The Act of Killing
The Act of Killing – espectadores violentados
O verdadeiro escândalo é The Act of Killing ser levado a sério e os velhos amigos Werner Herzog e Errol Morris se prestarem ao papel de produtores executivos do filme. Para conferir, basta ler “A Movie’s Killers Are All Too Real”, assinado por Larry Rother, publicado há dois meses, no dia da estreia em Nova York (12/07/2013).
Além disso, causa estranheza The Act of Killing, dirigido pelo americano Joshua Oppenheimer, ser produzido pelos institutos de cinema da Dinamarca e da Noruega, além de contar com o apoio de um conselho de pesquisa em “artes e humanidades” da Grã-Bretanha, e das emissoras de televisão ZDF e Arte.
O verdadeiro escândalo é The Act of Killing ser levado a sério e os velhos amigos Werner Herzog e Errol Morris se prestarem ao papel de produtores executivos do filme. Para conferir, basta ler “A Movie’s Killers Are All Too Real”, assinado por Larry Rother, publicado há dois meses, no dia da estreia em Nova York (12/07/2013).
Além disso, causa estranheza The Act of Killing, dirigido pelo americano Joshua Oppenheimer, ser produzido pelos institutos de cinema da Dinamarca e da Noruega, além de contar com o apoio de um conselho de pesquisa em “artes e humanidades” da Grã-Bretanha, e das emissoras de televisão ZDF e Arte.
Um carrasco indonésio é o principal personagem do filme e, além dele, tem também papel de destaque um grupo de gângsters e paramilitares responsáveis pelo assassinato de milhares de pessoas, a pretexto de serem comunistas, na Indonésia, em 1965, por ordem do Exército, e com apoio dos Estados Unidos.
Quem conhece os chamados documentários e as ideias de Herzog não deve se surpreender por ele estar associado ao filme. Sua decisão de participar do projeto foi tomada quando viu a cena em que mulheres dançam diante de uma cachoeira ao som de Born Free, e uma vítima de tortura pendura uma medalha no pescoço do carrasco, dizendo: “por me executar e me mandar para o céu, eu lhe agradeço mil vezes”.
Os versos de Born Free, celebrizados por Andy Williams, sublinham o sadismo onírico da sequência: “Born free, as free as the wind blows/As free as the grass grows/Born free to follow your heart/Live free and beauty surrounds you/The world still astounds you/Each time you look at a star/Stay free, where no walls divide you/You’re free as the roaring tide/So there’s no need to hide/Born free, and life is worth living/But only worth living/’cause you’re born free.”.
Segundo Herzog, Oppenheimer, “não é o inventor do surrealismo casual e inacreditável que se infiltra nesse filme de todos os cantos. Não vem dele, não é imposto por ele. Você assiste a isso, e você sabe que, de certa maneira, é real. E ainda assim você não pode acreditar que a realidade possa assumir formas tão loucas e estranhas como essa.”
Herzog continua o mesmo. Devoto do bizarro, rejeita qualquer compromisso ético. Por se definir como um contador de histórias, e não um documentarista, considera legítimo encenar e imaginar situações, mesmo em filmes que se definem como sendo documentários.
Para Errol Morris, “é claro que [The Act of Killing] é um documentário.” Segundo ele, “documentário não é uma questão de forma, de um conjunto de regras que são obedecidas ou não. É uma investigação sobre a natureza do mundo real, sobre o que as pessoas pensaram e por que pensaram o que pensaram.” Morris associa o trabalho do documentarista ao de um detetive, e foi ele quem deu legitimidade à reencenação em documentários ao fazer A tênue linha da morte, em 1988. Para Morris, The Art of Killing “é uma obra de arte. O máximo que se pode esperar da arte, arte realmente boa, talvez grande arte, é que faça pensar, faça indagar, faça querer saber como conhecemos as coisas, como experimentamos a história e como sabemos quem somos. E há tantos desses momentos maravilhosos nese filme.”
Para Morris, o estatuto de obra de arte liberaria a fantasia do autor de parâmetros éticos. Nesses termos, sua insistência em considerar The Art of Killing como sendo um documentário é contraditória, parecendo ser apenas uma tentativa de conciliar o inconciliável – a liberdade da imaginação e a prerrogativa do real.
Oppenheimer, de seu lado, tenta ser mais sutil do que seus dois produtores executivos, ao diferenciar a primeira metade do filme, segundo ele baseada na observação, das reencenações feitas depois. A diferença, assim definida, porém, na verdade não existe – todo o filme é encenado, variando apenas o grau de delírio. Mas Oppenheimer ao menos reconhece que o filme “deixa completamente de ser um documentário. Se para Herzog tanto faz, enquanto Morris faz questão de reafirmar que se trata de um documentário, Oppenheimer admite que The Act of Killing “deixa completamente de ser um documentário”, tornando-se uma “ária alucinatória, uma espécie de sonho febril”. Para ele, “o filme transcende o documentário e se torna uma criação híbrida estranha.”
Ainda assim, qualquer que seja seu gênero, The Act of Killing continua sendo uma celebração amoral e cínica promovida por Oppenheimer com apoio de instituições supostamente sérias e endossada por Herzog e Morris, ambos cineastas com carreiras respeitáveis.
A justificativa para as encenações é dada através de uma legenda superposta à imagem na abertura do filme – “…nós pedimos para os assassinos criarem cenas sobre os assassinatos como quisessem” para entender por que eles nos contaram com orgulho o que fizeram. O método adotado serviria para responder às perguntas: “Por que eles estão fazendo isso? Para quem eles estão fazendo isso? O que quer dizer para eles? Como querem ser vistos?” Oppenheimer considera “nossa obrigação como realizadores de filmes, como pessoas que investigam o mundo, criar a realidade [itálico acrescentado] que permita entender melhor as questões abordadas”.
Tendo situado o filme fora do campo do documentário, Oppenheimer está livre para criar a realidade à vontade. O que falta a The Act of Killing, entre outras coisas, é esclarecer os termos do acordo feito entre o diretor e os personagens. É preciso ler as entrevistas de Oppenheimer para saber que, segundo ele, os personagens “não receberam salário, tendo sido pagos apenas uma modesta diária.” Não foram remunerados por quê, é o caso de perguntar. Se for verdade, além de manipulados, terão sido também explorados.
No final de The Act of Killing, depois de assistir em uma tevê à cena da dança diante da cachoeira, ao som de Born Free, seguida do agradecimento do torturado ao seu algoz, o carrasco diz ao diretor: “Isso é ótimo, Joshua. Isso é muito bom. Nunca imaginei que eu poderia fazer algo tão bom. Uma coisa que me dá tanto orgulho é como a queda d’água expressa sentimentos tão profundos!”
O carrasco pede, em seguida, para ver a cena na qual ele próprio está sangrando no rosto, depois de ter sido surrado e estrangulado com um arame; chama seu neto para assistir à cena sentado no colo dele. “Isso é apenas um filme”, diz para o neto e um amigo dele que não parecem muito interessados e saem de quadro. O carrasco pergunta, então, ao diretor: “As pessoas que eu torturei se sentiram como eu me senti nessa cena?”
Oppenheimer diz a ele: “Na realidade, as pessoas que você torturou se sentiram muito pior, porque você sabe que é apenas um filme. Elas sabiam que estavam sendo assassinadas.” E depois de uma pausa, o carrasco responde: “Mas eu posso sentir, Josh. De verdade, eu sinto. Ou eu pequei? Fiz isso para tantas pessoas, Josh. [seus olhos marejam] Está tudo voltando para mim? Eu realmente espero que não. Não quero que isso aconteça. Josh. [chora]”
Oppenheimer transforma seus personagens em marionetes. Marionetes que ele manipula e explora.
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