratamento a ele relacionado.
No Brasil, neste mesmo junho, o ministério da Saúde lançou cartilha reforçando a necessidade de notificação a autoridades policiais da realização de procedimentos de aborto permitidos por lei. No documento, disponível no portal eletrônico do ministério da Saúde, também se defende que “todo aborto é um crime” e não há razões para realizar o procedimento a partir de 21 semanas e 6 dias de gravidez, o que não tem respaldo na lei.
As afinidades entre os cenários polonês e brasileiro não param por aí. Como disse o jornalista Piotr Pacewicz em entrevista à piauí em 2019, uma parte importante das narrativas oficiais em ambos os países coloca os LGBTs como inimigos e revela uma “obsessão com a sexualidade”. De um lado, o governo brasileiro realiza sua cruzada incansável em suposta defesa dos “valores cristãos” e implementa políticas “familistas” no ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. De outro, o presidente polonês alavanca uma plataforma anti-LGBT para se reeleger e livrar o país de uma “ideologia mais perigosa” que o antigo comunismo.
Como já dizia Adam Michnik, de fato, os antigos países comunistas têm heranças duras a carregar, e na Polônia não é diferente. Alertas de conspirações, políticas populistas e discursos antipluralistas e xenofóbicos marcam as investidas do governo PiS. Como afirmou o mesmo Michnik, quase trinta anos depois, a direita entregou de maneira mais simples diversas ideias: nação, Deus, tradição, heróis. “É como se nós [a esquerda acadêmica] tivéssemos armas nucleares e eles tivessem facões, e eles estivessem ganhando.”
¹ A partir dos anos 1990, novas informações – nunca confirmadas por Wałęsa – apontaram que ele serviu de espião à URSS nos anos 1970. Em novembro de 2021, o ex-presidente passou a ser formalmente investigado por perjúrio (similar ao crime de falso testemunho) ao negar envolvimento com a União Soviética.
² Atualmente, conta com 500 mil membros. Na época da transição política, somava 10 milhões.