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    Módulo Criosfera 2, o segundo laboratório remoto brasileiro no interior da Antártica. Crédito: Centro Polar e Climático da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

diários antárticos

Testemunho de gelo

Trinta graus negativos, tempestade de neve e sobremesa em temperatura ambiente: a expedição de cientistas brasileiros na Antártica

Jefferson Cardia Simões | 16 mar 2023_10h59
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Em depoimento a Monica Gugliano

 

Por que quem foi uma vez à Antártica sempre quer voltar? Essa é uma pergunta comum para cientistas, jornalistas ou mesmo aventureiros que visitaram o continente mais intocado do planeta. Por que voltar? São vários os motivos, e enumero aqui alguns: a oportunidade de testar limites físicos e mentais e de sobreviver nessa condição; a admiração pela vida selvagem e intocada. Entre nós, pesquisadores, talvez a resposta esteja no fato de estarmos fazendo algo de vanguarda, de entender as fronteiras que a natureza impõe à intervenção dos seres humanos.

Nossa expedição chegou à Antártica no dia 4 de dezembro do ano passado, como parte de projetos de redes de pesquisa internacionais. Contribuímos com estudos que monitoram a resposta do gelo da Antártica às mudanças globais, e buscamos conexões entre o clima do nosso país e o do continente. A Antártica exerce no clima mundial um papel tão importante quanto os trópicos. Queremos aprimorar nosso conhecimento e entendimento das frentes frias que atingem o Brasil, com fenômenos como El Niño e outros associados a variações que ocorrem na Antártica.

Nosso objetivo é conseguir um testemunho de gelo, como são chamados os cilindros de neve e gelo obtidos ao perfurar geleiras. Esses cilindros guardam milhares de anos de história climática, e o estudo deles é considerado a técnica mais avançada para reconstruir essa história. 

A região onde trabalhamos recebe sua precipitação de dois mares: o de Amundsen (uma parte do Oceano Austral – o nome correto para o Oceano ao redor da Antártica – , com uma camada de gelo – mar congelado – que pode chegar a 3 metros de espessura, cujo nome homenageia o explorador norueguês Roald Amundsen, o primeiro a chegar ao Polo Sul, em dezembro de 1911) e o de Bellingshausen, que fica a Oeste da península Antártica e cujo nome homenageia o líder da expedição russa de circunavegação antártica, em 1820, Fabian Thaddeus von Bellingshausen. Nesses dois mares se formam grande parte das frentes frias que chegam ao Brasil. Queremos entender o papel deles na variabilidade do clima do Cone Sul e, portanto, do Sul do Brasil. 

Ir à Antártica em uma missão científica e acampado exige árdua preparação durante um ano. Preparação da logística, luta constante contra a burocracia governamental – no Ibama já nos perguntaram, por exemplo, quais animais iriam puxar nossos trenós –, exames médicos, flutuação do dólar…. Quando estamos prontos para embarcar para a Antártica já estamos esgotados.

Este diário é um pouco do que vivemos nesses dias. Para melhor entendimento dos registros que escrevi diariamente, vou explicar como funcionou nossa expedição, que foi dividida em três grupos: 

Equipe 1 – Geleira da Ilha Pine (Pine Island Glacier – PIG), nas coordenadas 78,5° Sul e 97,5° Oeste, altitude: 1760 m

Liderada por mim, Jefferson Cardia Simões, 64 anos, com meus colegas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Luiz Fernando Magalhães Reis, 65 anos; Ronaldo Torma Bernardo, 54 anos, e Filipe Ley Lindau, 35 anos. Integram o grupo Ellen de Nazaré Souza Gomes, 50 anos, da Universidade Federal do Pará (UFPA), uma novata tropical, e Jandyr de Menezes Travassos, 70 anos, da Coppe/ Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Vamos acampar na geleira da Ilha Pine, no meio do manto de gelo da Antártica Ocidental. O objetivo é obter um testemunho de gelo que cubra os últimos 400 a 500 anos da história climática da região.

 

 Equipe 2 – Módulo Criosfera 1 (CRIO 1), coordenadas: 84° Sul, 79,5° Oeste

Esse grupo fará a manutenção do módulo Criosfera 1, o laboratório latino-americano mais ao Sul na Terra, a apenas 640 km ao Norte do Polo Sul Geográfico. O módulo mede dados meteorológicos, concentração de micropartículas, composição da atmosfera, estudos sobre a concentração de gases e raios cósmicos. Faz também estudos de micro-organismos encontrados na neve. Todas as pesquisas são essenciais para entender o impacto das mudanças ambientais na Antártica e como elas se refletirão na América do Sul. A equipe, liderada por Heitor Evangelista, 59 anos, físico da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), conta ainda com os pesquisadores Heber Passos, 60 anos, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e Franco Nadal Junqueira Villela, 46 anos, do Instituto Nacional de Meteorologia (INMET).

 

Equipe 3 – Módulo Criosfera 2 (CRIO 2), coordenadas: 79,7° Sul, 78,7° Oeste, altitude: 786 m

Esse grupo chegou à Antártica no dia 9 de dezembro para complementar a instalação do módulo Criosfera 2, o segundo laboratório remoto brasileiro no interior da Antártica. Os participantes da equipe somos: eu, Jefferson Cardia Simões (me juntaria a equipe em 30 de dezembro), os gaúchos Francisco Eliseu Aquino, geógrafo e climatologista, 52 anos, professor da UFRGS; a geógrafa Venisse Schossler, 46 anos, pós-doutora da UFRGS; o geógrafo Isaías Ullmann Thoen, 40 anos, técnico em geoquímica e eletrônica, da UFRGS; e nosso colega chileno Marcelo Arevalo, 62 anos, engenheiro mecânico.

Parte da equipe de pesquisadores da expedição Criosfera 2022, da esquerda para a direita: Filipe Ley Lindau, Luiz Fernando M. Reis, Ellen de Nazaré Souza Gomes, Jefferson Cardia Simões e Ronald T. Bernardo. | Crédito: Centro Polar e Climático da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

 

Localização Criosfera 2 na Antártica | Crédito: Centro Polar e Climático da Universidade Federal do Rio Grande do Sul

 

A expedição dia a dia

29 de novembro

Parte da equipe chegou a Punta Arenas, no extremo Sul do Chile, em voos comerciais. Nosso material foi transportado desde a Base Aérea de Canoas (RS) para o aeroporto de Punta Arenas pelo novo cargueiro da Embraer, o KC-390. Foram seis toneladas de carga, incluindo o módulo Criosfera 2, equipamentos científicos e itens de acampamento. A alimentação compraremos aqui na cidade, embora o custo de vida chileno esteja elevado. As operações de nossa expedição são conduzidas pela comunidade científica. Viajamos em aeronaves privadas, algumas com esquis, e tratores polares, que nos levam a centenas de quilômetros da costa, no meio do enorme manto de gelo antártico e, por isso, não podemos contar com apoio de navios da Marinha do Brasil.

30 de novembro a 03 de dezembro

Punta Arenas, no extremo Sul do Chile, é uma das entradas para os programas antárticos nacionais – as outras são a Cidade do Cabo, na África do Sul, e Christchurch, na Nova Zelândia. Tem cerca de 150 mil habitantes e é a capital da Região de Magallanes e da Antártica Chilena (sim, os chilenos consideram parte do continente como um pedaço do seu território nacional, mas o Brasil e os outros países membros do Tratado Antártico não reconhecem tal reivindicação).

Além de comprar alimentos, temos que receber a carga e principalmente acertar o transporte com o nosso provedor logístico Antarctic Logistics & Expeditions (ALE), que nos levará ao centro do continente. Embora ainda persista o mito da comida especial para as expedições, hoje nossa alimentação não é muito diferente da que temos normalmente em casa. Os congelados ficam no freezer, ou seja, fora da barraca. E não esquecemos de levar um bom vinho chileno.

Na Antártica, acampados, serão dias de constante frio, mãos e pés gelados mesmo com as melhores roupas, até 30 dias sem banho, e o pior, a longa monotonia nos dias de mau tempo. Já passei 10 dias indo da barraca dormitório à cozinha. Podíamos ler e ouvir músicas, mas era só. Hoje podemos levar alguns vídeos. Mas mesmo assim pode ser terrivelmente aborrecido…

Finalmente está tudo pronto e vamos partir.

4 de dezembro

Dia de sair para o interior do imenso manto de gelo da Antártica. Oito dos doze pesquisadores de nossa expedição seguem hoje de aeronave em uma viagem de 4 horas e 15 minutos até uma pista de gelo (sim, uma pista de aterragem de aeronaves cujo pavimento é o gelo azul da geleira). Nosso destino é a geleira Union nas montanhas Ellsworth, onde existe um acampamento base da ALE (posição 79°46′S, 83°15,7′W).

Antes da pandemia iriamos em um Ilyushin IL-76, um cargueiro quadrimotor da época da União Soviética, produto da Guerra Fria. Hoje essa aeronave só é usada para o transporte de nossa carga. Nós viajaremos em um confortável Boeing 757 da Icelandair. Na aeronave, nossa equipe e dezenas de montanhistas que querem subir a montanha mais alta da Antártica (o maciço Vinson que fica também nas montanhas Ellsworth e atinge 4.892 metros de altitude).

Chegamos ao acampamento da ALE na agradável temperatura de 5°C negativos e sem vento. Agora temos que esperar o voo do avião cargueiro (provavelmente amanhã) e então partimos para a segunda parte da viagem.

Enquanto esperamos, olho o acampamento da ALE, aprimorado ao longo dos últimos vinte anos e usado pelos fãs do turismo de aventura – acreditem! – que pagam até 90 mil dólares por pessoa para fazer um programa desses. São dezenas de barracas. Aqui há montanhistas e esquiadores que irão correr a maratona antártica nas redondezas, outros vão esquiar centenas de quilômetros. Nós, pesquisadores, estamos de passagem e temos que ficar o mínimo de tempo aqui e seguir para o nosso destino final. 

O acampamento é um verdadeiro spa para quem estava no meio do gelo. A temperatura fica ao redor dos 5 graus negativos, há um refeitório e, o luxo máximo, banheiro e um lugar para tomar um banho a cada 4 dias. As pessoas que circulam pelo acampamento da ALE são tão diferentes, é um público tão diverso, que o comparamos aos bares no espaço da série Star Wars. Montanhistas renomados ou amadores, alguns sem alguns dedos das mãos (perdidos por congelamento em escaladas anteriores); cientistas que fazem investigações glaciológicas e geológicas, e turistas. E, é claro, sempre aparece alguma celebridade.

6 de dezembro

Pela manhã, a equipe que segue para o Criosfera 1 – a mais ou menos 500 km de onde estamos – deixou o acampamento em um bimotor Twin-Otter. Às 14 horas é a vez da nossa equipe partir rumo à geleira da Ilha Pine. Viajamos, seis passageiros e duas toneladas de carga, em um Basler BT-67 Turbo (DC-3), fazendo o trajeto em um hora. Chegamos, descarregamos, e o avião decola de volta. Voltará em três semanas para nos buscar. Observo com curiosidade a reação da nossa “novata” paraense que se vê no nada em meio do nada, e penso como ela reagirá durante esse período.

Aqui não há nada. Poucos conseguem imaginar o que é estar acampado no meio do manto de gelo da Antártica – uma imensa massa que, em alguns lugares, ultrapassa quatro quilômetros de espessura e se estende por uma área de 13,6 milhões de metros quadrados, que representam uma área de 1,60 do território brasileiro.

Diferentemente do que se costuma ver em publicações, documentários e reportagens jornalísticas, geralmente feitas em regiões próximas ao litoral onde a fauna é rica (pinguins, focas, baleias) e existem algumas espécies de musgos, o lugar onde estamos em nada se parece a essa parte da região.

Estamos em meio a um planalto sem fim, sem nada que distinga a paisagem a não ser pequenas dunas de gelo que se avistam no horizonte. Um deserto branco, que alguns chamam de cristal, porque é formado pela precipitação e acumulação de cristais de neve ao longo de milhões de anos. Um lugar onde a temperatura média durante o ano é de 30°C negativos, atingindo 65°C negativos no inverno.

Dias 7 e 8 de dezembro

Tivemos três ótimos dias, ensolarados e com temperaturas acima dos 10°C negativos e conseguimos montar todo o acampamento, começando a perfuração do gelo. Mas, no dia 8, um susto: uma surpreendente onda de calor elevou a temperatura para quatro graus negativos. Dentro das barracas, a neve descongelou, ainda que a 1.760 metros de altitude, e molhou o chão. Em 34 anos vindo à Antártica, nunca vi nada igual nesta latitude.

Estamos completamente isolados, seis pessoas em cinco barracas. O oceano está a mais de 400 km a Oeste, o acampamento mais próximo, 335 km a sudeste. A Estação Antártica Comandante Ferraz a 2.064 km para o Norte.

Mas tem um lado bom: a tranquilidade, não temos internet, mídia social e tampouco notícias do Brasil ou de qualquer outro lugar. A temperatura média anual no acampamento é de 30°C negativos. Em dezembro, oscilando entre menos 4 e menos 25°C. A espessura do gelo abaixo do acampamento é ao redor de 2100 metros

9 de dezembro

Hoje voltamos ao normal antártico. A temperatura está caindo e a visibilidade diminui. Começamos a perfurar o gelo, usando uma técnica que hoje é padrão, com uma perfuradora eletromecânica. Na ponta tem navalhas que cortam o gelo e que estão à frente de um cilindro oco (onde fica o testemunho de gelo coletado). Atrás dele, tem outro cilindro com um motor que movimenta as navalhas, rotando e avançando no gelo. A perfuradora toda tem 2 metros de comprimento, conectados a um cabo de aço por onde passa a eletricidade e são transmitidos os dados. Na superfície, fica a torre por onde passa esse cabo. A cada metro de profundidade que perfuramos, subimos o equipamento e coletamos o novo testemunho de gelo (o cilindro de gelo que ficou preso na parte oca da perfuradora) e prosseguimos.

Se chegarmos a uns 100 metros de profundidade, quem sabe, poderemos conseguir dados sobre os 500 últimos anos. A maior parte do tempo (10 a 12 horas ao dia) passamos dentro dessas barracas em formato de domo, amarelas. Quatro pessoas em uma área de 20 m2. A temperatura interna não pode passar dos 10°C negativos. Se chega a 8°C negativos tudo começa a derreter e temos que abrir as janelas para esfriar a barraca.

10 de dezembro

A Antártica nos mostra sua verdadeira face. Há uma forte nevasca, e os ventos são de 80 a 100 km/h. A temperatura é de 12°C negativos, mas a sensação térmica é de 30°C negativos. A visibilidade não passa dos 50 metros. Nossa previsão é de passarmos os próximos dois ou três dias sem sair das barracas, lendo e fazendo trabalhos teóricos. O tempo meteorológico é quem determina o ritmo do nosso trabalho.

Ao sair da barraca dormitório para ir à barraca banheiro senti um pouco de vertigem. Provavelmente por causa do longo tempo deitado e contraído pelo frio. E, ao sair da barraca banheiro percebo que ela está mal armada, portanto poderia ser destruída pelas rajadas de vento. Decido amarrar a barraca, e tudo dá errado. Uma das minhas luvas voa e a mão direita começa a congelar. A visibilidade é de 20 metros e a sensação térmica está abaixo dos 30°C negativos. Resolvo voltar para minha barraca, mas caio duas vezes nas pequenas dunas de neve (com cerca de 1 metro de altura) que se formaram nas últimas horas. Minhas mãos afundam na neve fofa e começam a congelar. Perco a sensibilidade de ambas. Mas sigo em direção à barraca.

Já fiz 28 expedições polares. Mesmo assim, sinto medo. Não tenho esperança de que alguém me ouça nas outras barracas, o vento uivando não permite. Só me resta atravessar os 30 metros e chegar à barraca. Tenho que seguir o procedimento padrão: colocar as mãos nas axilas e esperar a dor excruciante que virá quando a circulação sanguínea voltar à extremidade dos meus dedos. Grito de dor e vômito, mas sei que ninguém me ouvirá. Depois de 30 minutos, meus colegas sentem minha falta e saem para me buscar.

O pior passou. Meus dedos ficaram dormentes por algumas semanas.

Um típico acampamento antártico: quatro habitaram a barraca onde a temperatura
oscilava entre 10 graus Celsius negativos e 5 positivos. Na foto, Luiz Fernando Magalhaes Reis (UFRGS). | Crédito: Centro Polar e Climático da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

 

11, 12, 13 e 14 de dezembro

Monotonia. A tempestade continua. Seguimos confinados às nossas barracas, falando sobre os nossos projetos, a vida… Tudo indica que nos próximos dias vai melhorar e a temperatura vai aumentar. Para o explorador polar o mais difícil é suportar o vento, porque ele reduz a sensação térmica muito rapidamente. Se junto houver nevasca, é pior ainda. Nesses dias é preciso tomar muito cuidado para não congelar as partes expostas da pele.

Finalmente, no terceiro dia de confinamento, o tempo melhora. A velocidade do vento diminui, a temperatura está em 11°C negativos e neva suavemente. Hora de limpar o acampamento e ver os estragos deixados pela tempestade. É interessante ver como mudou tudo ao nosso redor. Em volta das barracas se formaram dunas de neve, com mais de 1 metro de altura. Quando pisamos nelas, afundamos quase 50 cm. Cordas das barracas se arrebentaram e caixas estão soterradas.

Voltamos a perfurar o gelo. No dia 14 atingimos 50 metros de profundidade, e a equipe de geofísica se prepara para montar o radar que fará o levantamento das camadas da geleira.

Na Antártica Ocidental existem duas grandes massas de gelo, com centenas de quilômetros de extensão: as da Ilha Pine e a Thwaites – que juntas têm o tamanho do estado do Mato Grosso do Sul. A Thwaites é também chamada de Geleira do Apocalipse! Estudos teóricos indicam que elas podem ser das mais sensíveis às mudanças ambientais, principalmente ao aumento da temperatura das águas superficiais do Oceano Austral. Este aumento de temperatura já está ocorrendo. Dessa forma, as duas geleiras, que são duas bacias lado a lado, podem em algumas décadas se desestabilizar. Estudos apontam que, se isso acontecer, o derretimento parcial delas poderia aumentar o nível dos mares em até 0,6 metros até meados do próximo século. Em dois a cinco séculos, o manto de gelo da Antártica Ocidental poderia contribuir com alguns metros para o aumento do nível do mar. O problema é que já existem sinais de que a frente dessas duas geleiras começa a recuar (retroceder). E é por isso que vários projetos internacionais estão acompanhando esse movimento. Nosso projeto simplesmente adiciona mais dados ao monitoramento de uma dessas geleiras.

 

15 de dezembro

A noite foi fria (a temperatura voltou a cair para 21°C negativos). Sair do saco de dormir de manhã cedo é a pior hora do acampamento polar. Lembro dos relatos das expedições do início do século XX, quando os exploradores não contavam com a tecnologia que temos hoje e usavam pesados sacos de dormir de pele que absorviam a transpiração e, com o passar dos meses, acumulavam alguns quilos de água congelada. Todas as noites eram uma tortura para essas pessoas porque era o calor do corpo delas que aquecia o material. Nossos sacos de dormir são feitos com pena de ganso e a parte externa é de fibra artificial, que permite a umidade evaporar. São extremamente confortáveis e aquecem o corpo humano em dez minutos.

Tivemos alguns problemas com a perfuradora, que ficou presa a 50 metros de profundidade. Foi um dia árduo, mas avançamos mais 6 metros de perfuração.

A equipe que irá ao Criosfera 2 chegou somente hoje no acampamento da ALE, agora terão que fazer a viagem até o local de instalação do módulo.

 

16 a 21 de dezembro

Excelentes dias ensolarados, com temperatura média ao redor de 17°C negativos. Madrugadas entre 19°C e 21°C negativos. Ventos constantes ao redor de 20 a 25 km/h. Sensação térmica de até 25°C negativos.

Com sol, o trabalho rende e estamos adiantados. Já estamos a 92 metros de profundidade no nosso poço.

No mais, isolamento completo, sem internet, sem notícias, raras informações por telefone satelital. Imaginem, soubemos que a Argentina ganhou a Copa do Mundo!

22 de dezembro 

Outro dia calmo, e o trabalho de perfuração começa a chegar perto do final. Nossos colegas Ellen e Jandyr já iniciaram o levantamento da estrutura da geleira ao redor de nosso acampamento. É um trabalho cansativo e, para mim, monótono. Centenas de cabos de fibra óptica são espalhados ao redor do acampamento. Basicamente, queremos saber como as camadas de neve e gelo estão dispostas na geleira. Isso ajudará a interpretação dos nossos testemunhos de gelo. Aproveitamos o dia para treinar o pessoal na técnica de perfuração, e usamos um drone para filmar o acampamento.

À esquerda, Ronaldo Bernardo examinando um testemunho de gelo recém obtido. À direita, Jefferson com uma seção de testemunho de neve acumulada há 50 anos | Crédito: Centro Polar e Climático da Universidade Federal do Rio Grande do Sul

 

23 de dezembro 

São 2 horas da madrugada do dia 23, todos já foram dormir. Sol alto (nesta latitude temos 24 horas de Sol acima do horizonte). Silêncio total, pois não há vento. Estou na barraca cozinha e consigo ouvir o ronco de um colega a 30 metros de distância. Resolvo sair da barraca, temperatura ao redor de 22°C negativos. Dou um giro de 360° para observar a paisagem minimalista. Só a superfície plana e branca a perder de vista, não há sequer pequenas dunas de neve. Ao longe consigo ver uma duna de neve maior, estaria a 2 ou 6 km de distância? Não sei, a falta de referências na superfície prega peças! Ainda por cima, as miragens são frequentes no interior do manto de gelo!

Esta paisagem é ao mesmo tempo desoladora e de infinita paz, o nada no meio do nada! Traz o sentimento de aceitação de quão minúsculos somos. Estoicismo é característica útil para um cientista polar.

25 de dezembro

Madrugada fria, 23°C negativos, uma brisa leve sopra. A tarde chega a 9°C negativos e a visibilidade é de vários quilômetros. Ótima oportunidade para caminhadas.

Continuamos nossos trabalhos. Estamos na terceira semana que tem sido relativamente fria para esta época do ano. Todas as manhãs, por volta das 7 horas, a temperatura esteve entre 18°C e 24°C negativos. Tivemos céu aberto durante 24 horas e ventos que não ultrapassaram 25 km/h. Estamos concluindo nosso trabalho neste 25, dia de Natal. Conseguimos perfurar uma profundidade de 98 metros de gelo. Eles representam mais de 400 anos de dados ambientais e um levantamento da estrutura da geleira.

E também fizemos nossa ceia de Natal. Um pouco de criatividade e olhem nosso menu: lombo de porco à cerveja Austral (do Chile), arroz integral com nozes, salada de legumes com pedaços de maçã e, de sobremesa, morangos congelados com ganache (preparado de creme de leite + chocolate). Para beber, vodca com suco de quatro laranjas congeladas e água (da neve derretida).

E a temperatura da barraca atingiu 5°C positivos!!! Que conforto!

Mas na verdade, já começamos a cansar. A rotina é dura, acordar, trabalhar ao relento com o cortante vento no rosto, sempre cuidando para os dedos não congelarem, e coletando dados. Na barraca de perfuração, passamos longas horas sentados manuseando metais que estão a 30°C negativos – a temperatura do gelo da geleira que estamos. Tocar com a pele nua no metal nessa temperatura congela a epiderme, não é nada agradável! Estamos todos muito desgastados, algumas mãos e pés machucados, algumas queimaduras leves por frio (e as pontas dos dedos das mãos consequentemente dormentes). Assim, decidimos que só eu ficarei na Antártica para me juntar ao grupo que está no Criosfera 2.

Jandyr M Travassos, à esquerda, e Filipe G. Ley Lindau puxando trenós com equipamentos geofísicos para medir espessura e estrutura interna da geleira no local de perfuração  | Crédito: Centro Polar e Climático da Universidade Federal do Rio Grande do Sul

 

26, 27 e 28 de dezembro

Mais uma manhã fria (23°C negativos, a tarde vai a 7°C negativos). Temos de empacotar toda a carga (equipamentos, amostras coletadas, itens pessoais e material de comunicação). Aí é só aguardar o avião com esqui (o DC 3 Basler). Vamos nós e cerca de 1,2 toneladas de carga (incluindo cerca de 550 quilos de amostras de gelo).

Daqui voaremos para o acampamento base da ALE, ponto inicial de nossa missão Antártica. Sigo para a segunda fase da missão, que envolve a inauguração do módulo Criosfera 2, um laboratório da UFRGS e do Programa Antártico Brasileiro que foi financiado pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações e pelo governo do Rio Grande do Sul, por meio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio Grande do Sul (Fapergs). Estamos encerrando nossa missão da geleira da Ilha Pine, uma das áreas mais críticas para o futuro ambiental da Antártica, com um magnífico halo solar (círculo policromático ao redor do Sol) que ocorre quando a luz atravessa partículas de gelo suspensas na atmosfera). Pelo menos as condições não estão tão ruins, e continuamos a empacotar material e caminhar ao redor do acampamento.

Dia 28 à noite desmontamos o acampamento na Geleira da Ilha Pine. Tempo fechado até as 22 horas. Estamos prontos para sermos recolhidos. Agora começa o jogo de paciência ou, como chamamos, os waiting games. Amanhecemos no meio de um whiteout (branco total). Ou seja, as nuvens estão tão baixas (ou mesmo na superfície) que a luz que chega se dispersa em todas as direções. Perde-se o contraste na superfície, até mesmo de pequenos detalhes, como o de uma ondulação por onde caminhamos. Excelente condição para levar tombos. E pior, se perde o horizonte. Agora é esperar. E esperamos 48 horas… Pelo menos não deveremos esperar dez dias como já aconteceu certa vez devido a uma sequência de tempestades.

Vento quase zero, e a temperatura ao redor de 13°C negativos. Não temos muito a fazer. Só ter paciência e esperar. Até que o tempo melhora e o avião DC 3 Basler surge no horizonte. Estamos prontos para ir.

Nessa despedida da geleira, penso nesses 38 anos como cientista e explorador polar. É interessante observar o ser humano urbano aqui na Antártica. Muitos turistas e pesquisadores de laboratório acreditam que aqui estamos libertos do tempo do relógio. Dele, sim. Nossos limites são dados pelo tempo meteorológico. O ser humano tem dificuldades de aceitar essa situação, essa espera que nos desafia.

Um explorador polar tem que desenvolver paciência e aceitação das condições impostas pela natureza. O tempo meteorológico determina a velocidade de seus afazeres, deslocamentos e trabalhos ao relento. Quanto mais baixa a temperatura e maior a velocidade do vento, mais lentamente trabalharemos. Mais cuidados temos que ter com os pés, mãos e face para evitar o congelamento, e principalmente para não cair em hipotermia. Se o branco total for muito intenso e a visibilidade cair abaixo dos 50 metros, ainda corremos o risco de nos perdermos. Não podemos nos afastar. Uma nevasca transformará tudo em um branco total. E, se a sensação térmica cair abaixo de 40°C negativos, ficaremos restritos às barracas.

Ao longo desses anos de pesquisa e exploração polar, observei que as missões de sucesso são aquelas com líderes e pessoal com uma atitude estóica diante da experiência. Aceitando os limites físicos, os longos períodos de espera, os limites seus e os dos colegas para preservar a harmonia do grupo, e claro, aproveitando a oportunidade única de viver e observar uma paisagem única na Terra, quase extraplanetária.

Nossa missão foi cumprida, e o pior já passou. 

29 de dezembro

Chegamos ao acampamento da ALE às 02 horas da madrugada. Parte de nossa equipe volta ao Brasil. Eu ainda fico mais um tempo. Vou me juntar ao restante dos cientistas que chegaram dia 19 de dezembro aqui para completar a instalação do módulo Criosfera 2.

Dia 30 de dezembro

Parti do acampamento da ALE em uma aeronave Twin Otter com esqui em direção ao local do Criosfera 2. Este pequeno bimotor é capaz de levar até 800 quilos de carga. Com esquis, leva você para qualquer lugar e aterrissa no campo de neve. A viagem entre o acampamento base da ALE e o local onde está instalado o módulo Criosfera 2 dura menos de 20 minutos.

Ellen e Jandyr viajam comigo para visitar o módulo e voltam no mesmo voo. Só eu fico no acampamento ao redor do módulo Criosfera 2 e me junto ao meus colegas, que chegaram no dia 19 de dezembro no local: os gaúchos Francisco Eliseu Aquino, Venisse Schossler, Isaíias Ullmann Thoen e o chileno Marcelo Arevalo. Eles viajaram em um trator polar e fizeram em 12 horas fazendo o trajeto que o avião fez em 20 minutos. Missão: completar a implantação do módulo Criosfera 2, que chegou ao local no mesmo trator no dia 19. 

O Criosfera 2 é um container de 2,5 por 6 metros, cheio de sensores que medem as condições meteorológicas e a concentração de CO2. Ele ficará no topo de um domo de gelo que é chamado de Skytrain Ice Rise (colina de gelo Skytrain). Ficaremos no início da plataforma de gelo Weddell. As plataformas são uma extensa parte flutuante do manto de gelo antártico, podem ter mais de mil metros de espessura. Não são parte do mar congelado. O fim desta plataforma e o mar estão 700 km ao Norte do acampamento.

31 de dezembro

A véspera de ano novo é cheia de expectativas. 

A paisagem daqui é totalmente diferente da monotonia do deserto branco da geleira da Ilha Pine. Quando olho de noroeste para sudoeste, vejo toda a cadeia de montanhas Ellsworth, cerca de 360 quilômetros de extensão. E a noroeste, a 210 quilômetros de distância, o majestoso maciço Vinson, o ponto mais alto de toda a Antártica, com seus 4.892 metros de altitude.

A temperatura média do ar aqui chega a ser agradável, não uso mais os dois pares de luvas que tinha que usar na geleira da Ilha Pine. Acreditem, na Terra temos gelo frio (que pode estar a menos 60 graus negativos, na geleira da Ilha Pine estava a 30 graus negativos) e gelo “quente” que está próximo de zero grau. Aqui no Criosfera 2 faz ao redor de 15 graus negativos.

À tarde, a menos 7 graus e sem vento, dá para sentar fora das barracas e tomar sol.

Hora de preparar uma ceia de ano novo. Momento de muitas expectativas de mudanças políticas e econômicas em 2023 no Brasil. Os últimos seis anos foram muito difíceis para a comunidade científica brasileira, com redução no financiamento da pesquisa, falta de concursos para professores e o aumento substancial da fuga de cérebros para o exterior.

Assim, vamos celebrar esta noite! Às 22h, nós nos juntamos na barraca-cozinha com o seguinte menu: bruschetta, guacamole, pão ciabatta ao forno e, de sobremesa, o que chamamos pavê Thoen (um doce em camadas de bolachas, creme de leite, leite condensado, doce de leite e chocolate, tudo deixado do lado de fora da barraca para congelar). Bebidas: vinho de caixa, cervejas, um licor Jack Daniel’s Tennessee Honey. Para a virada, um prosecco chileno!

Feliz 2023!

Ano novo dentro da barraca cozinha: da esquerda para direita, Marcelo Arevalo (Chile, engenheiro mecânico), Jefferson Cardia Simões (UFRGS), Venisse Schossler (UFRGS) e Francisco Eliseu Aquino (UFRGS) | Crédito: Centro Polar e Climático da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

 

3 de janeiro

Todo dia temos um ritual: quem acorda primeiro coloca neve para derreter no fogão. Estamos na maior reserva de água potável do mundo, na verdade, 70% de toda a reserva mundial. Mas tudo no estado sólido, entre 60 graus negativos e 0 graus. Apesar de tanta água, a desidratação é um dos principais problemas médicos de cientistas e exploradores polares. Temos que estar atentos, pois com o frio muitas vezes esquecemos de manter a hidratação.

Desde o Ano Novo nos apressamos para finalizar o módulo Criosfera 2. Temos alguns equipamentos para instalar e calibrar. A estação meteorológica automática já está funcionando, e o medidor de dióxido de carbono (CO2) também.

O importante agora é que o módulo seja estável e não tombe durante as tempestades do longo inverno. Temos que prender no chão a plataforma suspensa onde está o Criosfera 2, usando cabos de aço presos à neve…trabalho árduo a 15 graus negativos. Todos os nossos equipamentos e sensores são movidos neste momento por energia solar, que temos de sobra nesta parte do ano. Dias com Sol são uma benção, permitindo o trabalho ao relento. Sem vento, mesmo a 15 graus negativos, é perfeito. Alguns aproveitam para “tomar banho” com toalhinhas de limpar bebê!

4 de janeiro

Sob temperatura de 15°C negativos, inauguramos o Criosfera 2. A estação já está operacional – coletando dados meteorológicos e da concentração de dióxido de carbono. Este ano vai armazenar os dados nos computadores. O módulo se ligará a uma rede de dados ambientais entre a Amazônia e a Antártica que investigam as origens e a intensificação de eventos extremos de precipitação (como o que vimos agora no litoral Norte de São Paulo), ondas de calor e frio, e estiagens (como a que está atingindo o Rio Grande do Sul), no atual cenário de mudanças climáticas.

 

6 de janeiro

 

Fomos, nós cinco, recolhidos do módulo Criosfera 2. Correria para desarmar as últimas duas barracas e logo o pequeno Twin Otter estava aterrissando na pista na neve demarcada por sacos pretos. Só bagagem pessoal e lixo para remover do sítio. Criosfera 2 fechado até dezembro deste ano, missão cumprida!

Um voo de 20 minutos passa por áreas com enormes fendas de gelo (algumas tão largas que poderiam engolir um trator inteiro, ou mesmo o módulo Criosfera 2). Mostrando qual traiçoeiro poder ser o manto de gelo. Apesar de parecer imóvel, o gelo se movimenta entre alguns metros até 2 quilômetros por ano, e muitas vezes se rompe, gerando as fendas. Aterrissamos na pista de neve do acampamento da ALE. Agora aguardemos o avião que aterrissará na pista de gelo azul para voarmos para Punta Arenas. Serão mais alguns dias para preparar carga e amostras coletadas que serão enviadas para Porto Alegre.

9 de janeiro

Voamos para Punta Arenas, encerrando os trabalhos de campo. É o final da expedição Criosfera 2022. Foram 36 dias (4 de dezembro – 09 de janeiro) acampados e enfrentando temperaturas de até 24 graus negativos e nevascas. Realizamos investigações sobre a história do clima e medições sobre a resposta das geleiras às mudanças do clima. Mais importante, foi instalado o módulo “Criosfera 2”, laboratório automatizado para coleta de dados ambientais em um sítio propício para a investigação das mudanças climáticas na Antártica e conexões do tempo meteorológico e clima no Sul do Brasil. 

Adeus Antártica! Ou, quem sabe, até logo. 

Jefferson Cardia Simões, glaciologista e professor da UFRGS, líder da expedição | Crédito: Centro Polar e Climático da Universidade Federal do Rio Grande do Sul

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