Ilustração de Carvall
Sua entrega, nosso engarrafamento
Problemas de mobilidade se agravaram na pandemia e exigem soluções criativas, como a instalação de pequenos centros de distribuição nos bairros
Como em tantas outras áreas, a pandemia de Covid-19 escancarou também os problemas de gestão da mobilidade nas grandes e médias cidades mundo afora. Pior: trouxe novas complicações, principalmente no quesito “carga urbana”. O cenário recomenda reflexões e providências imediatas – para não sermos, com o perdão da imagem, atropelados no futuro.
Até o início da década de 2010, as questões mais espinhosas relacionadas ao deslocamento de pessoas e bens no perímetro urbano – e suas respectivas soluções – eram razoavelmente conhecidas. Do rol de problemas, sobressaíam-se estes: cidades mal desenhadas, concentrando empregos em poucas regiões, com oferta de moradias cada vez mais longe; linhas de transporte público lotadas e pendulares; gigantescos engarrafamentos; elevados índices de mortos e feridos no trânsito; poluição, barulho, ineficiência. Entre as saídas frequentemente adotadas seria possível destacar: mais linhas de alta capacidade, como metrôs, trens e corredores; integração física, operacional e tarifária; faixas exclusivas de ônibus; limitação de velocidade; cobrança pelo uso de estacionamento nas vias públicas; maior número de ciclovias e de espaços para pedestres.
A rápida universalização de dispositivos eletrônicos da categoria “smart” popularizou soluções baseadas em plataformas tecnológicas que trouxeram mais atores e maior complexidade ao ambiente descrito no parágrafo acima. Sistemas de GPS que atualizam as condições do trânsito e guiam os motoristas por vias menos entupidas, informações sobre o transporte público em tempo real, transporte por aplicativo, bicicletas compartilhadas – os exemplos se multiplicaram. Some-se a isso uma capacidade quase infinita de dados disponibilizados para gerar decisões estratégicas e gerenciais, e o resultado não poderia ser outro: o florescimento de incontornáveis desafios.
No meio de toda essa revolução, o surto do Sars-CoV-2 tomou o planeta de assalto, provocando, em pouquíssimos meses, uma radical mudança de hábitos, a qual impactaria ainda mais a mobilidade urbana. Medidas de distanciamento social, o medo de contaminação e o trabalho remoto ruíram a demanda dos sistemas de transporte público. As compras virtuais, que já vinham crescendo, explodiram. Quem pôde ficar em casa aumentou a aquisição de mercadorias pela internet; as lojas que ainda não estavam no ambiente virtual aceleraram a sua incorporação. Nos Estados Unidos, as compras executadas por meios digitais e entregues na residência dos consumidores aumentaram 54% desde o começo da epidemia do novo coronavírus. Aqui, 70% dos brasileiros aumentaram seus gastos com compras online. Por força disso, a circulação de carga nos territórios urbanos cresceu sobremaneira.
As cidades são as grandes geradoras e destinatárias de todos os bens e produtos – estima-se que 80% deles tenham origem ou destino nas próprias urbes. A eficiência de uma cidade, sua sustentabilidade e capacidade de continuar progredindo dependem diretamente do quanto ela é capaz de distribuir suas mercadorias. Diante do isolamento social decorrente da pandemia, a relevância da logística urbana ficou ainda mais cristalina. Um hospital esgota seus insumos em 24 horas, e um supermercado pode ficar sem produtos se não for abastecido a cada três dias, para citar só dois casos de atendimentos essenciais.
No Brasil, a gestão da mobilidade urbana ainda carece da adoção de políticas públicas que gerem valor na cadeia logística. Geralmente, os gestores estão concentrados nas imensas e complexas demandas do transporte público, da segurança viária, da fluidez do tráfego, para não falar da mobilidade ativa. É natural que assim seja: elas são mesmo urgentes.
Nenhuma dessas demandas pode ser bem administrada se a carga urbana não for considerada entre elas com o mesmo nível de dedicação e foco. Não é difícil entender o porquê. Ninguém duvida que o transporte de produtos, crescente nas cidades, sublinhe-se, ocupe espaço, contamine o ar, promova ruído e contribua – muito – para a insegurança viária. No entanto, ele é decisivo para a economia, para atrair investimentos, para a renda – em última instância, para a inclusão social. A regulação da carga urbana é atividade multissetorial e deve ser elaborada com o objetivo de atender a todos esses fatores, que poderiam ser sintetizados em uma palavra: eficiência.
Torna-se imperioso assumir, antes de tudo, que a carga urbana é essencial. Com frequência se nota uma verdadeira “oposição” ao transporte de carga, um desejo de eliminá-lo ou, pelo menos, limitá-lo ao máximo, a fim de abrir espaço para carros e coletivos. É preciso disciplinar o uso do espaço viário, buscando a máxima eficácia de resultados, pois, conforme foi dito antes, não haverá eficiência na cidade se a carga demorar, for muito cara ou, ainda, tiver que ser transportada por dezenas de quilômetros todos os dias.
Assim, as urbes precisam desenhar bairros com espaços para centros logísticos. A ideia de proibir pequenos centros locais de distribuição e empurrá-los para longe da cidade, a fim de que “não incomodem”, terá sempre como consequência a obrigatoriedade de se percorrer enormes distâncias diariamente até que a mercadoria chegue ao seu destino, prejudicando a eficiência e sustentabilidade da logística urbana. O desejo de carga entregue com poucas emissões de gases poluentes, de forma competitiva e rápida, passa necessariamente pela aceitação de centros logísticos espalhados por toda a geografia da cidade.
A febre do comércio virtual, com entrega em 24 horas, é tão perversa para a sustentabilidade quanto o uso do automóvel para ir à padaria a 600 metros de casa. O carbono por grama é assustadoramente alto quando um sistema logístico inteiro tem que ser posto em funcionamento para realizar uma entrega em prazo tão curto. As oportunidades de se juntarem mercadorias para transportá-las ao mesmo tempo, reduzindo desse modo a emissão de CO2 por quilograma são praticamente eliminadas. E consolidar cargas passa, evidentemente, pela existência de maior quantidade de espaços logísticos. Eles podem ter dimensões modestas, reduzidas – suficientes para atender, por exemplo, a entrega de comida em um bairro. Muitos restaurantes, aliás, já estão implantando suas cozinhas em condomínios específicos para isso. A propósito, o atendimento ao cliente nesse tipo de demanda teria o potencial de abrir oportunidades para, por exemplo, ocupar espaços públicos abandonados. Os vãos embaixo de viadutos poderiam ser concedidos a plataformas que operam com delivery de comida para a implantação de pontos de agrupamento de carga, apoio e descanso dos entregadores. Em contrapartida, teriam de revitalizar aquelas áreas, não raramente tornadas “invisíveis” (como as populações que costumam morar nelas, desrespeitadas em seu legítimo direito a uma habitação digna).
As cidades precisariam igualmente apostar na construção de pequenos pontos de retirada de encomendas. Estações de metrô, terminais de ônibus e postos de gasolina poderiam receber armários automatizados para a entrega de cargas daquela região. Em vez de uma caminhonete ficar rodando pelo bairro para entregar produtos na porta de cada destinatário, ela se dirigiria a um centro de apoio, por assim dizer, e lá ocorreriam todas as retiradas. Um aviso no celular do cliente informaria a disponibilidade da carga. Com o mesmo aparelho, a pessoa capturaria um código que permitiria abrir o pequeno armário onde estaria a sua encomenda. Futurista demais? Não para a rotina digital de transações com a qual já convivemos cotidianamente.
Seria um equívoco pensar em uma legislação que apenas restringisse o tamanho de veículos ou horários de entrega. A carga é como água: ela sempre irá buscar o melhor caminho. Cidades que proibiram pequenos caminhões assistiram a uma explosão de caminhonetes (mais ineficientes); outras que vetaram tais veículos viram cargas serem entregues no porta-malas de carros (ainda mais ineficientes). A construção da regulação deve passar necessariamente pelos consumidores mais importantes: centros comerciais, restaurantes, lojas e supermercados. É preciso construir um consenso com os destinatários das cargas para disciplinar sua distribuição.
Na China, os caminhões na China representam 11% do total de veículos, contudo a contribuição deles para a contaminação do ar é desproporcional. São responsáveis por 19% dos hidrocarbonetos, 57% de Nox e 78% do material particulado. Para frear as emissões, além de diminuir a quilometragem percorrida por carga, muitas cidades de lá – e de outros países – têm criado distritos verdes, onde apenas veículos não poluentes podem ingressar. Isso incentiva a adoção de uma frota limpa e beneficia o clima e a saúde dos territórios urbanos.
Soluções de mobilidade ativa também seriam muito bem-vindas. Incentivar a troca de motocicletas por bicicletas tem potencial de forte impacto na sustentabilidade e eficiência.
Por fim, registre-se uma referência ao espaço público mais nobre e disputado das cidades: o meio-fio. Ele é uma “unanimidade”. Todos querem o meio-fio. O ciclista deseja vê-lo garantir uma ciclovia, o pedestre gostaria de tê-lo resguardando uma calçada maior, o motorista de carro pensa no estacionamento, o usuário de ônibus sonha com a faixa exclusiva, o dono do restaurante imagina um espaço para mesas e cadeiras, a empresa de logística necessita ter onde parar para entregar suas cargas, taxistas e carros de aplicativo precisam embarcar e desembarcar seus passageiros. Desses usos, o menos defensável e mais prejudicial ao ambiente da mobilidade é o estacionamento privado. Compete a cada cidade alocar os espaços do meio-fio da maneira mais eficiente.
Uma política de gestão do deslocamento nos territórios urbanos que contemple desde a regulação consensual da carga e o incentivo a soluções sustentáveis e criativas, como a criação de pequenos centros locais de distribuição, até a atenção ao meio-fio, passando por frotas limpas e mobilidade, pode resultar em uma cidade mais bem equipada e inclusiva, com ampliação de oportunidades, tornando-a, desse modo, um lugar melhor para se viver – e enfrentar tempos de cólera, de infortúnios, de pandemias.
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