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    Bolsonaro no plenário do Supremo, na terça-feira (25), quando o tribunal julgou o recebimento da denúncia contra ele por tentativa de golpe de Estado Foto: Gustavo Moreno/STF

questões jurídicas

Teses frustradas de um réu

Como o STF rebateu as contestações de Bolsonaro e fez dele o primeiro ex-presidente a responder por crimes contra a democracia

Rafael Mafei, especial para a piauí | 27 mar 2025_09h07
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Dois anos atrás, Donald Trump se tornou o primeiro ex-presidente americano a ser indiciado criminalmente. No Brasil, não se trata de um acontecimento tão raro: de Sarney a Lula, assistimos a indiciamentos, denúncias, condenações e até prisões de ex-presidentes. Nenhum deles, contudo, foi a julgamento por um crime tão grave quanto tentativa de golpe de Estado. Só por esse motivo, o processo que o Supremo Tribunal Federal iniciou nessa quarta-feira (26) contra Jair Bolsonaro já pode ser considerado histórico. Um marco civilizacional em um país que não costuma julgar crimes contra sua democracia.

Houve poucas surpresas na sessão de julgamento, iniciada na terça-feira (25). A Primeira Turma do STF formada por Alexandre de Moraes, Cármen Lúcia, Cristiano Zanin, Flavio Dino e Luiz Fux aceitou a denúncia contra Bolsonaro e outros sete acusados que, segundo a Procuradoria-Geral da República, formavam o núcleo central da trama golpista. Inesperada mesmo, só a presença de Bolsonaro na primeira fileira do plenário, em um tribunal que ele sempre atacou e que seus seguidores vandalizaram no 8 de janeiro. Do lado de dentro, o ex-presidente se portou exemplarmente. Não perturbou os trabalhos e recusou até um copo d’água. Do lado de fora, já como réu, repisou numa coletiva de imprensa os seus bordões e voltou a colocar em dúvida, sem provas, o sistema eleitoral.

O recebimento dessa primeira denúncia é uma luz no fim do túnel para um tribunal que há tempos anda tumultuado com investigações complexas. Inquéritos, mesmo os mais complicados, devem caminhar para uma conclusão, como frisou recentemente o ministro Luís Roberto Barroso ao tratar da investigação sobre a disseminação de fake news, aberta pelo Supremo em 2019 e ainda não concluída. O recebimento das denúncias contra os núcleos golpistas pode ser o pontapé inicial nesse sentido. 

As questões jurídicas que se discutem em sessões desse tipo costumam ser diferentes daquelas que virão à tona durante o julgamento. Tratam de assuntos preliminares ao processo, e não de provas, culpados e inocentes. Os embates a que assistimos esta semana, no entanto, esclareceram pontos importantes e tiraram do caminho reclamações frequentemente ouvidas contra o Supremo. Cabe analisá-los com atenção.

 

Nesse primeiro momento, o que interessava aos acusados eram as questões de natureza processual. Em primeiro lugar, discutiu-se a adequação formal da denúncia isto é, se ela apresentava fatos e crimes bem delineados, assim como seus respectivos responsáveis e provas. Não havia dúvidas de que a peça apresentada pelo procurador-geral Paulo Gonet passaria por esse crivo. O segundo ponto dizia respeito àquilo que, no jargão do direito, se chama “juiz natural”. Toda ação penal deve ser julgada no foro adequado, por um juiz (ou mais de um, como é o caso) que tenha independência e imparcialidade.

Esse segundo ponto foi o mais debatido, por conta do foro por prerrogativa de função, mais conhecido como foro privilegiado, uma eterna bola dividida na Justiça. A discussão principal era se o Supremo poderia julgar pessoas que, por lei, não mais dispõem do foro, mas que dispunham dele quando praticaram os crimes dos quais agora são acusadas. É o caso de Bolsonaro, que era presidente da República e usou seus poderes para praticar os atos caracterizados na denúncia como crimes, mas deixou o cargo há dois anos.

Trata-se de um daqueles imbróglios jurídicos para o qual uma aparente solução sempre acarreta um novo problema, e assim por diante. Os problemas com a prerrogativa de foro, de tão antigos, renderam o primeiro embate entre a ditadura militar e o Supremo. O golpe contra João Goulart foi desencadeado no dia 31 de março, uma terça-feira; na sexta-feira da mesma semana, o STF aprovou uma súmula aparentemente banal, estabelecendo a tese de que a prerrogativa de foro se prolongava além do tempo de exercício da função pública. Ou seja, pessoas que um dia foram autoridades e tiveram direito ao foro continuariam a tê-lo. O tribunal se preparava para o que vinha pela frente, pois ninguém duvidava, desde a primeira semana, que o novo governo cassaria opositores e tentaria julgá-los nas auditorias militares.

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O Supremo, apesar do embate, manteve essa interpretação da lei durante a ditadura. Ela mais tarde foi consolidada na Constituição de 1988, que trouxe, porém, uma inovação: deputados e senadores, que antes não tinham foro no STF, passaram a tê-lo. Com um Ministério Público fortalecido pela Constituinte e dotado de liberdade e orçamento para investigar, o número de casos que chegavam ao tribunal disparou. Por isso, a partir de 1999, o Supremo começou a adotar uma nova interpretação da lei. Os ministros concluíram que, terminado o exercício do cargo público, o político não teria mais direito ao foro por prerrogativa de função.

Nada resolvido, porque surgiram então novos desafios: parlamentares passaram a renunciar aos seus mandatos às vésperas dos julgamentos, deslocando o processo abruptamente para a primeira instância para forçar atrasos e, com alguma sorte, a prescrição. Pintaram também novas dúvidas: se a autoridade mudasse de cargo e, com isso, de foro (digamos, passando um tribunal estadual para o STF), o que deveria acontecer com seus processos? Cairiam para a primeira instância ou, pelo contrário, subiriam para a instância superior? Profissionais do direito deram a essa barafunda o apelido de “elevador processual”.

Esse era o primeiro ponto a ser esclarecido no que dizia respeito a Bolsonaro e outros acusados. A resposta do Supremo, fixada em outros julgamentos recentes, foi categórica: o foro privilegiado se estende a ex-autoridades, com a condição de que o crime julgado tenha sido praticado no exercício do cargo e seja relacionado a ele. 

 

A essa discussão, somou-se outra: por que a ação deveria transcorrer na Primeira Turma do Supremo, e não no plenário, onde todos os onze ministros podem se manifestar? Como a Constituição não impõe quórum qualificado para o julgamento de ações penais, o regimento do tribunal permite que se opte por uma opção ou pela outra. Quanto se trata de presidentes e outras poucas autoridades no exercício do cargo, o regimento exige análise do plenário. Sobre ex-autoridades, ele nada diz. 

A praxe de julgar toda e qualquer ação penal no plenário se mostrou disfuncional no caso do mensalão. Na época, o mais importante órgão do Supremo ficou mais de seis meses praticamente paralisado por um único processo. Distribuir as ações entre as turmas, solução adotada logo em seguida, resolveu o problema, mas criou outro: como os ministros-relatores dispõem de um poder quase imperial de remeter casos da turma ao plenário, justificando-se com um genérico “relevância jurídica do caso”, o destino de muitas questões penais passou a ser definido por conveniência ou estratégia dos relatores. Estabeleceu-se um sistema imprevisível, abrindo margem a incertezas que as regras de competência processual deveriam evitar. Talvez por isso os integrantes da Primeira Turma, com exceção de Fux, tenham optado pela interpretação de que ao plenário cabem estritamente as ações penais previstas de forma taxativa no regimento do STF. Nada de ex-autoridades no plenário, portanto.

O terceiro ponto discutido foi a alegada suspeição de Alexandre de Moraes, invocada à exaustão por Bolsonaro e já rechaçada, também à exaustão, pelo Supremo. Para a melhor compreensão desse ponto, convém destrinchar o bordão segundo o qual Moraes “é vítima, investigador e juiz ao mesmo tempo”. Não é bem assim.

O ponto mais fraco dessa tese está na classificação de Moraes como vítima, porque juridicamente ele não o é. Em graus diferentes, todos os ministros do STF foram, individualmente, atingidos pela violência bolsonarista. Barroso e Edson Fachin foram verbalmente atacados por Bolsonaro diversas vezes enquanto presidiam o Tribunal Superior Eleitoral (TSE). O relatório da Polícia Federal que embasou a denúncia mostra que, além de Barroso, Fux também foi alvo do chamado gabinete do ódio. Conteúdos mentirosos o associavam a um banco que tem participação acionária em uma empresa que fabrica urnas eletrônicas. O objetivo era insinuar que Fux tinha interesse financeiro na preservação das urnas. O mesmo Fux, na sessão de quinta-feira (26), relembrou que sua mesa e seus documentos foram incendiados no 8 de janeiro. Até mesmo André Mendonça e Kássio Nunes, indicados pelo agora réu Bolsonaro, tiveram seus locais de trabalho invadidos e destruídos pela turba – afinal, foram vandalizadas as salas de julgamento, os corredores e os salões que ambos frequentam cotidianamente. Se considerarmos que os ataques ao Supremo se estendem a seus integrantes, sobrará algum ministro apto a julgar os golpistas?

É verdade que Moraes concentrou mais ataques que os colegas, constando até mesmo entre os alvos que seriam assassinados no plano Punhal Verde e Amarelo. Quando isso ocorreu, no entanto, sua relatoria nessa matéria já estava estabelecida havia muito tempo, após debates e decisões no tribunal. Não convém que um investigado possa, por ato exclusivo seu, ensejar a suspeição de um juiz que ele decidiu atacar. Isso o permitiria manipular a escolha do magistrado. O Código de Processo Penal diz que o juiz não deve julgar a causa de quem seja seu “inimigo capital”. Não fala em adversário, desafeto, nem de mero inimigo. O adjetivo “capital” serve justamente para restringir o alcance da suspeição. Ao menos essa interpretação tem permanecido estável na jurisprudência do Supremo: até 2018, segundo uma pesquisa da FGV Direito SP, nunca houve situação em que o tribunal tivesse reconhecido a suspeição de um ministro contra a vontade dele próprio.

Por último, a reclamação de que Moraes atua como “investigador e juiz ao mesmo tempo” tem alguma pertinência. A regra, no sistema processual penal brasileiro, é que o juiz que julga não tenha sido o mesmo que supervisionou o inquérito. Essa importante garantia, que ajuda a preservar a imparcialidade dos magistrados, não é oferecida a quem responde a uma ação diretamente no STF. Esse, aliás, não é o único direito mitigado para os réus do tribunal: ao contrário dos acusados em outras instâncias, eles não dispõem de um órgão recursal ao qual possam apelar.

Mas esse problema, que é real e deveria ser resolvido por uma reforma legal e regimental, está longe de ser uma novidade. O mesmo acontece em todos os julgamentos do Supremo – treze anos atrás, ouvimos reclamações sobre a suposta parcialidade de Joaquim Barbosa e a impossibilidade de recorrer das decisões do julgamento do mensalão. Quem pede estabilidade e previsibilidade, que até há pouco faltavam nas decisões sobre competência e prerrogativa de foro, pode ao menos ter como consolo o fato de que, nesse ponto, tudo continuará como sempre foi.

 

O desenrolar do processo contra Bolsonaro e seus aliados é difícil de prever, mas o encerramento da sessão de quarta-feira (26) sugeriu que o tribunal pode encampar uma discussão mais aprofundada sobre a dosimetria das penas pelo 8 de janeiro. Fux, embora tenha aceito integralmente a denúncia apresentada pela PGR, comentou que a pena imposta à cabeleireira Débora Santos (que pichou a estátua da Justiça em frente ao tribunal) lhe causou “sensação de injustiça” e que, por isso, abrirá divergência nesse quesito. O incômodo não é só dele. É mesmo questionável, juridicamente, que a cumulação dos crimes de tentativa de abolição do estado democrático de direito e de golpe de Estado seja aplicável a todos os invasores.

Mas vale notar que, nesse ponto específico, a situação de Bolsonaro e dos outros sete réus julgados com ele não é a mesma da turba do 8 de janeiro. Ao contrário de Débora, por exemplo, o ex-presidente e seus aliados atuaram continuamente, ao longo de meses, contra a Justiça Eleitoral, contra as eleições democráticas e contra o governo Lula já eleito, com plena consciência do que faziam. Ao estimularem e viabilizarem a invasão, inclusive garantindo a omissão das forças de segurança que facilitou o ataque à Praça dos Três Poderes, eles buscavam criar condições para a deposição do governo já empossado. Daí porque uma eventual reconsideração das penas em favor de um ou outro acusado do 8 de janeiro não significa que o mesmo será feito com os principais réus da trama golpista, caso sejam condenados.