Rita Lee: cantora morreu nesta segunda-feira (8) aos 75 anos Crédito: Julia Chequer/Folhapress
Terrivelmente feminina – ou por que toda mulher é meio Rita Lee
Cantora ajudou a educar o Brasil ao falar de amor e sexo numa perspectiva feminina
Em 1971, Jorge Ben (ainda sem o Jor) abria seu disco Negro é lindo com a canção Rita Jeep, uma homenagem a Rita Lee – morta em decorrência de um câncer nesta segunda-feira, 8 de maio. Com a originalidade de sua síntese, o compositor lançava ali, escondido numa música que nunca se tornou um hit, um verso definidor e definitivo sobre a cantora: “Terrivelmente feminina”.
O advérbio tem a mesma raiz – não apenas morfológica, mas simbólica, existencial – do adjetivo usado em Eu sou terrível, de Roberto e Erasmo Carlos. Em 2000, aliás, Rita chegou a cantá-la em dueto com Caetano Veloso. Porque ela era terrível desde seu surgimento na década de 1960, como só era permitido aos meninos então. Terrível em sua postura deliciosamente afrontosa, vestida de noiva no palco do festival, dizendo sem dizer ao Brasil os versos: “Você não sabe de onde eu venho/ O que eu sou/ Nem o que tenho”.
Rita era mesmo um mistério ali. Não era possível saber de onde vinha, o que era ou o que tinha. Nada na música brasileira parecia com aquela menina que combinava, de um lado, uma liberdade que vinha blowing in the wind trazendo aromas anglo-saxônicos da contracultura, do movimento hippie; e, do outro, o carnaval, a malícia inocente e a inocência maliciosa das marchinhas temperando seu rock, as cores quentes do solo brasileiro. Isso que permite, talvez, que a primeira música de um álbum batizado de Negro é lindo tenha sido sobre uma mulher loura.
Mais do que terrível, porém, Rita era, lembrando as palavras precisas de Jorge Ben, “terrivelmente feminina”. Ou seja, ela desenhou um modo próprio de ser mulher, que tinha em si uma liberdade desafiadora (frente à ditadura, ao machismo, ao mercado, à imprensa) e uma contundência sem pose, reta no recado e poeticamente sinuosa na forma de lançá-lo: “Pra pedir silêncio, eu berro/ Pra fazer barulho, eu mesma faço”. Tudo marcado por uma alegria que generosamente se voltava para a massa, como testemunham suas dezenas de hits — muitos deles com seu parceiro de música e vida Roberto de Carvalho.
Suas canções traçam os contornos dessa existência “terrivelmente feminina”. Em Todas as mulheres do mundo ela declama referências: “Nossa Senhora Aparecida, Dercy Gonçalves, Clarice Lispector, Carmen Miranda, Marília Gabriela, Hebe Camargo, Regina Casé, Elis Regina, Lillian Witte Fibe, Norma Bengell, Bibi Ferreira, Maria Bonita, Anita Malfatti…”, num rol extenso que termina com “e eu, e eu, e eu”. O refrão afirma: “Toda mulher é meio Leila Diniz”, tendo na atriz o sumo dessa feminilidade que Rita decanta. Foi Leila, aliás, que emprestou a ela o tal vestido de noiva usado no palco pela jovem Mutante.
Outro exemplo é Corista de rock, que canta em primeira pessoa a liberdade, num sentido amplo: “Pois eu sou corista num grupo de rock/ Que tem pra valer/ Um ponto de vista que não se limita/ De ser ou não ser/ Prefiro ser os dois”.
A bordo dessa liberdade, Rita ajudou a educar o Brasil – ao menos um tanto do muito que falta – ao despejar nas FMs o tesão visto da perspectiva feminina. Em Lança perfume, usa a substância proibida do título como metáfora para o sexo, cruzando dois terrenos minados e atravessando-os com incontestável elegância pop: “Me vira de ponta cabeça/ Me faz de gato e sapato/ Me deixa de quatro no ato/ Me enche de amor”.
Mania de você é sensorial: “Molhada de suor de tanto a gente se beijar”. Em Doce vampiro, pede, bebendo da sensualidade latente do universo dos vampiros: “Venha sugar o calor/ De dentro do meu sangue vermelho/ (…) Brindando a morte/ E fazendo amor”. Já Xuxuzinho descreve em poucas palavras o par ideal: “Papai do Céu/ Me dá um namorado/ Lindo, fiel/ Gentil e tarado”.
De seu lugar terrivelmente feminino, Rita construiu e afirmou em diversas canções maneiras de existir, condutas de vida, filosofias para se mover (com a graça de Jagger) na Terra. Muitas vezes, claro, elas são atravessadas pelo sexo: “Não quero luxo nem lixo/ Meu sonho é ser imortal, meu amor/ Não quero luxo nem lixo/ Quero saúde pra gozar no final” (“Nem luxo, nem lixo”.)
Há nessas pérolas radiofônicas, uma força de sabedoria ancestral em diálogo intenso com a sabedoria comunicativa do pop. Em Saúde, a mesma melodia ascendente, que explode na nota mais aguda da canção, ganha dois versos diferentes, de sentidos paralelos e complementares. Na primeira vez, ela canta: “Mas ninguém sai de cima nesse chove não molha/ Eu sei que agora eu vou é cuidar mais de mim”. Na segunda, diz: “Mas enquanto estou viva e cheia de graça/ Talvez ainda faça um monte de gente feliz”. Ofertar o cuidado para si e a felicidade para o outro — Buda, Jesus, Sócrates, tudo isso cantado a plenos pulmões e dançado a plena cintura no show ou na pista de dança.
Em Corre-corre, que trata da vida que atropela em seu ritmo insano, Rita fala da arte (brasileira, terrivelmente feminina) de tomar cicuta “como se fosse um suco de fruta”. Metáfora que é rima e solução, subvertendo o veneno em remédio.
Seu pensamento, materializado nos versos de suas canções e na própria forma como se movia na vida, assim como sua inteligência aguda, algo cínica, era pousada no humor. Não o da piada, o do riso, mas o humor revelador, a rasteira na expectativa, o caminho inusual, que no fim permitia que ela dissesse tudo que queria, e que muitas vezes não poderia.
O humor está presente desde os deboches de sua adolescência tropicalista nos Mutantes até seu último hit, Reza, lançado em 2012, no qual sobre um arranjo de rock cinquentista, ela se dirige a um desafeto pedindo que “Deus me proteja da sua inveja/ Deus me defenda da sua macumba” — o contraste entre a doçura musical e a dureza das palavras . Ele, o humor, marcava também seus textos, fossem em suas duas biografias ou em seus tuítes.
É o humor, sob o trato de sua inteligência agridoce, que permite, por exemplo, que ela lance mão da submissão como manifestação do amor, como faz em Bwana. O termo era muito usado em filmes das décadas de 1950 e 1960 que se passavam na África, quando mostravam serviçais de um país colonizado se referindo ao patrão branco. Na canção, Rita se põe ao serviço do amado: “Bwana, Bwana/ Teu desejo é uma ordem/ Te satisfazer é o meu prazer”. Mas dá o nó versos depois, afirmando seu desejo: “Não sei cozinhar/ Mas sou carinhosa/ E tenho talento/ Pra boemia/ Corre sangria nas minhas veias/ Volúpia”.
Terrivelmente feminina.
Há um dado simbólico forte no fato de uma das muitas canções feitas em homenagem a Rita, ou que a citam (uma lista que além de Rita Jeep tem, entre outras, Sampa) esteja neste momento rodando pelos palcos brasileiros num show em homenagem a Gal Costa, morta seis meses antes da cantora paulistana. No espetáculo Coisas sagradas permanecem, Adriana Calcanhotto canta Quando, uma das raras composições que tem a assinatura de Gal, em parceria com Caetano Veloso e Gilberto Gil.
A letra trata a vinda de Rita ao mundo como a concretização de uma profecia: “Há muito tempo uma mulher sentou-se e leu na bola de cristal/ Que uma menina loira ia vir de uma cidade industrial/ De bicicleta, de bermuda, mutante, bonita/ Solta, decidida, cheia de vida etc e tal”. A morte de Rita Lee não tem força para interromper esse rolê em duas rodas, da menina loira — ou ruiva, como ficou marcada, ou de cabelos brancos, como nas últimas fotos — equilibrando-se sem as mãos no guidom pela estrada pavimentada por suas canções e seu viver.
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