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    Lula ao lado de Xi Jinping na Cúpula dos Brics, em Joanesburgo Imagem: Intervenção de Amanda Gorziza em foto de Ricardo Stuckert/PR

questões diplomáticas

Sozinho na festa

Na cúpula dos Brics, Lula tenta reativar agenda multilateral, mas esbarra nos interesses da China e de um bloco cada vez mais fragmentado

Ana Clara Costa | 25 ago 2023_09h41
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De Joanesburgo.

Em 2006, durante uma reunião do Conselho de Segurança da ONU, em Nova York, o chanceler russo Sergei Lavrov pediu ao seu homólogo brasileiro, Celso Amorim, que articulasse uma reunião dos ministros de Relações Exteriores dos países que compunham o Bric — na época, além de Brasil e Rússia, faziam parte do grupo apenas Índia e China. Acrônimo tornado popular pelo economista Jim O’Neill, do banco Goldman Sachs, num momento de otimismo com o desenvolvimento econômico dos países emergentes, o Bric só viria a se tornar um acontecimento político em setembro daquele ano, quando Amorim, atendendo ao pedido de Lavrov, conseguiu reunir os chanceleres na sede da ONU.

Na reunião, Brasil e Rússia deram explicações detalhadas sobre o que almejavam para o grupo. Já o representante chinês se contentou em ler um documento protocolar e  logo partiu para outros compromissos nas salas ao lado. Na Cúpula dos Brics que aconteceu agora, dezessete anos depois, em Joanesburgo, na África do Sul – país que passou a integrar o bloco em 2011 –, a mesma China que tratou com desdém a criação do grupo patrocinou a sua ampliação. Entraram seis novos membros, num movimento inicialmente contrário aos interesses da maioria, em especial do Brasil, que não se opunha à inclusão de novos países, mas preferia que os recém-chegados não tivessem o mesmo status que os membros fundadores.

Foram admitidos no bloco Irã, Arábia Saudita, Emirados Árabes, Egito, Etiópia e Argentina. O Irã entrou por uma decisão consensual de China, Rússia e Índia. A inclusão da Argentina atende a um pleito do Brasil e também da China. O Egito almeja participar do grupo há pelo menos uma década, enquanto a Etiópia foi uma cartada de última hora da África do Sul para que o continente africano também fosse contemplado com um novo país-membro. A Arábia Saudita foi patrocinada pela China e, depois de muita pressão diplomática, pela Índia.

Na diplomacia do governo Lula, a decisão foi aceita com resignação, já que o Brasil ficou isolado entre os que se opunham à ampliação. A Índia, que até então se alinhava aos interesses brasileiros, teve de capitular depois que o premiê Narendra Modi foi diretamente pressionado pelo ditador saudita Mohammed bin Salman. África do Sul, Rússia e Brasil não tinham recursos para barganhar com a China. Os chineses respondem por 70% do PIB dos Brics, o que lhes garante um poder decisório magnânimo.

Um membro da comitiva presidencial que esteve na conferência e falou com a piauí sob a condição de anonimato explicou a frustração: “Para o Brasil, manter os Brics como estavam era a melhor forma de preservar o bloco. Para a China, é melhor ampliar, porque assim ela consegue trocar os Brics por uma organização muito mais ampla que ela será capaz de pautar. Na prática, a China não cabe mais nos Brics.”

Ao longo dos anos, a correlação de forças entre os membros dos Brics mudou, e a agenda internacional que tinham em comum no início dos anos 2000 se desfez. O maior exemplo dessa dissolução é o fato de que Vladimir Putin não pôde comparecer a Joanesburgo sob o risco de ser preso, já que África do Sul integra o Tribunal Penal Internacional (TPI), que emitiu um mandado de prisão contra o presidente russo. Quando os Brics foram criados, em 2006, Brasil, Rússia, China e Índia estavam alinhados em questões centrais da época, como a contestação à presença dos Estados Unidos no Iraque. Os tempos agora são outros.

A China, nos últimos anos, ampliou sua influência econômica sobre a África do Sul, tornou-se o maior parceiro comercial do Brasil e apoiou parcialmente a Rússia depois dos embargos sofridos pela invasão da Ucrânia. No caso da Índia, a relação entre os dois países asiáticos tem se tornado cada vez mais tensa em razão de disputas territoriais nos mais de 3 mil km de fronteira que compartilham. Em 2020, vinte soldados indianos e quatro chineses morreram num enfrentamento na região de Ladaque. Depois disso, a Índia mobilizou mais de 50 mil homens para montar guarda de forma permanente no local.

Em Joanesburgo, Narendra Modi e o presidente chinês Xi Jinping se encontraram pela primeira vez desde o ocorrido. Na quinta-feira, enquanto o secretário-geral da ONU António Guterres discursava na Cúpula dos Brics, Modi e Xi deixaram juntos a sala onde se reuniam os chefes de Estado e foram para um encontro bilateral. Pode ter sido coincidência, mas o fato de a dupla ter saído justamente no momento em que discursava o maior representante do multilateralismo no mundo indica a dificuldade de retomar essa agenda.

 

Resignada, a diplomacia brasileira recorreu, no entanto, a uma cartada. Embora soubesse que a ampliação do bloco era inevitável, o Itamaraty tentou negociar com a China ao menos uma sinalização: queria que os chineses se comprometessem com uma reforma no Conselho de Segurança da ONU, pleito que o Brasil defende há pelo menos vinte anos. Mesmo no auge das relações entre brasileiros e chineses, Pequim nunca demonstrou interesse em endossar qualquer reforma no organismo multilateral – sobretudo porque uma alteração no colegiado poderia viabilizar a entrada de países não alinhados a eles, como o Japão e a própria Índia.

A cartada foi dada pelo chanceler Mauro Vieira logo no primeiro dia da Cúpula dos Brics. Ele deixou claro ao seu homólogo chinês que esse era um tema que Lula gostaria de discutir com Xi Jinping, e foi o que aconteceu. O presidente brasileiro convenceu Xi Jinping de que o documento final da cúpula deveria avançar nos termos em que o tema do Conselho de Segurança era tratado. No fim das contas, os países aprovaram em Joanesburgo um texto que diz que os Brics apoiam mudanças na ONU, “incluindo o seu Conselho de Segurança, com vistas a torná-lo mais democrático, representativo, produtivo e eficaz, e aumentar a representatividade de países em desenvolvimento entre os membros do Conselho”. 

Lula conseguiu o feito não sem antes fazer críticas ao próprio Conselho de que almeja participar. Além de reclamar da baixa representatividade do colegiado, o presidente brasileiro lamentou que guerras que envolvem grandes potências, como foi a invasão do Iraque pelos Estados Unidos e a invasão da Ucrânia pela Rússia, nunca passem pelo aval do Conselho. Em vez disso, são decididas unilateralmente pelos países interessados no conflito.

Uma segunda ousadia de Lula durante o evento foi perguntar ao chanceler russo Sergei Lavrov sobre a queda do avião que matou o líder do grupo mercenário Wagner, Yevgeny Prigozhin, na quarta-feira (23). Valendo-se do fato de que a aeronave era da Embraer, Lula indagou a Lavrov se o acidente fora causado por um problema técnico. O chanceler saiu pela tangente, dizendo não ter informações a respeito do caso.

 

Embora Lula sempre tenha externado uma posição mais liberal que o Itamaraty quanto à entrada de novos membros nos Brics, o presidente sabe que a ampliação do bloco significa a diluição do poder decisório do Brasil. Mas ele avalia que, ainda assim, é melhor um bloco “forte” do que um acrônimo vazio, dizem seus auxiliares. Ao conversar com a imprensa depois de sua última agenda em Joanesburgo, Lula celebrou que os países-membros não são mais chamados de países em desenvolvimento, como no passado, e sim de “Sul Global” –  o que ele considera uma denominação mais alvissareira, menos carregada de preconceito. 

A pacificação de Lula sobre a mudança nos Brics se dá também em razão de um objetivo maior: seu foco em reativar a agenda multilateral que se dissolveu no final da última década, com a eleição de Donald Trump e líderes similares mundo afora. Não só os Brics, como outras cúpulas – entre elas o G20, as Conferências do Clima –, tornaram-se encontros burocráticos, sem efeitos práticos. Lula criticou, em Joanesburgo, o fato de os países não terem avançado no cumprimento de pactos anteriores, como o protocolo de Quioto ou o Acordo de Paris. Mesmo a Organização Mundial do Comércio (OMC), que nos anos 2000, assim como os Brics, dava sinais de que poderia liderar um novo reagrupamento mundial, hoje foi suplantada por acordos bilaterais que passam ao largo da diplomacia global.

O grande desafio de Lula está em reconstruir uma teia complexa que resgate o multilateralismo sem aprofundar as diferenças entre países que já disputam os mesmos espaços na economia. Não raro Lula se contradiz ao comparar os Brics com o G7, grupo formado por nações desenvolvidas, lideradas pelos Estados Unidos. Por vezes, ele diz que o bloco não quer se contrapor aos países ricos para não criar rusgas desnecessárias com os americanos. Fernando Haddad, ministro da Fazenda, reforçou essa posição em Joanesburgo ao dizer que os Brics não têm “antagonismo” com outros blocos. Mas, na dinâmica do morde-e-assopra, Lula também defende um novo regime monetário que permita que os países façam trocas comerciais sem usar o dólar. A proposta é vista com ceticismo no Ocidente de modo geral, mas o Brasil já colocou em prática um teste. Haddad disse ter proposto à Argentina o uso do yuan, a moeda chinesa, no comércio entre os dois países, em vez do dólar.

Lula critica os países do G7 de forma indireta. Em vez de se referir diretamente aos Estados Unidos ou ao Japão, ele diz que as instituições multilaterais precisam dar mais espaço ao “Sul Global” como uma forma de reparação histórica. O petista relembrou, em Joanesburgo, que enquanto o FMI sempre foi duro com os países em desenvolvimento, fez vista grossa para os Estados Unidos na crise das hipotecas, que culminou no desastre financeiro de 2008. Lula também costuma dizer que os países desenvolvidos devem assumir maior responsabilidade no combate à emergência climática, já que foram eles que deram início à Revolução Industrial.

Numa transmissão ao vivo em Joanesburgo, na terça-feira (22), Lula se explicou nos seguintes termos: “A gente não quer ser contraponto ao G7 ou ao G20, nem aos Estados Unidos. A gente quer se organizar. A gente quer criar uma coisa que nunca teve, que nunca existiu. O ‘Sul Global’… Nós sempre fomos tratados como se fôssemos a parte pobre do planeta, como se não existíssemos. Nós sempre fomos tratados como se fôssemos de segunda categoria. E de repente a gente está percebendo que podemos nos transformar em países importantes.”

Conselheiros de Lula ponderam que levará algum tempo até que se possa dizer se a estratégia do presidente para reativar o multilateralismo foi ou não eficaz. Há muito ceticismo sobre como funcionarão, nos Brics, países com economias tão diferentes e regimes políticos, em sua maioria, autoritários, com interesses territoriais e geopolíticos particulares. Entre os membros antigos e novos, as democracias são minoria, e esse não parece ser um problema. Em nenhum momento, em Joanesburgo, a democracia foi um critério posto em discussão pelos diplomatas e chefes de Estado – o que marca uma clara diferença em relação ao G7.

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