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“Tio Boonmee, que pode recordar suas vidas passadas” – surto místico

Até uma semana atrás, nunca tinha visto um filme dirigido por Apichatpong Weerasethakul. Falha minha, com certeza. Ainda mais diante da veneração dos críticos e cinéfilos brasileiros por “Tio Boonmee, que pode recordar suas vidas passadas”, vencedor da Palma de Ouro do Festival de Cannes, em 2010.

| 31 jan 2011_12h48
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Até uma semana atrás, nunca tinha visto um filme dirigido por Apichatpong Weerasethakul. Falha minha, com certeza. Ainda mais diante da veneração dos críticos e cinéfilos brasileiros por “Tio Boonmee, que pode recordar suas vidas passadas”, vencedor da Palma de Ouro do Festival de Cannes, em 2010.

Na verdade, talvez tenha visto um de seus filmes, escolhido há· tempos por um ex-aluno para ser exibido a um grupo de amigos. Não lembro ao certo quem era o diretor, nem o título, mas tenho impressão que poderia ser Weerasethakul. Se não me engano, havia uma equipe que filmava um conjunto de músicos tocando numa floresta escura. Além disso, não guardei nada, nem vi motivo para tamanha adorá-lo. E quem sabe fosse afinal de outro diretor oriental.

Quando “Tio Boonmee” foi exibido no Festival do Rio, em outubro do ano passado, a jovem cineasta Rita Toledo comentou o filme neste blog (leia aqui). Agora, tendo visto “Tio Boonmee”, pude apreciar melhor a precisão do que ela escreveu, expressando sua admiração, sem chegar, porém, a se ajoelhar junto com adoradores incondicionais.

O público de domingo retrasado, na sessão à tarde, resistiu bem às exigências de “Tio Boonmee,” tendo havido poucas deserções antes do final. De qualquer modo, minha impressão foi que a maioria estava perplexa diante do que estava vendo. O condicionamento pela linguagem do cinema dominante chegou a tal ponto que ficou difícil assistir a um filme que recusa deliberadamente as convenções narrativas usuais. Nesse aspecto, Weerasethakul merece cumprimentos. Para brasileiros, uma via de acesso possível a “Tio Boonmee”, talvez seja estabelecer um paralelo com “Macunaíma”, na versão para o cinema da obra de Mario de Andrade, adaptada e dirigida por Joaquim Pedro de Andrade. A distância geográfica e a diferença cultural entre a Tailândia e o Brasil não impedem certas aproximações.

Se a inspiração de Weerasethakul, como Rita Toledo indicou no post citado, vem de programas de TV “onde monstros, princesas e animais falantes povoavam histórias fantásticas e de grande popularidade”, a coexistência de seres mitológicos com tecnologia moderna não deixa de ser um traço da rapsódia do herói sem nenhum caráter. O Curupira e os macacos de olhos vermelhos têm algo em comum, assim como o bagre sedutor e a Uiára.

Comentar filmes falados em língua que não entendemos é sempre uma ousadia. No caso, além da língua, há· o desconhecimento completo da cultura e sociedade tailandesas. Por isso, parece arriscado tecer considerações sobre um filme como “Tio Boonmee”. Diria apenas que os adoradores, como ocorre com frequência, parecem cultuar mais a atitude de Weerasethakul do que o filme em si. A meu ver, valorizam em excesso a originalidade da forma narrativa, a dilatá-lo do tempo e a liberdade de dar tratamento realista à fantasia. Parece pouco para justificar uma nova seita, sem desmerecer o efetivo encanto de “Tio Boonmee”.

Para Ruy Gardnier, Weerasethakul “há· pelo menos dez anos faz os melhores filmes do mundo” (“O Globo”, 20/1/2011 ). O que “tanto fascina em seu cinema”, segundo Gardnier, é a “mistura de radicalidade e de ternura, de vanguarda e leveza”.“… um cinema visualmente exuberante e conceitualmente complexo, mas tudo isso é filtrado pela mais elegante simplicidade, de modo que o espectador possa se maravilhar sem necessariamente fazer perguntas […]”, continua Gardnier. “Tio Boonmee, que pode recordar suas vidas passadas” seria, para o crítico, “a mais serena reflexão já feita sobre a morte no cinema”.

A síntese acima talvez não fará justiça ao comentário de Gardnier que vale a pena ler na íntegra, apesar do elogio hiperbólico. Mais do que uma crítica, parece um manifesto para arregimentar seguidores de um culto.

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Entre os fiéis estão Luiz Zanin Orichio, para quem o filme causa a sensação de que “o chão falta sob nossos pés” (“O Estado de S.Paulo”, 21/1/11).

Pretendo ver os filmes anteriores de Weerasethakul. Por enquanto, porém, ficarei à distância do que mais me parece um surto místico.

Essas ondas periódicas que põem em evidência cineastas como Weerasethakul, fazem lembrar do solitário Godard, longevo espectro de si mesmo ( “Eu vi de perto o cadáver do suicida Godard…”, escreveu Glauber Rocha em 1969 ). Ele sabe que está se debatendo há décadas, na tentativa inglória de reinventar o cinema.

Já cinéfilos que têm vocação para o culto de entidades místicas não se conformam com o estado agônico do cinema e parecem sentir necessidade de inventar a cada temporada um novo gênio fugaz. Para mim, fica por conferir se é o ou não o caso de Apichatpong Weerasethakul.