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Thelonious e minha tia

Paulo da Costa e Silva | 24 jul 2015_17h31
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Alguns dias antes de morrer, minha tia comentou comigo que adorava Thelonious Monk. Notando meu ar de surpresa, disse que achava sua música “muito elegante”. Elegância era alto valor para minha tia. Lembro de sua admiração por Paulinho da Viola. Não era apenas a suavidade de sua voz que a encantava, nem apenas os sambas serenamente sofisticados que ele compunha, mas a elegância inteira que emana de seu ser. Gostava de seu jeito de andar, de seu comportamento discreto, de sua plácida nobreza. Das linhas finas do seu rosto mulato, do semblante que emana concentração e bondade. Até das camisas do Paulinho da Viola ela gostava. Era como se nele se desse a concretização daquele tipo de elegância que ela cultuava. O mesmo valia para as formas dos prédios de Oscar Niemeyer, do Lelé ou do Eduardo Reidy. Para o Amarcord do Fellini. Para a amizade entre Tom e Chico. Para as aquarelas do Klee. E até para a figura de Zico nos anos 1980, ou para os passes de Sócrates na Seleção. Não é que ela gostasse de futebol: simplesmente cultuava tudo aquilo em que pudesse captar o rastro da elegância. De modo que compreendi perfeitamente quando ela me disse que adorava Thelonious por sua elegância, embora soubesse bem que não ligava muito para jazz.

Na hora em que minha tia comentou que gostava do Thelonious, procurei algum CD dele pra botar no som. Assim, pensei, nossa conversa poderia continuar, só que agora emoldurada pelos acordes de seu piano, acrescida de uma elegância monkiana. Puxei da estante o CD do concerto que ele fez com John Coltrane no Carnegie Hall. Enquanto abria a caixa, já podia ouvir os primeiros compassos da incrível versão de Monk’s mood, que abre o disco. No entanto, por algum mistério técnico, o aparelho de som o rejeitou. Estranho. Voltei para a bagunça da estante e encontrei o maravilhoso Monk’s dream – the Thelonious Monk quartet. Para meu espanto, a caixa estava vazia e o disco, desaparecido. Resignado, voltei para aquela que seria a última conversa que tive com minha tia. Deixamos Thelonious de lado e falamos sobre tantas outras elegâncias que o louco universo nos propicia. Cada vez que tocávamos numa delas, seus olhos acendiam.

A morte de minha tia veio súbita, inesperada. Elegância nenhuma. Quase uma negação de tudo o que ela mais prezava, de tudo o que a fazia sonhar. Certa vez li que as criações artísticas são, no fundo, um gesto de revolta contra a injustiça primordial, aquela que fundamenta todas as outras injustiças: a mortalidade. Poucos dias depois que minha tia morreu, achei por acaso o disco de Thelonious. Gosto de pensar que ela ainda vive, cheia de galhardia, no meio daqueles sons, gozando eternamente da elegância dos acordes de Monk.

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