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    ILUSTRAÇÃO: CARVALL

questões sociais

Tempo perdido

Jovens relatam o que passaram durante o governo Bolsonaro

Tiago Coelho | 18 jan 2023_10h11
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De que maneira o desmonte de serviços estatais de grande importância, a desorganização nos órgãos federais e o corte de recursos para instituições essenciais – como o sus e o sistema público de ensino –, além da inflação, da falta de ofertas de emprego e da precarização do trabalho, afetaram a vida de brasileiros mais vulneráveis, por sua situação econômica, racial ou sexual? A piauí ouviu o relato de cinco jovens, que contam como enfrentaram os piores anos de suas vidas, e como conseguiram sobreviver a eles.


 

O FILHO HONRADO

O adolescente Lorenzo Dias Palhinhas montava com destreza o alçapão nas árvores para capturar pássaros que vendia no Morro do Chapadão, na Zona Norte do Rio de Janeiro. Certo dia, escondido da mãe, foi oferecer os bichos na feira da Pavuna, bairro a cerca de 4 km de onde morava. Sua mãe, Celline Dias Palhinhas, atendente de lanchonete, ficou sabendo da aventura e deixou o filho de castigo por ele ter se arriscado a ir tão longe. 

Em 2021, quando Lorenzo tinha 13 anos, a dona de uma lanchonete no morro ofereceu ao adolescente, que era muito comunicativo, um emprego de entregador de seu comércio. O serviço era diferente do delivery tradicional, em que o cliente liga fazendo o pedido: ele deveria encher a mochila com lanches e refrigerantes, e oferecer pela favela. Como a lanchonete ficava na esquina da casa de Lorenzo e não atrapalharia a rotina dele na escola, sua mãe autorizou. A meta era vender setenta lanches por dia. Ele trabalhava de manhã e à noite. À tarde, ia para a escola. Quando batia a meta pela manhã, não vendia à noite. Ganhava cerca de 350 reais por semana. 

No dia 27 de outubro passado, Celline, de 28 anos, mandou uma mensagem para o filho, alertando para que evitasse circular pela rua: “A PRF está fazendo operação. Fique em casa ou na lanchonete.” Próximo da meia-noite, Lorenzo terminou o expediente na rua e, para chegar logo à lanchonete, pegou carona na garupa de um motoqueiro. Agentes da Polícia Rodoviária Federal (PRF) interceptaram os dois, revistaram o garoto, depois o mandaram seguir. Mas um tiro foi disparado, segundo moradores, por policiais. Lorenzo foi atingido na cabeça.

Celline estava na casa da irmã, a poucos metros do local do crime. Recebeu uma ligação da sobrinha e correu para lá. Ela lembra que, ao chegar, ouviu uma mulher gritar: “Uma criança baleada! É o filho da Celline!” A mãe de Lorenzo diz que os agentes da PRF não prestaram nenhum socorro. Desesperada, ela sentou-se ao lado do filho. Ele já estava morto. Tinha 14 anos.

De madrugada, os policiais quiseram levar o corpo de Lorenzo. “Eu disse a eles: não vou deixar vocês levarem o meu filho!”, conta Celline. Os moradores se mobilizaram para impedir o traslado. Entraram em contato com a Defensoria Pública e com o vereador Luciano Vieira (PL-RJ). Ambos recomendaram à família que não autorizasse a retirada do corpo até a chegada da perícia. 

Começou a cair uma chuva fraca e persistente. “Mas eu não podia sair de perto dele e deixar fazer alguma covardia com meu filho.” Celline viu uma nota de 10 reais perto da mão de Lorenzo. Era possivelmente o dinheiro que recebeu na sua última entrega. A mãe pegou a nota e jogou longe. Os moradores cobriram o corpo para protegê-lo da chuva. 

A PRF continuou na favela, mas a perícia não apareceu. Próximo de amanhecer, Celline achou melhor levarem o corpo do filho no carro do vereador Vieira até o Hospital Estadual Carlos Chagas. De lá, a mãe seguiu para a Delegacia de Homicídios e depois para o Instituto Médico Legal (IML). 

Em nota à imprensa na época, a PRF afirmou que o adolescente atirou nos agentes – argumento que causa revolta em Celline. “Tem vídeo dele morto com a mochila de entrega nas costas. Tem vídeo dele entrando na loja com a mochila. Tem provas. O que falta para a Polícia Rodoviária falar: ‘Foi um erro nosso, ele realmente era trabalhador’? Isso é o que mais me dói”, diz ela. “Não me conformo. Tentam sujar a imagem dele. Eu queria que a mesma boca que disse que ele estava envolvido com o crime fosse na televisão dizer que a polícia cometeu um erro. Limpar a imagem do meu filho é uma questão de honra.” 

Entre os braços policiais do Estado, a PRF é o órgão que sucumbiu de modo mais descarado ao bolsonarismo, como mostrou a reportagem da piauí O instrumento (piauí_191, agosto de 2022). Sob Bolsonaro, obteve aval para extrapolar suas atribuições para além das estradas federais. “A PRF é um órgão importante nas rodovias e não em operação em favelas”, diz o ouvidor-geral da Defensoria Pública do Rio de Janeiro Guilherme Pimentel. Uma das ações da PRF nas comunidades provocou a segunda maior chacina de todos os tempos no estado do Rio, em maio passado, com a morte de 23 pessoas no Complexo da Penha (Vila Cruzeiro). 

Não foi a única chacina do estado durante o governo Bolsonaro. Em maio de 2021, foram mortas 28 pessoas na favela do Jacarezinho – é a maior chacina da história do estado. Em julho de 2022, dezessete pessoas foram mortas no Complexo do Alemão – o quinto maior massacre.

Além do aparelhamento da PRF, o ouvidor-geral aponta outros problemas relacionados à atividade das polícias nas favelas cariocas. Ele diz que o governo Bolsonaro fomentou nas instituições policiais “uma visão bélica e de criminalização da favela e da juventude negra”. Nos últimos quatro anos também se deterioraram progressivamente os mecanismos de controle que podem coibir ações como a que matou Lorenzo. O ouvidor-geral cita especificamente uma liminar do procurador da República Eduardo Benones que pediu na Justiça a proibição da atuação da PRF em ações no perímetro urbano. O pedido foi aceito inicialmente, mas depois derrubado pela União. 

Suspeita-se que a PRF atuou no Morro do Chapadão para vingar a morte de um policial de seu quadro durante um assalto na região. “Na Defensoria, a gente tem um alerta chamado ‘operação vingança’”, conta Pimentel. “Quando um policial morre, além de lamentarmos a morte e nos colocarmos à disposição da família para obter respostas, acendemos um alerta de que isso possa gerar operação de vingança nas comunidades. Mas a vingança é um propósito privado e ilegal. Não cabe às forças de segurança do Estado.” Pimentel diz que conversou com os moradores do Chapadão e que a justificativa da PRF de que atirou em Lorenzo em legítima defesa é insustentável. A Defensoria acionou órgãos internacionais para pressionar o Estado a oferecer respostas sobre o que aconteceu. 

Além de Lorenzo, Celline é mãe de um menino de 3 anos que não para de perguntar pelo irmão. Celline mostrou à piauí uma mensagem que Lorenzo mandou para a avó. Como a matriarca cozinha muito bem, o adolescente propôs a ela que fizesse algum lanche para ser vendido na favela, onde já tinha conquistado uma boa base de clientes. Mãe e filho conversavam muito sobre trabalho. Certa vez, ele perguntou: “Mãe, como é que faz para ganhar tão bem quanto o patrão?” Celline explicou: “O patrão sempre ganha mais que o empregado.” Ao que Lorenzo respondeu: “Então eu quero ter meu próprio negócio.”

A mãe achou melhor aconselhar que ele tentasse uma vaga de jovem aprendiz. “Você vai ganhar experiência para conseguir um emprego e ter benefícios. Se passar mal, se machucar e não conseguir fazer as entregas, qual benefício vai ter? Vai ganhar alguma coisa? Lembra quando você teve dengue e ficou três dias de cama? Você ganhou alguma coisa?” 

O RAPAZ DA ENTREGA

No início do ano passado, Francisco Vinícius Matias foi visitar sua família no interior do Ceará. Pegou uma foto de quando era pequeno e mostrou aos familiares. “Vocês estão vendo um menino ou uma menina nessa imagem?” Os parentes olharam com atenção. Apesar da roupa e do cabelo associados ao gênero feminino, afirmaram que enxergavam um menino naquela criança de rosto emburrado. “É um menino forçado a ser menina”, disse Matias, hoje com 26 anos. 

Em 1997, quando tinha 8 meses de idade, ele foi entregue pela mãe para ser criado por uma tia-avó, Maria Matias, a dona Miró, no Ceará. Passou a chamá-la de mãe. Ele cresceu ouvindo forró e sertanejo no rádio. Aprendeu a tocar violão e teclado, e participou de fanfarras e festivais de música locais. A contragosto, visitava a mãe a cada dois ou três anos em Jacobina, no interior da Bahia. 

Matias era feliz no Ceará. Mas, quando completou 16 anos, a tia-avó morreu, e o adolescente foi mandado de volta para a mãe. Não se sentiu acolhido, sobretudo no que diz respeito à sua sexualidade e identidade. Ele primeiro se apresentou para a família como uma mulher lésbica. “E já dessa maneira minha mãe não me aceitava.” Em 2015, formou-se no ensino médio e conseguiu um emprego de carteira assinada como agente do sistema de estacionamento de Jacobina, cidade de 80 mil habitantes. Seria o primeiro e último trabalho com carteira assinada que conseguiria. 

Como passava o expediente inteiro na rua sem beber muita água nem ir ao banheiro, desenvolveu um quadro grave de cálculo renal. O médico recomendou que abrisse mão do emprego, caso contrário a doença se agravaria. Foi o que ele fez. Por causa dos embates com a mãe e aspirando ser músico numa cidade maior, no fim de 2016 mudou-se para Feira de Santana, com cerca de 620 mil habitantes. Ofereceu seu trabalho como cantor e instrumentista nos bares da cidade, mas lhe faltavam contatos. 

A primeira amiga que fez na cidade, e que o acolheu em sua casa, sugeriu que Matias prestasse vestibular para o curso de música da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS). Além de se graduar na área, conseguiria uma vaga num dormitório na residência universitária. Ele se sustentava dando aulas de violão e de reforço escolar, além de fazer algumas apresentações em bares. No final de 2017, foi aprovado no vestibular. Conseguiu uma vaga em um quarto compartilhado e passou a contar com três refeições gratuitas por dia na universidade.

A vida ia entrando nos eixos. Em 2018, Matias assumiu publicamente o gênero com o qual sempre se identificou: passou a se referir a si mesmo no masculino. “Alguns familiares diziam que era uma fase e logo passaria. Outros, que a universidade tinha botado essa ideia na minha cabeça. Teve quem dissesse que eu estava dando desgosto para a família. Mas eu estava ali, sozinho, pagando minhas contas. Nenhuma daquelas opiniões mudaria quem eu era”, diz. 

Em 2018, quando estava tudo certo para ele iniciar o tratamento hormonal, Matias baixou do site do Ministério da Saúde uma cartilha voltada para a saúde de homens trans. “No tratamento, eu ganharia peso, mudaria a voz. Era importante mudar a voz de aguda para grave porque é meu instrumento de trabalho.” Mas no meio do ano teve mais uma briga com a mãe. O motivo de sempre: a identidade de gênero. Alguns dias depois, a mãe foi internada por causa de um aneurisma. “Esse episódio potencializou a transfobia na família. Meus parentes diziam que ela teve um aneurisma por minha causa. E que se ela morresse a culpa seria minha”, conta Matias. 

Os familiares pediram que ele deixasse Feira de Santana e voltasse a Jacobina, para cuidar da mãe. “Eles diziam: ‘Se você a adoeceu, é responsabilidade sua cuidar dela.’ Fiquei apavorado. Me faziam sentir culpado. Mas eu deveria abandonar meu sonho de viver de música por uma pessoa que, quando eu tinha 8 meses, me entregou para minha tia-avó?” Matias não se mudou, mas decidiu adiar o tratamento hormonal para não causar mais celeuma na família. 

Em outubro daquele ano, Jair Bolsonaro foi eleito presidente. “A família de minha mãe apertou 17 com força nas urnas, com algumas exceções.” Logo nos primeiros dias do novo governo, a cartilha de cuidados para homens trans foi retirada do site do Ministério da Saúde. “Quem tinha baixado ia repassando para outros homens trans”, recorda Matias. 

Também no começo da gestão Bolsonaro, foi extinta a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (Secadi), que tinha entre seus atributos o de “orientar políticas públicas educacionais que articulem a diversidade humana e social aos processos educacionais”.

Levantamento feito pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais do Brasil (Antra) aponta que em 2020 foram assassinadas 175 pessoas trans no país. É o segundo maior índice desde 2017, quando foram registrados 179 assassinatos.

A renda mensal de Matias antes era de 1,2 mil reais, metade vinda de um auxílio da universidade, metade das aulas de violão que dava e das apresentações em bares. Com isso, ele conseguiu alugar um quarto e sala para morar sozinho. Mas chegou a pandemia. Na primeira semana de isolamento, seus cinco alunos cancelaram as aulas. Depois, a universidade fechou, e ele perdeu as três refeições gratuitas. 

Em Feira de Santana, há um famoso salgadinho: a coxinha de frango da Val. Matias conhecia a cozinheira e sugeriu a ela um serviço de delivery durante a pandemia, já que os clientes haviam sumido. Val gostou da ideia e o chamou para fazer as entregas. Com uma bicicleta velha emprestada, ele fez apenas duas entregas no primeiro dia. Conforme divulgava o serviço nas redes socais, o número de pedidos foi aumentando. Nos fins de semana, às vezes chegava a fazer quarenta entregas. 

Matias ganhava 2,50 reais a cada entrega. “Era pouco, mas juntando, em uma semana, já dava para garantir a mistura, comprar pão e fazer a feira.” Ele também conseguiu comprar sua própria bicicleta, embora mais velha do que a emprestada. Em poucos meses, escapou de três assaltos. Aprendeu que, durante uma entrega em rua deserta, você chama ou buzina apenas duas vezes. Se ninguém aparecer logo, é sinal de perigo. Certa noite, numa rua dessas, entregou o pedido e partiu depressa. Logo depois, um entregador de uma pizzaria passou por ele, rumo a uma casa próxima a um terreno baldio. Horas mais tarde, Matias soube que dois homens mataram o entregador, jogaram o corpo no terreno baldio, comeram as pizzas e quebraram a maquininha de cartão de crédito. “Eu fui ficando aterrorizado: trabalhava das seis da tarde até meia-noite, uma da manhã”, diz. 

Não era apenas a criminalidade que tirava seu sossego. Havia clientes que faziam questão de chamá-lo no feminino. As duras dos policiais eram o que mais o amedrontava. “Eles costumavam revistar os entregadores. Quando olhavam meu documento com nome feminino, me davam safanão e diziam: ‘É uma sapatão.’ Eu que não era maluco de dizer que sou um homem trans para eles.”

Quando terminava o expediente, Matias se sentia fisicamente exausto, mas a cabeça não sossegava com a abundância de pensamentos. Qualquer barulho o assustava. Um curto-circuito numa lâmpada, numa madrugada, o fez descer as escadas, desesperado, até a rua. Foi acalmado por um vizinho. Ele começou a ter crises de pânico e insônia. O coração acelerava, o choro irrompia, o corpo tremia. Só conseguia relaxar às quatro da manhã. 

Matias procurou uma psiquiatra que lhe receitou remédios tarja preta. O remédio para a ansiedade aliviou um pouco sua agonia constante. Os indicados para dormir fizeram efeito apenas nos primeiros dias. Quando se sentia muito mal, tocava no violão um forró que sua avó cantava para ele: Balança a rede pro menino não chorar/Oi, balança o menino, Sinhá/Depois de grande nunca mais fui mimado/Mundo malvado, só faz me maltratar/Vivo chorando, tropeçando na vida/Sem mamãe querida pra me embalar/Balança, Sinhá.

Para incrementar a renda, Matias criou um serviço chamado Corno Delivery, em que os clientes o chamavam pelo WhatsApp, de tarde, para pequenos serviços: buscar cerveja, compras na mercearia, na farmácia ou em lanchonetes. Enquanto isso, assistia às aulas online da faculdade pela manhã e entregava as coxinhas da Val à noite. Os trabalhos de entregador lhe garantiam uma renda de 1,2 mil reais. Matias também deu entrada no auxílio emergencial. Com medo de ter complicações na documentação que lhe impedissem de conseguir o benefício do governo, adiou o desejo de trocar seu nome de batismo na carteira de identidade. 

Por causa do estresse e da má alimentação, Matias desenvolveu um quadro de refluxo gastroesofágico. Com 1,65 metro de altura, pesava 45 quilos em 2020 e sofria com dores nas costas, por causa da mochila que carregava quase o dia inteiro. E começou a beber cerveja todo dia. Quando ele passou a chegar bêbado na lanchonete da Val, ela pediu que ele se afastasse do trabalho para se tratar. “Eu era uma pessoa trans exercendo um trabalho extremamente estressante. Minha psiquiatra ficou em alerta comigo. Minha cabeça estava tão cheia que tinha dia que eu só queria deixar de existir”, ele diz.

Em outubro de 2020, Matias conheceu no aplicativo de encontros Tinder uma jovem operária de fábrica. “Ela me estimulava a me cuidar, a tomar remédio, a pegar leve com a bebida.” No fim daquele ano, Val o chamou de volta. A segunda fase de entregador durou até julho de 2021, quando Matias conseguiu uma bolsa de iniciação científica na faculdade. O valor da bolsa era inferior ao que obtinha com as entregas, mas ele já não suportava mais a carga de trabalho. “Saí da experiência como entregador vendo que essa é uma das profissões mais precarizadas que existem.” Em 5 de novembro, ele começou o tratamento com a testosterona. “O medicamento aumentou muito. De 56 reais para mais de 200 reais. Tem pessoas trans desistindo do tratamento por falta de dinheiro.” 

As aulas de violão e os shows nos bares voltaram em 2021. No primeiro show da retomada, no segundo semestre, Matias tocou para quarenta pessoas. Os contatos com a mãe continuaram esparsos. Em março de 2022, ele mandou para ela uma mensagem de feliz aniversário e recebeu de volta um áudio em que dizia que o filho era um desgosto em sua vida. Nas eleições presidenciais de outubro, ele votou em Lula. Mas diz estar cauteloso sobre o futuro. “Acostumei a não me empolgar quando as coisas vão indo bem. Sempre estou em estado de alerta. Fiquei feliz em tirar o Bolsonaro do poder, mas metade do país queria sua permanência. Não temos mais um transfóbico no poder, mas seus apoiadores estão aí. Ser trans ainda é perigoso no Brasil.”

O ALUNO QUE SOBREVIVEU

Quando participou do movimento negro em Olinda, o pernambucano Simão Pedro, de 24 anos, aprendeu que a educação era uma forma de emancipação. O mesmo dizia, com outras palavras, sua mãe, uma doméstica que criava os três filhos sozinha e o estimulou a entrar na universidade. “Meu pai é a figura do pai no Brasil: ausente”, diz Pedro. Ele fez então vestibular para letras e, com uma bolsa do Programa Universidade para Todos (Prouni), começou o curso na Faculdade de Ciências Humanas de Olinda (Facho), uma instituição privada. 

Na universidade, o coordenador do seu curso era negro. “Foi a primeira vez na vida que eu vi um homem negro numa posição de saber e liderança. Tive uma identificação com ele e vi que esse caminho era possível”, conta Pedro. Ele também se aproximou de grupos de discussão de filosofia e psicanálise, disciplinas que o interessavam. 

Esse era o lado acolhedor da escola, pois havia também um ambiente refratário a sua negritude. Pedro insistia em usar suas camisas de time de futebol, bermuda e o cabelo black. “Era importante sustentar minha identidade”, afirma. “Para você ascender academicamente, você tem que ter uma imagem compatível com esse espaço.” Pouco antes da pandemia, uma professora o aconselhou a amarrar o cabelo e “não o deixar armado”, caso quisesse obter uma vaga de estágio. “Vindo de professora foi marcante. Ela costumava dizer que para ser aceito no mercado de trabalho, eu tinha que ter uma postura profissional.”

A ideia de que devia se conformar a um padrão social de comportamento começou a incomodá-lo cada vez mais. “Bater de frente com essa galera afetou muito minha saúde mental”, ele diz. A pandemia piorou tudo. 

Pedro trabalha como entregador numa distribuidora de alimentos (ele diz que, na verdade, é “um faz-tudo”), sem carteira assinada, recebendo um salário de 850 reais. Como seu setor foi considerado essencial na pandemia, ele não parou de trabalhar durante o período. “Ficava muito exposto à Covid, o que me gerava muita ansiedade. Achava que a qualquer momento a doença me derrubaria.” Além disso, ele viu as vagas nos hospitais de Olinda atingirem o limite, sem respiradores para todos os doentes. Era estressante imaginar que um familiar poderia não conseguir um leito. No cemitério, começaram a abrir valas comuns, enquanto o Bolsonaro ironizava as mortes. Eu não aguentava mais.”

Ele tentou conciliar o trabalho com as aulas a distância, adotadas pela universidade. Estava morando sozinho numa casa de três cômodos numa rua barulhenta, a internet era precária e caía com frequência, não conseguia se concentrar na tela diminuta do celular, pois não tinha computador. “Não estava me adaptando ao ensino remoto. Isso exige uma organização do espaço doméstico. E eu ajudava na criação do filho recém-nascido de minha irmã, que mora próximo de minha casa.” 

Ele começou a ter crises de pânico. Prestes a ser reprovado em todas as aulas, trancou a matrícula na faculdade. A decisão diminuiu o fardo da rotina de Pedro. Mas teve um efeito de profunda desesperança. “Você entra na universidade e cria um horizonte que é um futuro profissional. Ao trancar o curso, senti que perdi o controle do que eu tinha planejado para a minha vida. O Brasil naquele momento impossibilitava minhas chances de reimaginar meu futuro. E eu só pensava que não ia sair vivo daquele pesadelo.”

Pedro temia que o contato constante com os clientes da distribuidora, apesar do uso de máscara, pudesse levar com que a Covid o infectasse, mais cedo ou mais tarde. Quando retornava do trabalho no fim do dia, tinha taquicardia, tontura e falta de ar. “Chegou minha hora”, pensava. Era ansiedade, não Covid. 

Três assassinatos em 2020 o abalaram fortemente: o de George Floyd, asfixiado por um policial nos Estados Unidos, o do adolescente João Pedro, também morto por policiais numa favela em São Gonçalo, no Rio de Janeiro, e o do menino Miguel, que caiu do alto de um prédio no Recife enquanto estava sob os cuidados da patroa de sua mãe. “O Miguel era a criança que eu fui. Minha mãe também era doméstica e me levava para o trabalho. Foi um baque.”

Os negros também foram os que sentiram mais fortemente a pandemia. Um estudo do Instituto Pólis realizado entre março de 2020 e janeiro de 2022 na cidade de São Paulo indicou que no período morreram 30% a mais de homens negros, comparado ao número de óbitos de homens brancos. A pesquisa constatou ainda que as mulheres negras foram quase 40% mais afetadas pela Covid do que as mulheres brancas. 

Pedro estava afundando na depressão quando resolveu intensificar sua participação no movimento negro de Olinda. “Eu me juntei a grupos que organizaram protestos na frente do prédio em que Miguel morreu.” Eram grupos e coletivos independentes que manifestavam em prol de reivindicações da população negra, como a distribuição de cesta básica nas favelas. “O racismo desumaniza o homem negro. Como o racismo se estrutura no Brasil, o homem negro é forjado apenas para o trabalho ou para a guerra”, diz Pedro, que já teve um fuzil apontado para sua cabeça numa blitz policial. O engajamento era o fio que o ligava à vida. Mesmo assim, “o suicídio virou uma questão”, ele conta. “Passava pela minha cabeça não ser mais interessante estar por aqui. Ou esperar o que viria depois.” 

As clínicas públicas de atendimento psicológico estavam fechadas. As poucas que atendiam tinham muita demanda e uma longa fila. A situação era ainda mais crítica porque ele estava sozinho durante a pandemia. Tinha terminado um relacionamento amoroso em 2019, mas considera que essa falta não foi uma questão importante. “Quando você é negro, às vezes, isso não é uma questão muito central na sua vida. A forma de resistir nos espaços, muitas vezes, é abdicando desse afeto. Criando uma armadura e não se deixar afetar.”

Ao longo de 2020, Pedro assistiu às lives do advogado e ensaísta Silvio Almeida, agora ministro dos Direitos Humanos e Cidadania, de quem também leu o livro Racismo Estrutural. “Numa live, no fim de 2020, ele disse que aquele momento ia passar. E que, quando passasse, precisaria que estivéssemos vivos para lutarmos pelo que viria depois da pandemia: tirar Bolsonaro do poder e reconstruir as condições materiais da vida, como renda e emprego.” 

No dia 31 de dezembro de 2020, Pedro usou seu perfil no Twitter (@preto_comunista) para agradecer a Almeida. Escreveu: “Metade do ano eu tava numa depressão fodida. Além disso, as crises de pânico nunca estiveram tão ruins. Muita coisa tinha dado errado. Quem me salvou foi o Silvio. As lives dele. Foi por causa dele que aderi ao marxismo. Talvez ele nem saiba, mas ele ajudou a trazer sentido para as coisas de novo. Me deu esperanças e armas para a luta. Ele falou: ‘Eu reafirmo meu compromisso com todas as pessoas negras do mundo.’” 

Uma hora depois, Almeida respondeu: “Obrigado por isso. Ajudar nos ajuda. Salvar uma vida também nos salva. Suas palavras renovam o sentido de minha luta e fazem com que meu 2021 se abra cheio de esperança. Você precisou ouvir aquilo; eu precisava ler o que me escreveu. O círculo do amor se completa. Abraço!” 

Em 2022, Pedro retomou as aulas na faculdade. Sobre a vitória de Lula, ele diz: “Com Bolsonaro, não havia chance de luta. Com Lula, é possível. Mas não sou otimista. A gente que é negro nunca deve ser otimista com as instituições. O Estado brasileiro é fundado no extermínio do negro. Independentemente de quem esteja lá no poder.”

UM CARA CUIDANDO DE SI

A mãe havia notado que Leonardo Nascimento estava comendo pouco e emagrecendo. Ela trabalha num centro de referência para tratamento de Aids em São Paulo e recomendou ao filho que fizesse um exame. “Foi a última coisa que passou pela minha cabeça, que eu pudesse ter HIV”, conta Nascimento. Era 2018 e ele tinha 20 anos. Fez o teste. Uma hora depois, uma enfermeira o chamou na sala e disse sem rodeios: “Deu positivo.”

Nascimento ficou realmente confuso. Contrair o vírus HIV era algo que passava ao largo de suas preocupações e também das pessoas com quem se relacionava. Ele não sentia o medo que a geração dos anos 1980 e 1990 teve da doença. Só queria entender o que o resultado positivo significava. O que mudaria em sua vida? “Não sabia o que pensar. Dificilmente um jovem pensa em proteção na hora que vai ter alguma relação. Aqui em São Paulo, eu conheço muita gente que não está preocupada com isso. Eu mesmo não ligava”, diz Nascimento, hoje com 24 anos. 

Ele parou na entrada do posto de saúde e ligou para a irmã mais velha, que tinha quase o dobro de sua idade. Ela talvez soubesse esclarecer as perguntas que pululavam em sua cabeça. Pensou que talvez não pudesse mais se relacionar com as pessoas. A irmã chegou. Nascimento tem uma fala calma e direta. A irmã o abraçou e disse que ele levaria uma vida normal, pois havia remédios para a doença. “Ela conseguiu me acalmar. É a pessoa que mais me apoia. Confio em tudo o que ela fala.”

Os irmãos voltaram para casa juntos e contaram à mãe, que chorou e depois ficou em silêncio por um longo tempo. Chegou a irmã do meio. E foi ela a pessoa que mais se desesperou na família. Chamou a mãe no quarto e as duas discutiram em voz alta. “Imagino que minha irmã tenha ficado brava porque achava que era função de minha mãe me alertar sobre os riscos. Principalmente por trabalhar com pacientes com HIV.” Quando a irmã saiu do quarto, porém, se recompôs, e disse para ele que tudo ficaria bem.

Nascimento é bissexual e teve a primeira relação aos 17 anos. “Nunca tinha rolado essa conversa sobre vida sexual em casa. Meus amigos dizem que com eles também não teve. Quando a gente vê campanhas na rua, nos hospitais, passa direto.”

Ele ligou para o melhor amigo e contou sobre o exame. O amigo pediu para visitá-lo. Os dois conversaram. “Você sabe que isso não muda em nada nossa amizade. Pode contar comigo todo momento”, disse o amigo.

Depois, Nascimento contou para outras pessoas próximas. “Pensei que ia ser julgado e todo mundo ia se afastar de mim. Não tenho muitos amigos. Mas depois de falar com ele, tomei coragem para contar para os outros amigos. Mais tarde, entendi que não precisava sair por aí contando para todo mundo.” Os amigos mais próximos permaneceram ao seu lado, mas ele percebeu que outros se afastaram depois que a notícia se espalhou por seu círculo de amizade.

A mãe de Nascimento marcou uma consulta com um infectologista. Depois da primeira coleta, o médico informou ao jovem que ele estava indetectável e intransmissível. “Não falto a nenhuma consulta. Tomo os remédios. Passei a me valorizar.” Ele decidiu não ir atrás da pessoa que acredita ter transmitido o vírus. Foi numa relação casual, e os dois se encontravam em festas. “Ele é muito despreocupado. Não teria a menor importância se eu contasse. Não falou de proteção comigo. Eu também não me preocupei. Na minha mente, tenho uma parcela de culpa. Acho que, se eu falasse com ele, ia perder o controle. Ia xingar, falar um monte de coisas. Hoje eu só quero distância.”

Nascimento foi ficando mais recluso. Deixou de frequentar baladas nos fins de semana. Com a pandemia, se isolou em casa. “No hospital, disseram que meu sistema imunológico me deixaria mais suscetível caso pegasse Covid. Tive medo. Vi um monte de gente morrendo e me isolei para me proteger.” 

Em 2019, ele havia iniciado a graduação em biomedicina na Universidade Estácio, uma escola privada. Mas no ano seguinte sua mãe teve dificuldades financeiras. “Ela começou a trabalhar mais na pandemia, mas o salário passou a ser pouco. Não conseguiu conciliar os gastos aqui de casa com os da minha faculdade.” Nascimento se angustiava em não poder sair e conseguir um emprego para poder ajudar. O tempo corria, e Nascimento passava o dia ora deitado na cama, correndo o feed das redes sociais no celular, ora na janela do apartamento, em Jardim Prudência, na Zona Sul de São Paulo. Quando recebia mensagem dos amigos perguntando se estava bem, dizia que sim. “Estava ansioso e deprimido.”

Certo dia, botou uma máscara e foi até o centro de referência conversar com um psicólogo. “Falei que me sentia sozinho, preso. E que queria ter a vida que eu tinha antes. Ir para a balada e não me preocupar com nada”, conta. “Nas conversas com o psicólogo, aprendi que a vida tem responsabilidades. E que preciso me cuidar. Queria tomar um rumo na vida.”

Essas conversas o ajudavam, mas ele sentia falta de alguém com quem pudesse falar. Chamou um deles até sua casa. “Foi muito bom ver alguém.” Demorou até que ele tivesse contato sexual novamente. “Eu tinha um lance que não era um namoro. Me aliviava. Ele tinha o mesmo diagnóstico que eu, o que tornava tudo mais fácil. Mas a gente usava proteção. Me dei conta de que havia outras doenças sexualmente transmissíveis além do HIV.”

Em 2020, uma assistente social do centro de referência onde Nascimento se trata o indicou à ong Associação de Auxílio à Criança e Adolescente Portador de HIV, que fica na Avenida Paulista. Ela disse que lá havia vários serviços, apoio e, principalmente, a chance de fazer uma rede de amizades. “Eles têm um serviço de acolhimento e tratamento psicológico, de assistência social e jurídica”, diz. No Brasil, a maior concentração de casos de infectados está na faixa dos 25 a 39 anos. São 492,8 mil casos identificados.

Conversando com amigos que conheceu na ong, Nascimento percebeu que o sistema de saúde pública, que sempre foi referência mundial no tratamento da Aids, estava gerando insegurança entre os pacientes. Em outubro passado, o governo Bolsonaro desviou para o chamado “orçamento secreto” 407 milhões de reais que o Ministério da Saúde destinaria à prevenção e ao tratamento da Aids e de outras doenças sexualmente transmissíveis. “Meus amigos dizem que diminuiu a quantidade na entrega de remédios. Antes davam uma quantidade para durar três meses. O estoque, agora, não passa de duas semanas.”

Para Nascimento, o pior aspecto da doença é o estigma e o preconceito. “Ainda tem gente que é expulsa de casa e é maltratada na rua. Conheço uma pessoa maltratada dentro de casa por ter HIV. Não tinha aonde ir. Ficou sem rumo.” A ong está pagando a faculdade de Nascimento. Ele não está namorando e diz que agora quer focar em obter um emprego e mostrar para a família e os amigos que consegue se cuidar sozinho.

A GAROTA DO ADEUS

Taciana Silva tirou o passaporte em 2019 e avisou: “Minha mãe, não vou ficar aqui nessa situação. Vou embora para algum lugar.” Ela tinha 32 anos e achou que era hora de tomar uma atitude. Como a família era muito grudada, ninguém acreditou que ela poderia partir de Salvador, na Bahia. 

Silva é a segunda de três filhos de um pedreiro e uma dona de casa. Começou a trabalhar aos 14 anos. “Queria fugir daquilo que algumas mulheres da minha família diziam: que eu precisava me casar para ter um marido que me sustentasse.” Ela ganhou uma bolsa do Prouni para cursar biologia na Faculdade de Tecnologia e Ciências (UniFTC), uma instituição privada, tornando-se a primeira da família a fazer um curso universitário.

Trabalhou como professora, mas a baixa remuneração a desestimulou. Fez, então, um curso de secretariado e mudou de profissão. Mas a inflação ia corroendo o salário e a taxa de desemprego só subia. “Alguns anos atrás, eu via famílias pobres do meu bairro andando de avião, comprando carro. Eu mesma fiz várias viagens”, conta Silva. “Aos poucos fui vendo a escassez de vagas de trabalho. Quando aparecia, o salário nunca era compatível com as exigências do mercado. Comecei a pensar no que eu queria para o meu futuro. Eu estava trabalhando para pagar as contas.”

Cerca de 80% da população de Salvador é negra (preta ou parda), mas, ao distribuir seu currículo nas lojas dos shoppings, ela só via vendedoras brancas. Quando entrava em disputa por uma vaga de emprego, elas eram preenchidas por brancos. “A elite baiana é muito racista”, diz Silva. “Eu sou uma mulher negra, nordestina. Tinha todos os pré-requisitos para não viver bem no Brasil de extrema direita que surgia.”

No bairro Valéria, na periferia de Salvador, onde vivia com a família, ela viu a violência crescer nos últimos anos. “As facções criminosas passaram a guerrear umas com as outras, com armamentos cada vez mais pesados.” A hostilidade da polícia para com a população também aumentou. “Vi casos de pessoas na minha rua em que a polícia chegava sem ordem judicial, metia o pé na porta das casas, entrava e revirava tudo.”

Em 2019, Silva conseguiu um emprego de secretária em uma empresa que vendia placas de energia solar. Mas, em março de 2022, a empresa passou por uma crise por causa do aumento do preço do aço e precisou reduzir o número de funcionários. Silva foi demitida. 

Ela cogitou se mudar para o Rio de Janeiro, São Paulo ou Brasília. Mas sabia que a realidade nessas cidades não é muito diferente da de Salvador. Pegou parte do dinheiro da indenização que ganhou com a demissão e comprou uma passagem para Portugal. A facilidade para entrar no país europeu pesou na decisão. Escolheu viajar depois do Dia das Mães. “Não estou acreditando, Taci”, disse sua mãe. “Eu vou ficar trabalhando em vão aqui sem conquistar nada. Chegou a minha hora”, a filha respondeu. 

Quando seu pai viu as malas na sala, ele desabou, chorando. “Minha filha, quanto tempo você vai ficar lá?” Silva disse: “Não sei. O tempo de sair a resposta do meu pedido de residência. Deve levar uns dois anos.” O pai perguntou: “Será que vou estar vivo?” Ela respondeu: “Vai sim. A gente vai se reencontrar.” O pai de Silva tem 78 anos e não quis acompanhá-la até o aeroporto. “Minha filha, Deus te guie. Você tem família, tem uma casa. Se precisar, volte”, disse a mãe, antes de a filha entrar na sala de embarque, sem derramar uma lágrima. “Ela é uma mulher criada no sertão da Paraíba. Viveu muita coisa dura. Endureceu com a vida”, conta Silva.

Ela levou duas bagagens e entrou no país como turista. Ao chegar, o agente da imigração perguntou-lhe sobre o endereço de hospedagem. Ela apresentou uma reserva num hostel, mas, na verdade, já tinha um quarto alugado na cidade do Porto, onde vivem outras quatro brasileiras. Todas saíram do Brasil entre 2018 e 2020.

Silva não demorou a conseguir emprego de caixa em um restaurante. No Dia de Portugal (10 de junho), ganhou folga do trabalho. Era início do verão e ela estava na cidade havia apenas um mês. Foi passear na Ponte de D. Luís i, atravessou chorando do bairro de São Bento até a Vila Nova de Gaia. Sentou-se no Jardim do Morro, olhou para o Rio Douro e se perguntou: “Será que vale a pena perder o crescimento de meus sobrinhos? A velhice de meus pais? O contato com meus amigos?” Nesse dia, ela chorou, e não tinha ninguém para consolá-la. 

No dia 28 de outubro, Silva pensou pela primeira vez em voltar ao Brasil, depois que uma portuguesa idosa a chamou de “crioula” e disse para ela voltar para Cabo Verde. “Fiquei muito ruim da cabeça. Eu só estava existindo, e ela se incomodou com minha existência.” Quando Silva passa por alguma situação de estresse, aparecem manchas roxas em seu corpo. Naquele dia, surgiram duas na perna. Ela desabafou no Twitter: “Os dias de encanto com as terras portuguesas passaram. Quase todo dia choro com saudade de casa. Sim, porque não me sinto mais em casa aqui. E sim, apesar de tudo, eu sinto saudades do Brasil…”

Para aumentar a renda, ela costuma fazer hora extra. Chega a trabalhar doze horas por dia. “Há muita demanda em restaurante aqui. Mas também é uma área com carga pesada de trabalho. Tem dia que saio de casa ao meio-dia e só volto à meia-noite.” Em novembro, Taciana conseguiu um contrato de trabalho de quatro anos. Isso ajudará na hora que ela pedir um visto de residência em Portugal. 

“Creio que Lula não vá resolver no primeiro ano o rombo deixado por Bolsonaro. Vai levar um tempo até que as coisas se ajeitem”, diz Silva. “Minha mãe falou que chegou a ver o litro de leite a 10 reais. Eu fiquei louca.” Ela teme voltar ao Brasil e não encontrar emprego, tendo que recomeçar sua vida do zero. “Aqui tenho casa, um emprego que me paga em dia, 13º e 14º salários. Nos últimos anos, eu vi meu tempo passar no Brasil sem conseguir construir nada. O país roubou um pouco da minha juventude.”

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