Torcida única é parte da “negação do outro”
Os estádios, antes tão plurais e democráticos, agora abrigam pessoas que perderam a capacidade de enxergar o diferente
Em 20 de agosto de 1995, uma famigerada batalha campal no Estádio do Pacaembu mudou a arquibancada do futebol para sempre. Era apenas um jogo de categorias de base, mas, valendo-se da negligência do efetivo policial e dos paus e pedras deixados em uma obra no estádio, torcedores do Palmeiras e do São Paulo invadiram o gramado e partiram para a selvageria, deixando 102 feridos e provocando a morte de Márcio Gasparin da Silva, são-paulino de 16 anos.
As imagens correram o mundo, e as autoridades reagiram com as extinções da Mancha Verde, torcida organizada do Palmeiras, e da Torcida Independente, do São Paulo, além da proibição de todas as demais nos estádios paulistas. Uma agenda de repressão foi acionada a partir de então, conta Rodrigo Barneschi na edição deste mês da piauí.
Bandeiras de mastro foram proibidas nos campos pelos 27 anos seguintes, os estádios ficaram sem instrumentos de percussão por mais de uma década e faixas e outros materiais agora são liberados ou vetados de acordo com o comportamento das torcidas organizadas. Quase tudo é proibido dentro e fora dos estádios paulistas, com o Estado, em especial o Ministério Público, atuando como bedel de arquibancada.
Em 3 de abril de 2016, José Sinval Batista de Carvalho levou um tiro no peito durante um confronto entre palmeirenses e corintianos no bairro de São Miguel Paulista, em São Paulo. A tragédia teve efeito imediato na opinião pública. No dia seguinte, o então secretário de Segurança Pública, Alexandre de Moraes, hoje ministro do STF, anunciou a determinação de que os clássicos paulistas (os embates envolvendo Corinthians, Palmeiras, Santos e São Paulo) teriam de ser disputados com a presença de apenas uma torcida, a do mandante.
Com vigência até 31 de dezembro de 2016, a medida, apresentada como emergencial, foi prorrogada por mais um ano, até o final seguinte. Depois, mais um ano ainda. E segue em vigor até hoje, com a inclusão de Guarani e Ponte Preta, os dois clubes de Campinas que têm uma rivalidade enorme entre si. A exemplo de São Paulo, o veto a visitantes foi adotado por outros estados, mas a maioria faz isso em caráter pontual, como Minas Gerais, Bahia e Pernambuco. Outros estados, no entanto, com futebol potente e alta rivalidade, provam que é possível conviver com o adversário e nunca adotaram torcida única, como Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Ceará.
A torcida única nos clássicos é reflexo de uma sociedade menos tolerante: em vez de aprender e evoluir com as divergências, fez-se a opção por evitá-las. É um processo de “negação do outro”, que está forjando uma geração que não sabe se relacionar com o contraditório. Os estádios, antes tão plurais, diversos e democráticos, passaram a abrigar pessoas que perderam a capacidade de enxergar o diferente, como se ele não pudesse existir.
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