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South – glorioso épico ou fracasso glorioso?

Antes do fracasso da Expedição britânica à Antártica de 1910-13, na qual morreram o capitão Robert Falcon Scott e seus quatro companheiros de equipe, o explorador polar irlandês Ernest Henry Shackleton (1874-1922) estivera duas vezes na região. Em 1901, sob comando do próprio capitão Scott, na Expedição de Descoberta que foi forçado a abandonar por ter adoecido. Depois, em 1907, para compensar o que considerou ter sido um fracasso pessoal, comandando a Expedição Nimrod, na qual chegou, em 1909, junto com três companheiros, ao ponto sul mais extremo até então atingido, a 190 quilômetros do Polo.

| 26 jun 2012_12h14
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Antes do fracasso da Expedição britânica à Antártica de 1910-13, na qual morreram o capitão Robert Falcon Scott e seus quatro companheiros de equipe, o explorador polar irlandês Ernest Henry Shackleton (1874-1922) estivera duas vezes na região. Em 1901, sob comando do próprio capitão Scott, na Expedição de Descoberta que foi forçado a abandonar por ter adoecido. Depois, em 1907, para compensar o que considerou ter sido um fracasso pessoal, comandando a Expedição Nimrod, na qual chegou, em 1909, junto com três companheiros, ao ponto sul mais extremo até então atingido, a 190 quilômetros do Polo.Persistente, mesmo depois do norueguês Roald Amundsen e sua equipe terem chegado ao Polo Sul, em 1911, e da morte de Scott e seus três companheiros, em 1912, Shackleton planejou cruzar a Antártica, da costa do mar Weddell ao mar Ross, passando pelo Polo – percurso de cerca de 3000 quilômetros. 

Em agosto de 1914, dias depois de a Grã-Bretanha declarar guerra à Alemanha, o  zarpou rumo sul a serviço da Expedição Imperial Trans-Antártica, 

liderada por Shackleton. Da equipe faria parte o fotógrafo e cinegrafista australiano Frank Hurley (1885-1962), com a tarefa de fazer fotografias e filmes cuja publicação e exibição servissem para cobrir parte do custo da expedição. Depois de ter feito, em 1913, Home of the Blizzard (Morada da nevasca), sobre a Expedição Antártica Australasiática, Hurley se credenciara para a missão.
 
Como já ocorrera com Herbert Ponting, que tendo abandonado a Expedição Antártica Britânica, no final de 1911, deixou de filmar a travessia do continente até o Polo Sul, a marcha de volta e as mortes do capitão Scott e seus companheiros, Hurley só filmou a Expedição Imperial Trans-Antártica até o  ser abandonado e afundar, depois de o navio ter ficado preso e ser esmagado pelo gelo. Nada foi fotografado ou filmado da viagem de Shackleton e cinco companheiros em busca de socorro, que durou quatro meses até chegarem a Geórgia do Sul e poderem voltar para resgatar o resto da equipe sem que houvesse perda de vidas.
 
Ao dar ordem para abandonar o navio, diante da necessidade de aliviar o peso a ser transportado na travessia até Geórgia do Sul, a ser feita em um pequeno barco de 20 pés e de trenó, Shackleton só permitiu que fossem levados um baralho, um banjo e um volume da Enciclopédia Britânica. Hurley foi obrigado, então, a deixar a bordo mais de 500 fotografias em chapa de vidro e os filmes que fizera até aquele momento. Quando ficou claro, porém, que todos os integrantes da expedição não poderiam ir juntos em busca de socorro, Hurley, que esperaria com o resto da equipe na Ilha Elefante para ser resgatado, pode mergulhar na água gelada, voltar ao  e salvar suas fotografias e rolos de filme, tendo que deixar para trás, ainda assim, cerca de 400 chapas de vidro para aliviar sua carga.
 
South (1919, 80’), o filme de Frank Hurley, tendo como subtítuloO glorioso épico da Antártica de Sir Ernest Shackleton, foi usado pelo próprio Shackleton em suas palestras, e distribuído, nas décadas seguintes, com outros títulos, além de ter tido uma versão sonora chamada A história de um fracasso glorioso, lançada em 1933, narrada pelo capitão do , Frank Worsley.

A falta completa de imagens do chamado “glorioso épico” de Shackleton, em que conseguiu salvar os 27 integrantes da sua equipe, levou Hurley a voltar à Geórgia do Sul para filmar pitorescas cenas de pinguins, gaivotas, focas etc. que ocupam o quarto final do filme. Essa surpreendente incursão pela vida animal talvez explique a menção mais precisa, feita no título da versão sonora, a um “fracasso glorioso” – a expedição fracassou e o filme também.

Trechos da filmagem de Hurley também puderam ser vistos nos filmes Aventura Antártica, de 2001, exibidos no formato IMAX.   
Restaurada pelo Arquivo Nacional de Filme e Televisão do British Film Institute (BFI), e lançada em DVD com qualidade de fotografia excepcional, a versão original de South (1919) começa alternando legendas com a apresentação dos principais integrantes da expedição, começando pelo líder, Sir Ernest Shackleton, filmados ao que parece em estúdio. Nenhum deles chega, porém, a constituir propriamente um personagem da narrativa que, depois da partida festiva do porto de Buenos Aires, com direito a banda, em outubro de 1914, se concentra nos 70 cachorros canadenses, no gelo crescente que acaba capturando o navio por 9 meses, e no próprio  – até o navio ser esmagado e afundar.

A recepção triunfal dada a Shackleton e sua equipe em Valparaíso, ao chegarem de volta da Antártica sãos e salvos em 1916, filmada por um cinegrafista chileno não identificado, encerra South. A legenda final faz referência à “história de heroísmo, valor e auto-sacrifício britânicos em nome e pela causa da honra de um país. Os feitos desses homens serão inscritos na história como um épico glorioso dos grandes campos-gelados do Sul, e serão lembrados enquanto nosso Império existir”.

O capitão do , Frank Worsley chegou de volta à Inglaterra em 1917, a tempo de participar da Primeira Guerra Mundial. Comandando um Q-boat, navio de despistamento, afundou um submarino alemão, e a pedido de Shackleton participou com ele de incursões atrás das linhas russas para colher informações.
 
Excluídos do cânone durante quase um século, Herbert Ponting e Frank Hurley surgem, em estudos mais recentes, entre os precursores do cinema documentário.

Michael Chanan (The Politics of Documentary. London: British Film Institute, 2007) chega a situar Com capitão Scott ao Polo Sul, filmado por Ponting e distribuído pela Gaumont em 1912, como “clímax do gênero”. Referência, na verdade, à tournée posterior de pelo menos mil palestras seguindo o modelo dos espetáculos de lanterna mágica do século dezenove, realizadas por Ponting durante a Primeira Guerra Mundial, depois de a morte de Scott e de seus companheiros terem sido anunciadas e de ele ter adquirido de volta da Gaumont o direito de exibição das imagens que filmara.

tournée, segundo Chanan, transformou Scott em “um dos primeiros heróis trágicos dos tempos modernos”.

Referindo-se a O grande silêncio branco (1924), Chanan vê na tela, com boa dose de benevolência, “figuras de identificação” para o espectador e os “traços iniciais da articulação de um ponto de vista coerente, […] que não é imposto pelo domínio semântico do narrador mas pertence à câmera-olho, o olho do visor”.
 
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South – Sir Ernest Shackleton’s Glorious Epic of the Antartic (1919, 80’), Frank Hurley, DVD da BFI videos | preto e branco, tingido | versão sonorizada com trilha musical original de Neil Brand.
As informações sobre a Expedição Imperial Trans-Antártica (1914-16), comandada por Sir Ernest Shackleton, provém de  (New York • London: W.W.Norton&Company, 2000 [primeira edição, 1931]), de F.A.Worsley, capitão do HMS .

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