“Brother, welcome to reality”
As ilusões de quem acredita estar sempre do lado certo da história, e mesmo que esteja, está distante demais da vida
Após a palestra Sonic Utopias, de Kalaf Epalanga, na sala 203 do Scheide Caldwell House, fomos jantar com o músico e escritor convidado. A mesa grande, com cerca de doze pessoas, não me permitiu memorizar quem era quem entre os presentes, mas o grupo se restringia basicamente a professores e alunos, vindos de diversas partes da América, unidos pelo idioma português.
Nascido em Angola, Epalanga se mudou ainda adolescente para Lisboa e hoje vive entre a capital portuguesa e a alemã. Durante sua fala, tratou do papel da música na construção de identidades na diáspora. Mencionou também os chamados negros assimilados, que migraram para Portugal temendo retaliações após o processo de independência da ex-colônia na África, em meados da década de 1970.
A imagem me chama a atenção. Parece mais um caso que escapa à complexa, e no limite impossível, tentativa sociológica de classificar a migração em categorias fixas. Se os conceitos de “imigração” e “emigração” variam conforme o ponto de vista, e os adjetivos “voluntária” e “involuntária” estão longe de captar a gama de motivações que levam alguém a partir, a assimilação a um padrão imposto pela transformação dos costumes e da cultura locais por uma força agressora e estrangeira produz uma espécie de migrante imóvel. A realidade é alterada contra a vontade da população local, que passa a morar em terra estrangeira em casa.
Entre vinho, cerveja e pratos predominantemente com carne vermelha, a conversa flui aberta e descontraída. Após as sobremesas compartilhadas com certa intimidade promovida pelo álcool, um dos professores repara no esforço da garçonete para equilibrar os pratos vazios tendo o dedo anular da mão esquerda imobilizado por uma tala azul. Ela responde que não pode parar, sorri com pressa e nos dá as costas equilibrando pratos com talheres e restos de comida. Empurra a porta do salão com a perna deixando entrever, em flashes rápidos e de duração cada vez menor, a cozinha mergulhada na luz branca, corpos apressados e sons estridentes de panelas e louças se chocando contra o fogão e a pia misturados com palavras indiscerníveis em espanhol.
Você devia estar em casa. E ganhando! Não pronuncio nenhuma dessas sete palavras. Seguimos a conversa no ambiente acolhedor do restaurante Agricola sobre o boom da literatura africana, com autores do continente nas listas dos mais vendidos na Inglaterra e nos Estados Unidos. Todos parecem satisfeitos.
Enquanto pedalo de volta para casa atravessando uma típica paisagem de subúrbio norte-americano, reconstruo a cena da garçonete num ambiente que me é mais familiar: um bar da Vila Madalena em São Paulo, entre amigos editores e escritores. Alguém questiona a funcionária utilizando as mesmas palavras imaginadas por mim. Pede em seguida para que ela chame o gerente e o constrange com ameaças de denúncias que poderiam fazer fechar aquela espelunca. Posso ver a expressão da garçonete brasileira, assistindo à cena um pouco deslocada, talvez ansiosa para encerrar o serviço e ainda enfrentar mais de uma hora no ônibus para casa. Já não tenho certeza se sou capaz de decifrar aquele olhar. Também vejo a expressão de satisfação entre os integrantes da mesa.
Com a consciência alterada pelo vinho e a respiração ainda agitada por causa do esforço no ar frio do outono da Costa Leste norte-americana, releio as primeiras páginas do romance de estreia de Epalanga. A descrição de sua prisão por policiais da fronteira quando tentava ir da Suécia para a Noruega, durante turnê com sua banda Buraka Som Sistema, ganha espessura mais dramática depois de conhecê-lo pessoalmente. Na manhã seguinte retomo as páginas lidas e noto um trecho grifado: “Não disse nem uma palavra, sentia o suor a formar-se na testa, a boca seca, o coração aos pulos. Tinha a certeza de que qualquer movimento brusco me faria vomitar.”
Após certa idade, a ressaca do álcool passa a ser também moral, além de física. Pontadas de arrependimento na forma de uma leve onda de depressão me fazem duvidar da minha capacidade de escrever sobre a realidade de um país estrangeiro. Será que Princeton representa a paisagem dos subúrbios dos Estados Unidos? Há neste país algum tipo de direito trabalhista que garanta a permanência de um funcionário machucado em casa? Quais as marcas distintivas do estado de New Jersey?
Minhas referências são todas construídas pela melhor crítica, literatura e cinema norte-americanos, mas também pelo massacre da indústria cultural, que nos enfiou muito lixo goela abaixo. Seja como for, tudo misturado não deixa de formar uma das faces de um país que utilizou a cultura e as novas mídias como arma política global durante a Guerra Fria.
Meu amigo Pedro Meira Monteiro me alerta sobre o uso do “nós”, ou do “aqui”, uma vez que não estou mais no Brasil. Fico remoendo a advertência, refletindo se o pronome no plural já não seria inadequado quando eu morava em São Paulo. Se mesmo intenções progressistas traem privilégios de classe, esse “nós” pode ter um efeito muito parecido com um dos traços do discurso nacionalista mais exaltado, o de apagar vozes dissonantes.
O crítico literário Arcadio Díaz-Quiñones me sugere o volume The Penguin Book of Migration Literature. Pego emprestado na Firestone Library. O livro propõe que o pecado original da migração foi o transporte forçado de africanos para o trabalho nas plantations no continente americano no início do capitalismo, ou da modernidade, que gerou fortunas para meia dúzia de países. Assim, o fenômeno pode ser uma forma de compreender os grandes movimentos da história moderna sem ignorar a nota humana do processo. Pequenas, médias e longas durações se sobrepõem num fluxo contínuo, multidirecional e global, que interconecta experiências diversas de raça, gênero, sexualidade, classe, idioma e status legal. Nesse caso, a literatura, “the nearest thing to life” (a coisa mais próxima da vida), como está gravado na lombada de um livro na estante da casa onde estou morando, pode iluminar movimentos mais amplos a partir do detalhe menor.
A escritora haitiana Edwidge Danticat afirma com sensibilidade, na introdução da coletânea sobre migração, que “we are seeds in one soil and weeds in another” (somos sementes em um solo e ervas daninhas em outro), para em seguida afirmar que nem sempre é possível decidir quais os locais que podem ser chamados de lar. Muitas vezes isso é privilégio de funcionários da imigração ou guardas de fronteiras. Outras vezes, os migrantes são mutilados nesse processo, “our feet may leave, but not our hearts” (nossos pés podem partir, mas nossos corações não).
As mutilações podem também ser concretas. O New York Times publicou uma longa reportagem sobre crianças guatemaltecas que cruzam desacompanhadas a fronteira Sul dos Estados Unidos e terminam trabalhando no turno da madrugada em matadouros da indústria de alimentos. O jovem Marcos, de 14 anos, teve um braço destroçado enquanto limpava uma das máquinas de processamento de frangos, mas nem a comunidade local nem ele próprio estavam dispostos a realizar qualquer denúncia. Os dólares ganhos nesse trabalho muito próximo ao da realidade insalubre e perigosa do chão de fábrica da primeira revolução industrial na capital inglesa garantem a sobrevivência dos pais na zona rural de seu país de origem.
Tudo acontece à luz do dia, sem a retórica liberal dos velhos capitalistas britânicos a encobrir a exploração de crianças sob o véu da filantropia. No caso do turno da madrugada em uma das instalações da Perdue Farms, que processa 1,5 milhão de frangos por semana, é como se escravizados justificassem a própria escravidão. A mão invisível do mercado parece ter dedos com diferentes desígnios. Se por um lado o movimento do capitalismo industrial, com sua consciência própria, forçou o fim do tráfico de escravos, por outro, essa mesma força dinâmica recoloca, com sua característica específica, uma nova forma de trabalho compulsório no interior da democracia mais longeva dos nossos tempos, ainda que imperfeita. Recoloca também em novos termos a migração, que por sua vez expõe a brutalidade do processo.
Não sei nada sobre a Guatemala. E tampouco sobre a fronteira da Bielorrússia com a Polônia, onde foi filmado o premiado Green Border. A sessão única acontece numa noite fria de quinta-feira, no James Stewart Theatre quase vazio. Chego com o filme iniciado e, enquanto é projetada na tela uma paisagem de nuvens brancas vista da janela de um avião, consigo enxergar os degraus da sala e localizar uma poltrona. Esses primeiros minutos no céu são os que ainda retêm algum tipo de esperança para um grupo de migrantes da Síria e do Afeganistão. A utopia de atravessar países livremente acaba assim que os passageiros tocam o solo.
A fronteira retratada pela diretora polonesa Agnieszka Holland é uma espécie de floresta infernal. Uma vez capturados pela polícia, os migrantes são jogados de um país para o outro, até morrerem de frio, exaustão ou em decorrência das agressões infligidas por guardas das fronteiras. Algumas vezes são arremessados para o “outro lado” literalmente. Numa das cenas mais brutais do filme, às gargalhadas, oficiais poloneses erguem pelos braços e pelas pernas uma jovem negra marroquina grávida que se debate para não ser entregue ao país vizinho, e a atiram do alto de um caminhão por cima da cerca de arame farpado que separa os países. A carne mais barata do mercado global.
No dia seguinte, durante conversa com a diretora, quando comparecem em sua maioria poloneses já na casa dos 60 anos, ela conta via Zoom, com seu rosto projetado numa enorme tela de alta resolução e um inglês com sotaque carregado, que o uso do preto e branco fornece uma camada histórica imediata ao filme e o conecta à tragédia humanitária da Segunda Guerra. A frase de fechamento dita por Agnieszka Holland deixa o ar pesado. Após o encontro, as pessoas comem o sushi do buffet um pouco constrangidas. Do lado de fora, o céu azul e as folhas multicoloridas do outono em New Jersey parecem menos reais.
Algumas vezes as fronteiras se internalizam distantes do traçado político que separa um Estado-nação do outro. Quem me sugere o texto sobre um abrigo de migrantes no Brooklyn é novamente Díaz-Quiñones. Chego em casa após o nosso estimulante encontro no café Chez Alice, quando ele me presenteia com um de seus livros de ensaios, El arte de bregar, e também nota meu gosto por chocolate. Devoro a reportagem na tela do laptop sobre essa outra fronteira infernal; desta vez numa paisagem urbana, que nos últimos anos assistiu a uma ocupação maciça de hipsters, empreendedores de tecnologia, startups e arte pós-moderna.
O fluxo constante e cada vez maior de migrantes que desembarcam diariamente no Port Authority, terminal de ônibus em Manhattan, e o compromisso da cidade em oferecer abrigo a todos que solicitem, expõem um Estado fraco, refém de terceirizações milionárias, mal realizadas e sem qualquer prestação de contas efetiva.
Um empreendimento imobiliário luxuoso de escritórios no Brooklyn foi transformado em abrigo para parte dessa população estrangeira. A pandemia de Covid havia deixado os prédios vazios. Apesar da impossibilidade de se adaptar salas comerciais para moradias dignamente habitáveis em poucos meses, centenas de migrantes homens compartilham um espaço sem privacidade, com camas distantes alguns centímetros umas das outras, banhos frios e menos chuveiros e banheiros do que estabelece a norma da cidade para abrigos; comida insatisfatória em qualidade e quantidade. “Era como uma prisão”, afirma um ex-morador.
Interrompo por alguns minutos a leitura e me esforço para lembrar dos exemplos de disaster capitalism do livro da Naomi Klein. Imagino um longo fio conectando o Katrina, a Guerra do Iraque e a atual crise migratória; oportunidades de lucro às custas do desastre social. Uma história em cores.
Brigas constantes e acusações de roubos passam a dar o tom nessa fronteira improvisada no Brooklyn. Venezuelanos acusam haitianos pelos roubos. O clima pesa. Guardas terceirizados e despreparados interferem com violência. Os que acabam expulsos do abrigo por indisciplina formam um pequeno agrupamento vivendo debaixo de um viaduto próximo, não raro agredidos por pequenos comerciantes locais. Uma vez que a autorização para que migrantes possam trabalhar demora em média seis meses para ser concedida, esses homens se viram como podem. Compram contas falsas em aplicativos como Uber Eats, por cem ou até duzentos dólares por semana, para obter algum ganho.
O capitalismo tecnológico parece oferecer a corda bamba onde migrantes se equilibram precariamente enquanto jovens milionários no Vale do Silício só enxergam a matemática dos algoritmos e de suas contas bancárias. Na distante floresta no Leste europeu ou num empreendimento imobiliário próximo a Manhattan, migrantes usam a tecnologia para “ganhar a vida”; seja recebendo alguns dólares com apps de entregas, seja utilizando a geolocalização para que ativistas levem até eles remédios, comida e roupas.
À pergunta de Eric Lach da New Yorker se esse homem que vende contas falsas dos aplicativos não o estaria explorando, um jovem morador do grupo do viaduto responde, com um olhar de pena: “Brother, welcome to reality.” Talvez essa pena da ingenuidade do jornalista seja a mesma da garçonete brasileira na minha cena imaginária. Sentimento que desmonta aquele “nós” de quem acredita estar sempre do lado certo da história, e mesmo que esteja, está distante demais da vida. Ainda de acordo com o jovem entregador, é igual em toda parte, “aqui, na Argentina ou na Venezuela”.
Regulo o aquecimento de casa, sempre indeciso sobre a relação entre a sensação térmica e os números na escala Fahrenheit no mostrador digital, enquanto penso mais uma vez na noite no Agricola. Fomos os últimos clientes a sair do restaurante. O salão já estava sendo arrumado para o dia seguinte enquanto vestíamos nossos casacos.
Quando Epalanga se refere à Kizomba, um ritmo musical e uma forma de dança criados em Angola, afirma: “Ela carrega uma profundidade emocional e uma envolvência libidinosa, transcendendo e desafiando a lógica do espaço e a intimidade que cada indivíduo se permite experienciar em público.” Uma provocação aqui, uma risada ali, sem no entanto perder o foco no trabalho, parecem sugerir que toca uma kizomba no restaurante, mesmo que o som ambiente seja o ruído do grande aspirador de pó operado por um jovem com espinhas no rosto. Provavelmente um ônibus a Trenton ou New Brunswick os aguarda antes de finalmente chegarem a uma habitação, que podem ou não chamar de lar.
Será que se preocupam com as recentes declarações de Trump sobre radicalizar a política de deportações no caso de um segundo mandato na Casa Branca? Ou já pertencem à segunda geração nascida nos Estados Unidos e até cogitam votar no ex-presidente seduzidos pelas promessas de melhores empregos? Já estariam estabelecidos em New Jersey há anos e veem com maus olhos os novos grupos que todos os dias atravessam o Rio Grande no Texas e desembarcam próximos a Times Square? Há muito menos solidariedade entre cubanos, venezuelanos, guatemaltecos e porto-riquenhos na diáspora do que a sociologia supõe quando os coloca sob o rótulo “migrantes da América Latina”. No conto Children of the Sea, Danticat revela todo tipo de preconceito e conflito entre haitianos que tentam chegar num mesmo barco a Miami.
Também afirma que “there are no borderlines on the sea” (não há fronteiras no mar). O que é negado pela atuação da “Maritime Border Patrol” norte-americana, que impede que embarcações com migrantes se aproximem da costa da Flórida. Nessa fronteira fluida mas real, nem mesmo as leis que asseguram guarida às crianças que viajam sozinhas são válidas. A maioria é devolvida aos seus países de origem, sem jamais tocar o solo dos Estados Unidos. Se são muito pequenas, algumas vezes não são capazes de confirmar o país de onde vieram ou o nome dos pais. Acabam perdidas. Fronteiras avançam em direção ao mar enquanto predadores marítimos invadem a terra, como nos terríveis versos da poeta somali Warsan Shire: “no one leaves home/ unless home is the mouth of a shark” (ninguém deixa o lar/ a não ser que o lar seja a boca de um tubarão).
Penso em fechar este texto com a mesma frase que Agnieszka Holland encerrou a conversa naquela tarde de céu azul. Em vez disso, folheio o ensaio De cómo y cuándo bregar. Sobre o verbo “bregar“, palavra-chave da cultura porto-riquenha, essencialmente marcada pela migração e tendo New Jersey como um grande enclave dessa população, Arcadio Díaz-Quiñones abre o texto afirmando tratar-se de “otro orden de saber, un difuso método sin alarde para navegar la vida cotidiana, donde todo es extremamente precario, cambiante o violento, como lo ha sido durante el siglo 20 para las emigraciones puertorriqueñas”. Mais adiante, “bregar sirve para renovar la ilusión de que el mundo es habitable”.
O “bregar” é fruto da necessidade, mas suas estratégias têm limites. Quando se impõem níveis extremos de violência, como na fronteira entre a Bielorrússia e a Polônia, desaparece a margem de negociação para se escolher o menos pior. Também opera com diferentes resultados conforme o contexto. Elites também bregan, manipulando a política com interesses próprios. Portanto é preciso não mistificar.
Fecho o livro. Reflito sobre a minha própria distância de certas experiências que insisto em interpretar com o intuito de apontar soluções para problemas nunca vividos por mim; ou para me resignar frente ao que parece a passividade inexplicável de muitas pessoas diante do horror cotidiano.
Homens e mulheres que distantes de esquemas conceituais frios e ideologias intransigentes, seguem “bregando la vida” com sabedoria, negociando dia após dia os limites do possível. E assim, se por um lado não derrubam, certamente expandem, borram e, principalmente, problematizam as centenas de fronteiras por onde passa o nervo da experiência contemporânea.
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